TRAVESSIA
A bordo vinham meus sonhos;
antigamente
usavam uniformes, brava gente,
a enfrentar garbosamente oceanos.
Eram sonhos reais; na fugidia
luz da manhã o seu olhar luzia,
contemplado, a sorrir, por
veteranos...
que doutras tantas viagens navegavam
e sabiam como os mares destratavam
os sonhos jovens nas ondas
refulgentes:
que muito em breve, essas tranquilas
ondas
seriam mais profundas do que as
sondas
e os sonhos não seriam suficientes.
Nem é que houvessem tantas
tempestades,
foi mais a calmaria, as saciedades,
a despertar em minhalma a sensação
de que tudo era inútil desatino,
que a multidão dos sonhos de menino
não era mais que vaga exaltação
Seguiram no navio, trocando as velas,
aqueles pobres sonhos, já sequelas
do que antes tinham sido; inquietação
constante no intestino, enjoo manso,
sabendo que esforçar-se sem descanso
não impediria a sua lenta esgalhação.
Foram sendo superados, um a um,
amorteceram; afogou-se algum,
porém a maioria adormeceu.
Do olhar se foi a luz – ficou
desdita,
a luta se manteve, nessa aflita
contemplação de um ser que não
morreu,
mas não vive tampouco, nessa mágoa
inconsequente de trilhar a tábua
sempre oscilante do velho tombadilho:
percepção constante e visceral,
que não importa o ardor mais triunfal
no oceano da vida; escuro e brilho
independem de nós, são aleatórios,
os ventos nos arrastam, peremptórios
e o bem e o mal nos chegam sem
esforço.
Sobreviveram os sonhos resistentes,
porém sabendo que muito mais potentes
são o acaso e a aleivosia, seu reforço.
Assim os sonhos passaram a cumprir
ordens
dos desgostos, das pragas, das
desordens,
tornaram-se confiáveis e obedientes,
esperando, talvez, terminaria
em um porto essa viagem, dia a dia,
contrário o vento e de tufões
frequentes...
E a bordo vêm meus sonhos, no
presente,
esfarrapados, magoados, no impotente
esforço de cumprir tanta rotina,
roídos de escorbuto, doidos, fracos,
escravos da esperança, pobres cacos,
com lustro ainda ao fundo da
retina...
RECORDAÇÃO IX
Não sei se insisti eu, ou se foi ela:
A trança era dourada e seus cabelos,
Longos, sedosos, nos mais sutis desvelos,
E como me aprouvera ora revê-los!...
Um dia me chamou, de sua janela,
Conversamos os dois, pela retorta
Da alquimia abriu-se aquela porta:
Uma trilha segui; e outra foi morta.
E nunca nos amamos, mas que espanto
O prazer de seus braços, quando o pranto
Escorria de meu ventre para o seu...
Foram tão dolorosos tais amores!...
Ela me encheu de orgasmo e resplendores,
Seu coração, porém, nunca me deu!...
RECORDAÇÃO X
Apenas a delícia na memória
Me resta agora, foi-se toda a mágoa,
Lembram somente um perpassar de glória
Meus olhos duros, dantes rasos d'água...
Foi minha tantas vezes... No entretanto,
Era meu corpo só que ela queria;
E quando não quis mais, perdi meu pranto,
Porque seu peito jamais convenceria...
Nunca me foi fiel, era inconstante,
Para ela fui tão só mais um amante,
Na zombaria do esposo que ultrajava.
E eu... deveria me dar por satisfeito...
Embora fosse o traidor, pelo direito,
Traído me senti, tanto que a amava!...
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