terça-feira, 17 de novembro de 2020


  

TRAVESSIA

A bordo vinham meus sonhos; antigamente

usavam uniformes, brava gente,

a enfrentar garbosamente oceanos.

Eram sonhos reais; na fugidia

luz da manhã o seu olhar luzia,

contemplado, a sorrir, por veteranos...

 

que doutras tantas viagens navegavam

e sabiam como os mares destratavam

os sonhos jovens nas ondas refulgentes:

que muito em breve, essas tranquilas ondas

seriam mais profundas do que as sondas

e os sonhos não seriam suficientes.

 

Nem é que houvessem tantas tempestades,

foi mais a calmaria, as saciedades,

a despertar em minhalma a sensação

de que tudo era inútil desatino,

que a multidão dos sonhos de menino

não era mais que vaga exaltação

 

Seguiram no navio, trocando as velas,

aqueles pobres sonhos, já sequelas

do que antes tinham sido; inquietação

constante no intestino, enjoo manso,

sabendo que esforçar-se sem descanso

não impediria a sua lenta esgalhação.

 

Foram sendo superados, um a um,

amorteceram; afogou-se algum,

porém a maioria adormeceu.

Do olhar se foi a luz – ficou desdita,

a luta se manteve, nessa aflita

contemplação de um ser que não morreu,

 

mas não vive tampouco, nessa mágoa

inconsequente de trilhar a tábua

sempre oscilante do velho tombadilho:

percepção constante e visceral,

que não importa o ardor mais triunfal

no oceano da vida; escuro e brilho

 

independem de nós, são aleatórios,

os ventos nos arrastam, peremptórios

e o bem e o mal nos chegam sem esforço.

Sobreviveram os sonhos resistentes,

porém sabendo que muito mais potentes

são o acaso e a aleivosia, seu reforço.

 

Assim os sonhos passaram a cumprir ordens

dos desgostos, das pragas, das desordens,

tornaram-se confiáveis e obedientes,

esperando, talvez, terminaria

em um porto essa viagem, dia a dia,

contrário o vento e de tufões frequentes...

 

E a bordo vêm meus sonhos, no presente,

esfarrapados, magoados, no impotente

esforço de cumprir tanta rotina,

roídos de escorbuto, doidos, fracos,

escravos da esperança, pobres cacos,

com lustro ainda ao fundo da retina...

 

 

RECORDAÇÃO IX   

 

Não sei se insisti eu, ou se foi ela:

A trança era dourada e seus cabelos,

Longos, sedosos, nos mais sutis desvelos,

E como me aprouvera ora revê-los!...

 

Um dia me chamou, de sua janela,

Conversamos os dois, pela retorta

Da alquimia abriu-se aquela porta:

Uma trilha segui; e outra foi morta.

 

E nunca nos amamos, mas que espanto

O prazer de seus braços, quando o pranto

Escorria de meu ventre para o seu...

 

Foram tão dolorosos tais amores!...

Ela me encheu de orgasmo e resplendores,

Seu coração, porém, nunca me deu!...

 

RECORDAÇÃO X

 

Apenas a delícia na memória

Me resta agora, foi-se toda a mágoa,

Lembram somente um perpassar de glória

Meus olhos duros, dantes rasos d'água...

 

Foi minha tantas vezes... No entretanto,

Era meu corpo só que ela queria;

E quando não quis mais, perdi meu pranto,

Porque seu peito jamais convenceria...

 

Nunca me foi fiel, era inconstante,

Para ela fui tão só mais um amante,

Na zombaria do esposo que ultrajava.

 

E eu... deveria me dar por satisfeito...

Embora fosse o traidor, pelo direito,

Traído me senti, tanto que a amava!...

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário