segunda-feira, 2 de novembro de 2020


 

A BOA PULGA E O REI MALVADO

(Adaptação e versificação de um conto  infantil de Victor Hugo)

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado I  -- 9 ago 2019

 

Certo país sofria, por desgraça,

Nas mãos de um certo rei malvado,

Todo o povo por ele maltratado:

De mais impostos sempre andava à caça!

 

Mas por mais que o povo lastimasse,

Não havia jeito de livrar-se dele,

Montara vasto exército que o vele

E uma revolta bem rápido esmagasse!

 

De fato, a tropa só para tal servia;

O reino há muito não fazia guerra,

Os seus vizinhos, mais além da serra

Eram pacíficos e até de serventia,

Pois lhe pagavam tributos anualmente

E embora o rei, às vezes, os aumentasse,

Não tinham tropa que a eles apoiasse

E tinham medo de ofender tal rei potente,

O qual, de fato, tinha um filho que era bom,

Mas a quem igualmente maltratava;

O rapaz os seus castigos suportava,

Sem sequer queixas proferir em nenhum tom.

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado II

 

Não era um príncipe covarde, mas valente,

Sempre ia à caça de feras perigosas

E quando achava as decisões mais perniciosas,

Ia ao povo defender constantemente.

 

Um dia, o pai até mandou prendê-lo,

Se bem não fosse em real calabouço,

Porém nos aposentos do bom moço,

Lacrada a porta com seu real selo.

 

Ora, havia no reino pulga boa,

Por seus pais muito bem educada,

Que se abstinha de qualquer picada,

Salvo se a fome em suas entranhas doa.

E mesmo assim, não picava qualquer um!

Só avarentos, ladrões e outros malvados

Com suas picadas eram castigados,

Sem muito sangue tirando de nenhum!

Mas aos poucos escutou, em suas andanças

Como o povo sofria e lastimava

E como ao príncipe o rei encarcerava

E decidiu fazer certas mudanças!...

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado III

 

Tomou carona em um dos cortesãos

E assim entrou no salão-mór do rei.

Quando chegar mais perto, eu pularei,

Pensou a pulga, mas sem alardes vãos...

 

E de fato, alcançou as vestimentas

Que o rei usava, dos tecidos mais preciosos

E se ocultou em seus bordados tão formosos,

Só se movendo de maneiras lentas...

 

Desse modo, nunca foi pressentida,

Até que o rei, afinal, foi-se deitar,

Na camisola real a se enfiar,

Sem chamar atenção, ainda escondida...

Mas no momento em que o rei já cochilava,

Desferiu-lhe uma picada violenta!

No seu leito o rei depressa senta

E a agressora já lesto procurava!

Mas ela sempre movia-se depressa

E o rei só conseguia se coçar,

Sem que pudesse a tal pulga alcançar,

Ainda que a busca por ela não cessa...

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado IV

 

Finalmente, achando tê-la afugentado,

Voltou o rei ao seu travesseiro,

Fechando os olhos para dormir ligeiro,

No mesmo instante de novo a ser picado!

 

De um salto, o rei ergueu-se novamente,

Tirou a roupa, despiu a camisola,

Dos chinelos examinou até a sola,

Sem descobrir a visita que o atormente!

 

E como o rei era meio supersticioso,

Dispos-se  a indagar em alta voz:

“Quem és tu que assim perturbas nós?”

Usando o plural majestático orgulhoso.

E escutou, para sua grã surpresa,

Uma vozinha fina, mas segura:

“Sou uma pulga de linhagem pura,

Tenho direito de picar-te, com certeza!”

Reagiu o rei de modo violento:

Além de despir-se totalmente,

Desfez a cama, num esforço ingente,

Rasgou lençóis e cobertores num momento!

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado V

 

Mas não achou a pulga em ponto algum;

Chegou mesmo a virar o seu colchão;

Em parte alguma por que passou a mão

Achou o inseto que o picava tão comum!

 

“Mas o que queres de mim?” – deblaterou.

“Que trates bem os súditos do reino

E que libertes teu filho, cujo engenho

É bem melhor do que seu pai mostrou!”

 

“Mas de onde tiraste tal ideia?”

Bateu palmas, chamando seus criados,

Todos os cantos do aposento revirados,

Mesmo o corpo nu do rei nessa epopeia!

Porém a pulga achar nunca puderam;

O rei mandou chamar os seus cientistas,

Que envidassem por encontrar pistas:

Com microscópios toda a câmara revisaram,

Mas a pulga estava bem aconchegada

Na longa barba do rei e bem quietinha,

Afinal, tinha cheia a barriguinha,

Pelo sangue real alimentada!

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado VI

 

Então o rei mandou desmantelar,

Inteiramente, toda a câmara real,

Verificando cada ponto material,

Até a cama mandando desmanchar!

 

Das paredes arrancaram o papel,

Foram os tapetes todos enrolados,

Os ladrilhos do piso até arrancados,

Porém da pulga não acharam o quartel!

 

O rei então foi dormir em outro quarto,

Com novas roupas trazidas do vestiário,

Mas embora o ambiente fosse vário

E se sentisse das picadas muito farto,

Assim que os olhos fechou para dormir,

A pulga pespegou-lhe outra picada!

Mesmo que fosse muita gente ali chamada,

Achar a pulga não puderam conseguir...

E desta forma o sofrimento continuou,

Por mais de mês não pôde o rei dormir,

Até ao jardim procurou dela fugir

E o animalzinho mesmo ali ainda o picou!

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado VII   

 

Morde-que-te-morde!  Pica-que-te-pica!

Já o rei estava todo machucado,

Pelos tapas que em si mesmo havia dado,

Mais cada marca que das picadas fica!

 

O rei ordenou se exterminassem

Todas as pulgas que houvesse na cidade.

Mataram mesmo uma grande quantidade,

Mesmo que inseticidas então não existissem.

 

Mas como a pulga o continuou a picar,

Exasperado por não poder dormir,

Mandou o exército, com ordem de punir

Qualquer pessoa em que pulga fosse achar!

E muita gente assim foi castigada,

Obrigados a tomar banho gelado!

O agressor, porém, não foi achado,

Sofrendo o rei à força de picada!

Examinaram o palácio inteiro

E descobriram que onde o príncipe ficava,

Nem sequer uma pulga ali se achava:

Seria em outro ponto o seu viveiro...

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado VIII 

 

Finalmente, o rei não se aguentou:

É terrível um mês inteiro sem dormir!

“Pulga, pulga, não vais nunca desistir?”

“Só se me obedecer,” ela falou.

 

“Mas, afinal, o que é que você quer?”

“Eu quero apenas o bem fazer ao povo,

Eles precisam é de um rei mais novo,

Passe o trono a seu filho, se quiser,

 

“Que sua pele eu pare de morder...”

“Mas eu não quero meu trono abdicar!”

“Então o meu picar vai continuar,

Já está bem magro, pode até morrer!

Assim, nem mais precisa abdicar,

Você morre e seu filho reinará,

Diferença para mim então não há,

Se você morre, vai o povo se aliviar...”

“Mas eu preciso levar o meu tesouro,

Alguns servos, uma tropa de soldados!”

“De forma alguma deverão ser perturbados,

Leve um cavalo e duas bolsas só de ouro!”

 

A Boa Pulga e o Rei Malvado IX

 

E dessa forma, o rei malvado foi-se embora,

Para viver na solidão de uma casinha,

Feliz que a pulga não mais dele se avizinha,

Sem retornar sequer por uma hora!

 

E o bom príncipe em seu lugar reinou,

“Felicidade geral dessa nação”, (*)

Em que pulgas, após tal perseguição,

Em parte alguma do país se achou!...

 

Mas a nossa pulga boa continuou,

Limitando-se a picar algum cachorro,

Ou quem morasse para além do morro,

Até que um dia também sua vida terminou...

Mas como era uma pulguinha muito boa,

Ao céu das pulgas depressa foi chegar,

Não precisando nunca mais picar,

Só dançando e a dar pulos à toa!...

 

E se esta história acaso lhe agradou,

Peça ao Vovô para contar mais uma...

Se por acaso não lembrar de mais nenhuma,

No meu blog muita história se guardou! 

(*) Alusão à frase famosa de D. Pedro I.

 

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