DONS GRATUITOS EM AZUL
DONS GRATUITOS I – 26 OUT 19
Existe algum motivo que os deuses adorados
Pelos humanos fossem, se a vida fosse eterna?
Por que madura o óvulo no ventre de uma terna
Donzela adolescente, senão por consagrados
Ideais reprodutivos, da biologia os dados
Um só espermatozóide permitem na caverna,
Sua vasta multidão a ressecar se alterna
Por que um somente alcance os fins buscados,
e nova vida produza, estuante de esperança.
Essa que traem para uma vida de estertores
Esses deuses solertes, que nos atribularam
Com pragas e desditas, rigor que não descansa...
Os deuses são sagazes. Pois só nos dão as dores
Por que sejamos gratos, depois que as afastaram.
DONS GRATUITOS II
Por que, afinal, essa deusa biologia
Um só espermatozóide escolhe preservar,
Enquanto a multidão condena a ressecar,
Por que somente um se funda e, em sintonia,
Somente um humano sobre o mundo marcharia,
Sobrevivente individual do massacrar,
Como as folhagens no solo faz pousar,
Serapilheira amontoada sem valia...?
Qual a razão por que pereçam tantos,
Agitando as caudinhas inocentes,
Sem conseguir chegar a seu destino,
Metade sobe a trompa errada em desencantos,
Mesmo que chegam até o óvulo, vibrantes,
Morrem ali, desprezados de inopino...
DONS GRATUITOS III
Por certo existe o cone de atração,
Que um só escolhe deliberadamente,
Mas que critério possui essa semente
Para escolher qual lhe dará fecundação,
Deixando os outros morrer, sem compaixão?
Algo de químico existe ali, somente,
Algo de elétrico nessa atração potente,
Alguma escolha racional nessa ocasião?
Tal qual se a alma já no óvulo habitasse
E para si escolhesse o melhor pai?
Ou tudo é fruto da casualidade,
Ou então existe uma causalidade,
Que nessa simples membrana se estampasse,
Selecionando essa genética que atrai?
DONS GRATUITOS IV
Só imagino quantos de meus irmãos
Pereceram para que eu sobrevivesse...
Aqui estou eu, porém que fado tece
Linhas de cânhamo no tear das seleções?
Nesse pecado original das mutações
Será assassino quem aos demais vencesse
Ou só o óvulo é o carrasco que se esquece
Dos sonhos mortos de tantas multidões?
E por que, à medida em que crescemos,
Tanta criança não chega à idade adulta
E cada guerra tanta vida então oculta
E as doenças nos tornam ainda menos?
Qual força mística preside esse massacre,
Que sobre a língua me deixa um gosto acre?
MICÇÃO DIVINA I – 27 OUT 19
pois é de noite que os sonhos
me visitam,
mas não durante o sono, que tão
breve
é o tempo em que ressono, que o
almocreve
das ilusões seus fardos não
cogita(m)
sequer trazê-los; meus sonhos
são concretos:
a musa senta a meu lado, onde
já esteve;
o deus risonho traz, em canto
leve,
fragmentos de horror, tão
indiscretos
são os profetas de futuras
mágoas;
minha mente povoam, sem
tardanças,
esses fantasmas nus, essas
crianças
revoltas de um passado
impenitente.
E eu nado assim, me afogo
nessas águas
que o fado urina em mim,
indiferente.
MICÇÃO DIVINA II
Nessa micção não se encontra
malefício:
afinal, são compostos de
nitratos
esses líquidos rins e os
tristes fatos
são que sem eles algo falta em
meu ofício.
De insensatez a micção traz um
resquício,
mortos no antanho, são versos
tumefatos,
há muito expostos a dichotes e
boatos,
acostumados ao adubo como em
vício.
Nem todo o sangue dos poetas
mortos
se coagulou em pardos
hematomas;
em ácido nítrico secou-se
parcialmente
e assim ressurge nesses versos
tortos;
sobe do chão em nauseabundas
gomas,
meus pés envolve em jalde
indiferente.
MICÇÃO DIVINA III
Que não te agradam, eu sei
perfeitamente,
nem me agrada esta paródia de
soneto,
mas nem tudo que existe é um
bem dileto
e nem tudo que se escreve
agrada à gente.
Melhor fazê-lo
atabalhoadamente,
motivo dando a razoável
desafeto,
sem desprezos remoídos em
secreto,
à real crítica fornecer razão
potente.
Mas nem me agradam; eu sei que
me excedi
tudo é diverso de meu canto
mais gentil,
mas foram deuses do maugrado
que enviaram,
nesta temática em que a alma
até feri
e o azedume não é meu; fui só o
buril
que sobre enxofre gravou quanto
mandaram.
EM VOOS EVENTUAIS I – 28 OUT 19
É a condição
humana, com certeza!...
Depois que
chegas à idade do "com-dor",
Talvez as
cores ainda tragam seu calor,
Talvez a vida
ainda apresente igual beleza...
Mas esse nome
descreve com presteza
As decadências
da carne em seu palor:
Pois a troco
de uma breve hora de amor,
Trinta dores
chegarão sem sutileza...
Não que em mim
seja corrupção da idade:
Castigo recebi
da fatal digitação,
Na minha
insistência em teclar poesidade,
Costas moídas
por insalubre posição;
Do olhar fixo
posta à prova a intensidade,
As juntas
duras ao completar cada missão!
EM VOOS EVENTUAIS II
Tal trocadilho
até causa um certo espanto,
Pois o condor
é um pássaro altaneiro,
Cruzando os
ares com ardor certeiro,
Remígios a
bater sem qualquer pranto, (*)
(*) Longas
penas da ponta das asas que dão orientação ao voo.
Asas cobertas
por um sedoso manto,
Mas que muitas
penas tem é verdadeiro,
Sua proteção
contra o vento bem ligeiro,
Na cordilheira
a assobiar seu forte canto.
Mas as penas
de quem se torna portador
De sete
décadas diversa têm função,
Alacremente a
nos brindar com dor
E ao mesmo
tempo nos dão um certo orgulho,
Sugere o nome
sempre ardor de reação
E não o ardor
que à energia traz esbulho!
EM VOOS EVENTUAIS III
Que sentar
ante o teclado me faz mal
É um processo
que de há muito percebi,
Sem mentira
apresentar, até encolhi,
Forçando as
vértebras em posição fatal.
Mas que fazer,
se é um castigo consensual
Passar a limpo
os mil rascunhos que escrevi!
Por muitos
meses eu até me recolhi,
Meu esqueleto
agradecendo, é natural...
Mas tais
palavras insistem em voar
E assim
retorno – infeliz – para o teclado,
Condor serei,
mas somente em digitar,
Com dor cada
poema a te enviar...
Mesmo que
esteja de artrite dispensado,
Tanta pena nos
meus joelhos já é um cocar!
PLANGER I – 29 OUT 19
Nós abusamos: ficamos muito unidos,
Nossa amizade deu muito na vista,
Num esplendor amargo de conquista,
Que os melindres alheios tem ferido...
Nós abusamos, em magia concebidos
E se há uma coisa que do ódio traga a pista
É que ser feliz de amor um par insista,
Sem por tragédia no final ser perseguido.
Nós abusamos: fomos dois meninos,
Inconscientes, cumprindo desatinos,
Num bimbalhar de sinos e ilusão...
Sem compreender que os sinos a rebate
Marcam o fim apenas do combate,
Mas nunca do amargor no coração.
PLANGER II
Mesmo que seja esse amor só diacrônico,
Mera amizade, nem ao menos colorida,
Na frase tola tantas vezes repetida,
Nessa Ironia com que o chamam de platônico,
Para estímulo da inveja é algo de crônico,
Talvez até mais raiva aqui surgida,
Sem o dedo poder ter sobre a ferida,
Em desaponto até mesmo supersônico.
Mas esta saga de amor semi-inocente
Ou de simples amizade realmente,
Para os demais nem parece ter um nexo,
A falsidade vendo ali subjacente,
Um rancor a suscitar mais inclemente
Por não poder participar de tal amplexo.
PLANGER III
Algumas vezes encontrei certa alegria,
Mesmo brilho de triunfo em tal olhar,
Quando alguns sinos escutam badalar,
Em dobre de finados, a
mostrar que outrem iria
Dormir no cemitério; de fato, pena fingiria,
Talvez até o cortejo a acompanhar,
Esse abutre mesquinho, a suspirar
Abertamente, que no oculto até riria.
Mas caso o sino anunciar um casamento,
Surge ao contrário reação bem cética
De que ao par possa trazer felicidade
E de fato, quase aberto sentimento,
A alma a trescalar qual fossa séptica,
Que as juras quebrem na maior facilidade!...
ASSOVIO I – 30 OUT 19
Razão sutil existe de esperança,
mesmo que o amor perdure insatisfeito,
para quem ama, sempre é dom perfeito
gozar do amor, à espera da bonança...
Porque a posse de um corpo, sem tardança,
Satisfação sensual como um direito,
Nesse abraço pelo social aceito,
Talvez do sonho desfaça a gentil dança...
Sonhar de amores é som de nostalgia,
viver de amores é idílio de poesia,
gozar de amores é apenas um momento:
Fiéis embora perdurem os amantes,
os sentimentos frágeis, rebrilhantes,
fáceis se esvoam num sibilar de vento...
ASSOVIO II
Na maioria, só persiste a excitação
Durante esse período de aguardança;
Posse obtida, o corpo em breve cansa
E lança olhares de cobiça e expectação
Para outro alvo qualquer de sedução
E quando dele a aquiescência alcança
Cumprida a liça dessa inquieta lança,
Em torno busca por uma nova aceitação.
Em geral, para a mulher, é algo diverso,
Não é a busca de um semeador disperso,
Mas segurança para ter reprodução,
Que guarneça um lar seguro e conservado,
Mantendo firme os filhos de seu lado
E um companheiro a lhe mostrar dedicação.
ASSOVIO III
Mas a tragédia é que, após ser alcançado
O objetivo da conjunção carnal,
Logo lhe abranda o impulso do sensual,
Seu companheiro a deixar desapontado.
Talvez por isso tanto par é separado,
Sente o marido uma traição casual:
Por mais amor, é o ato conjugal
Que enfim o prende ao peito desejado.
Melhor então é contrariar-se a biologia,
Que se cultive o amor de nostalgia,
Rubro botão jamais desabrochado,
Mas que na alma permance florescente,
Plena a ilusão do amor que se queria,
Que satisfeito, jamais seria assim
plangente.
MATRIMÔNIO I – 31 OUT 19
Retrato de sonhos perdidos na calma
Do plácido enlace e na satisfação
Da carne saciada que o sêmen embalma
Em vínculos simples de amor sem paixão.
Encanto sutil, domesticada a alma
Na bruma anestésica que traz refeição
Manhoso veneno, acalanto de palma,
De ir a outro porto desfazendo a Intenção.
Coleira gentil, mas corrente de ferro,
Que em mão voluntária prendemos à gorja
E assim trucidamos dos sonhos a corja...
Que morre sem gritos, suspiros ou berro,
Esvai-se civil, num bafejo gelado
E o corpo se engorda em sepulcro dourado...
MATRIMÔNIO II
Até que então venha, avaliando sua presa,
Alguém que pretenda desfazer a corrente
Da aliança dourada que na mão se apresente
E lance seu bote veloz em presteza...
Então se desfaz, subitânea, a lerdeza,
Enquanto o desejo no ventre se assente,
Que há mais sedução nesse salto infrequente
Que no velho recinto da antiga certeza...
O que a presa não pode em nada ter tino
É que a tal caçadora só o quer devorar,
Mesmo que a carne venha toda a lhe deixar;
Igual que a primeira, tem alvo ferino,
Sagrada que seja essa busca do lar,
Quer o doce roubado em gentil desatino.
MATRIMÔNIO III
Na verdade, eis o efeito da monogamia,
Diversa a tendência em povo oriental:
Comprar concubina não faz qualquer mal,
Satisfaz ao marido e a si mesma alivia,
Mantido o controle em feroz hierarquia,
Que a segunda pratique o dever conjugal,
Mas depois a auxilie no matrimonial:
Mesmo filhos a resultar de tal poligamia.
O sepulcro dourado já é mais confortável,
Carinho se ganha da novel carcereira,
Os olhos mantidos no lar em recato.
Não tem o Ocidente um pendor tão amável:
Depressa o ciúme desvenda a maneira
De impor o azedume nesse triplo contato!...
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