segunda-feira, 23 de novembro de 2020


DONS GRATUITOS EM AZUL





 (AFRESCO DE POMPEIA)
 

DONS GRATUITOS I – 26 OUT 19

 

Existe algum motivo que os deuses adorados

Pelos humanos fossem, se a vida fosse eterna?

Por que madura o óvulo no ventre de uma terna

Donzela adolescente, senão por consagrados

 

Ideais reprodutivos, da biologia os dados

Um só espermatozóide permitem na caverna,

Sua vasta multidão a ressecar se alterna

Por que um somente alcance os fins buscados,

 

e nova vida produza, estuante de esperança.

Essa que traem para uma vida de estertores

Esses deuses solertes, que nos atribularam

 

Com pragas e desditas, rigor que não descansa...

Os deuses são sagazes. Pois só nos dão as dores

Por que sejamos gratos, depois que as afastaram.

 

DONS GRATUITOS II

 

Por que, afinal, essa deusa biologia

Um só espermatozóide escolhe preservar,

Enquanto a multidão condena a ressecar,

Por que somente um se funda e, em sintonia,

 

Somente um humano sobre o mundo marcharia,

Sobrevivente individual do massacrar,

Como as folhagens no solo faz pousar,

Serapilheira amontoada sem valia...?

 

Qual a razão por que pereçam tantos,

Agitando as caudinhas inocentes,

Sem conseguir chegar a seu destino,

 

Metade sobe a trompa errada em desencantos,

Mesmo que chegam até o óvulo, vibrantes,

Morrem ali, desprezados de inopino...

 

DONS GRATUITOS III

 

Por certo existe o cone de atração,

Que um só escolhe deliberadamente,

Mas que critério possui essa semente

Para escolher qual lhe dará fecundação,

 

Deixando os outros morrer, sem compaixão?

Algo de químico existe ali, somente,

Algo de elétrico nessa atração potente,

Alguma escolha racional nessa ocasião?

 

Tal qual se a alma já no óvulo habitasse

E para si escolhesse o melhor pai?

Ou tudo é fruto da casualidade,

 

Ou então existe uma causalidade,

Que nessa simples membrana se estampasse,

Selecionando essa genética que atrai?

 

DONS GRATUITOS IV

 

Só imagino quantos de meus irmãos

Pereceram para que eu sobrevivesse...

Aqui estou eu, porém que fado tece

Linhas de cânhamo no tear das seleções?

 

Nesse pecado original das mutações

Será assassino quem aos demais vencesse

Ou só o óvulo é o carrasco que se esquece

Dos sonhos mortos de tantas multidões?

 

E por que, à medida em que crescemos,

Tanta criança não chega à idade adulta

E cada guerra tanta vida então oculta

 

E as doenças nos tornam ainda menos?

Qual força mística preside esse massacre,

Que sobre a língua me deixa um gosto acre?

 

MICÇÃO DIVINA I – 27 OUT 19

 

pois é de noite que os sonhos me visitam,

mas não durante o sono, que tão breve

é o tempo em que ressono, que o almocreve

das ilusões seus fardos não cogita(m)

sequer trazê-los; meus sonhos são concretos:

a musa senta a meu lado, onde já esteve;

o deus risonho traz, em canto leve,

fragmentos de horror, tão indiscretos

são os profetas de futuras mágoas;

minha mente povoam, sem tardanças,

esses fantasmas nus, essas crianças

revoltas de um passado impenitente.

E eu nado assim, me afogo nessas águas

que o fado urina em mim, indiferente.

 

MICÇÃO DIVINA II

 

Nessa micção não se encontra malefício:

afinal, são compostos de nitratos

esses líquidos rins e os tristes fatos

são que sem eles algo falta em meu ofício.

 

De insensatez a micção traz um resquício,

mortos no antanho, são versos tumefatos,

há muito expostos a dichotes e boatos,

acostumados ao adubo como em vício.

 

Nem todo o sangue dos poetas mortos

se coagulou em pardos hematomas;

em ácido nítrico secou-se parcialmente

 

e assim ressurge nesses versos tortos;

sobe do chão em nauseabundas gomas,

meus pés envolve em jalde indiferente.

 

MICÇÃO DIVINA III

 

Que não te agradam, eu sei perfeitamente,

nem me agrada esta paródia de soneto,

mas nem tudo que existe é um bem dileto

e nem tudo que se escreve agrada à gente.

 

Melhor fazê-lo atabalhoadamente,

motivo dando a razoável desafeto,

sem desprezos remoídos em secreto,

à real crítica fornecer razão potente.

 

Mas nem me agradam; eu sei que me excedi

tudo é diverso de meu canto mais gentil,

mas foram deuses do maugrado que enviaram,

 

nesta temática em que a alma até feri

e o azedume não é meu; fui só o buril

que sobre enxofre gravou quanto mandaram.

 

EM VOOS EVENTUAIS I – 28 OUT 19

 

É a condição humana, com certeza!...

Depois que chegas à idade do "com-dor",

Talvez as cores ainda tragam seu calor,

Talvez a vida ainda apresente igual beleza...

 

Mas esse nome descreve com presteza

As decadências da carne em seu palor:

Pois a troco de uma breve hora de amor,

Trinta dores chegarão sem sutileza...

 

Não que em mim seja corrupção da idade:

Castigo recebi da fatal digitação,

Na minha insistência em teclar poesidade,

 

Costas moídas por insalubre posição;

Do olhar fixo posta à prova a intensidade,

As juntas duras ao completar cada missão!

 

EM VOOS EVENTUAIS II

 

Tal trocadilho até causa um certo espanto,

Pois o condor é um pássaro altaneiro,

Cruzando os ares com ardor certeiro,

Remígios a bater sem qualquer pranto, (*)

(*) Longas penas da ponta das asas que dão orientação ao voo.

 

Asas cobertas por um sedoso manto,

Mas que muitas penas tem é verdadeiro,

Sua proteção contra o vento bem ligeiro,

Na cordilheira a assobiar seu forte canto.

 

Mas as penas de quem se torna portador

De sete décadas diversa têm função,

Alacremente a nos brindar com dor

 

E ao mesmo tempo nos dão um certo orgulho,

Sugere o nome sempre ardor de reação

E não o ardor que à energia traz esbulho!

 

EM VOOS EVENTUAIS III

 

Que sentar ante o teclado me faz mal

É um processo que de há muito percebi,

Sem mentira apresentar, até encolhi,

Forçando as vértebras em posição fatal.

 

Mas que fazer, se é um castigo consensual

Passar a limpo os mil rascunhos que escrevi!

Por muitos meses eu até me recolhi,

Meu esqueleto agradecendo, é natural...

 

Mas tais palavras insistem em voar

E assim retorno – infeliz – para o teclado,

Condor serei, mas somente em digitar,

 

Com dor cada poema a te enviar...

Mesmo que esteja de artrite dispensado,

Tanta pena nos meus joelhos já é um cocar!

 

PLANGER I – 29 OUT 19

 

Nós abusamos: ficamos muito unidos,

Nossa amizade deu muito na vista,

Num esplendor amargo de conquista,

Que os melindres alheios tem ferido...

 

Nós abusamos, em magia concebidos

E se há uma coisa que do ódio traga a pista

É que ser feliz de amor um par insista,

Sem por tragédia no final ser perseguido.

 

Nós abusamos: fomos dois meninos,

Inconscientes, cumprindo desatinos,

Num bimbalhar de sinos e ilusão...

 

Sem compreender que os sinos a rebate

Marcam o fim apenas do combate,

Mas nunca do amargor no coração.

 

PLANGER II

 

Mesmo que seja esse amor só diacrônico,

Mera amizade, nem ao menos colorida,

Na frase tola tantas vezes repetida,

Nessa Ironia com que o chamam de platônico,

 

Para estímulo da inveja é algo de crônico,

Talvez até mais raiva aqui surgida,

Sem o dedo poder ter sobre a ferida,

Em desaponto até mesmo supersônico.

 

Mas esta saga de amor semi-inocente

Ou de simples amizade realmente,

Para os demais nem parece ter um nexo,

 

A falsidade vendo ali subjacente,

Um rancor a suscitar mais inclemente

Por não poder participar de tal amplexo.

 

PLANGER III

 

Algumas vezes encontrei certa alegria,

Mesmo brilho de triunfo em tal olhar,

Quando alguns sinos escutam badalar,

Em dobre de finados,  a mostrar que outrem iria

 

Dormir no cemitério; de fato, pena fingiria,

Talvez até o cortejo a acompanhar,

Esse abutre mesquinho, a suspirar

Abertamente, que no oculto até riria.

 

Mas caso o sino anunciar um casamento,

Surge ao contrário reação bem cética

De que ao par possa trazer felicidade

 

E de fato, quase aberto sentimento,

A alma a trescalar qual fossa séptica,

Que as juras quebrem na maior facilidade!...

 

ASSOVIO I – 30 OUT 19

 

Razão sutil existe de esperança,

mesmo que o amor perdure insatisfeito,

para quem ama, sempre é dom perfeito

gozar do amor, à espera da bonança...

 

Porque a posse de um corpo, sem tardança,

Satisfação sensual como um direito,

Nesse abraço pelo social aceito,

Talvez do sonho desfaça a gentil dança...

 

Sonhar de amores é som de nostalgia,

viver de amores é idílio de poesia,

gozar de amores é apenas um momento:

  

Fiéis embora perdurem os amantes,

os sentimentos frágeis, rebrilhantes,

fáceis se esvoam num sibilar de vento...

 

ASSOVIO II

 

Na maioria, só persiste a excitação

Durante esse período de aguardança;

Posse obtida, o corpo em breve cansa

E lança olhares de cobiça e expectação

 

Para outro alvo qualquer de sedução

E quando dele a aquiescência alcança

Cumprida a liça dessa inquieta lança,

Em torno busca por uma nova aceitação.

 

Em geral, para a mulher, é algo diverso,

Não é a busca de um semeador disperso,

Mas segurança para ter reprodução,

 

Que guarneça um lar seguro e conservado,

Mantendo firme os filhos de seu lado

E um companheiro a lhe mostrar dedicação.

 

ASSOVIO III

 

Mas a tragédia é que, após ser alcançado

O objetivo da conjunção carnal,

Logo lhe abranda o impulso do sensual,

Seu companheiro a deixar desapontado.

 

Talvez por isso tanto par é separado,

Sente o marido uma traição casual:

Por mais amor, é o ato conjugal

Que enfim o prende ao peito desejado.

 

Melhor então é contrariar-se a biologia,

Que se cultive o amor de nostalgia,

Rubro botão jamais desabrochado,

 

Mas que na alma permance florescente,

Plena a ilusão do amor que se queria,

Que satisfeito, jamais seria assim plangente.

 

MATRIMÔNIO I – 31 OUT 19

 

Retrato de sonhos perdidos na calma

Do plácido enlace e na satisfação

Da carne saciada que o sêmen embalma

Em vínculos simples de amor sem paixão.

 

Encanto sutil, domesticada a alma

Na bruma anestésica que traz refeição

Manhoso veneno, acalanto de palma,

De ir a outro porto desfazendo a Intenção.

 

Coleira gentil, mas corrente de ferro,

Que em mão voluntária prendemos à gorja

E assim trucidamos dos sonhos a corja...

 

Que morre sem gritos, suspiros ou berro,

Esvai-se civil, num bafejo gelado

E o corpo se engorda em sepulcro dourado...

 

MATRIMÔNIO II

 

Até que então venha, avaliando sua presa,

Alguém que pretenda desfazer a corrente

Da aliança dourada que na mão se apresente

E lance seu bote veloz em presteza...

 

Então se desfaz, subitânea, a lerdeza,

Enquanto o desejo no ventre se assente,

Que há mais sedução nesse salto infrequente

Que no velho recinto da antiga certeza...

 

O que a presa não pode em nada ter tino

É que a tal caçadora só o quer devorar,

Mesmo que a carne venha toda a lhe deixar;

 

Igual que a primeira, tem alvo ferino,

Sagrada que seja essa busca do lar,

Quer o doce roubado em gentil desatino.

 

MATRIMÔNIO III

 

Na verdade, eis o efeito da monogamia,

Diversa a tendência em povo oriental:

Comprar concubina não faz qualquer mal,

Satisfaz ao marido e a si mesma alivia,

 

Mantido o controle em feroz hierarquia,

Que a segunda pratique o dever conjugal,

Mas depois a auxilie no matrimonial:

Mesmo filhos a resultar de tal poligamia.

 

O sepulcro dourado já é mais confortável,

Carinho se ganha da novel carcereira,

Os olhos mantidos no lar em recato.

 

Não tem o Ocidente um pendor tão amável:

Depressa o ciúme desvenda a maneira

De impor o azedume nesse triplo contato!...

 


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