(AVA GARDNER)
RAZÃO DE AUSÊNCIA I – 13 NOV 2019
Agora eu sei por que razão havia parado,
nada de místico e nem sentimental,
foi por motivo totalmente material
que a interromper os versos fui levado.
Coisa tão simples... meu olhar foi afetado
pelo brilho cintilante e inatural
dos pixels da tela, o tremeluzir fatal
dessa corrida permanente de seu fado,
causando ainda um dolorido colunar
que realmente as vértebras colou
na posição frequente e sedentária
e que a própria estatura me afetou,
por tantas horas sem me levantar,
na redação de tanta frase solitária...
RAZÃO DE AUSÊNCIA II
Até compreendo que agisse desse modo,
doze horas trabalhando a cada dia
pelos feriados então eu traduzia,
algum dinheiro a esperar, mas não a rodo,
a maior parte a se perder no lodo
desses impostos e das taxas que teria,
na ilusão de que alguma coisa lucraria
e não o gastasse simplesmente todo.
Sem dúvida, após meu triste incêndio,
a biblioteca, pouco a pouco, renovei,
comprei mil discos; selos ajuntei,
mas permanente foi o único estipêndio
das costas comprimidas e dos olhos,
prejudicados no caçar de triste espólios.
RAZÃO DE AUSÊNCIA III
Por isso havia parado mais de ano
e realmente, já me sentia bem melhor,
a um ponto tal de me julgar merecedor
de novamente atender a esse reclamo
das gráceis musas, de Dionysos soberano,
recomeçando a pagar-lhes meu penhor,
com pertinácia e até certo esplendor
e de repente, a contrariar tal plano,
a dor nas costas retornou alegremente,
contracenando com a dor articular
que ainda sentia, após tanto caminhar!
Até parece uma piada, certamente,
meu corpo gasto empós a inspiração,
já que não posso digitar com o coração!
CAMBIANTE I – 14 NOV 2019
Retraído o farol, o mistério se apaga,
Na escuridão total de atroz revelação,
Onde não mais reluz o ardor e a exaltação
Da delícia/incerteza que nalma a carne alaga.
Quando a noite se esvai, as cores se retiram
(E surge a escuridão servil da luz do dia,
Desfaz-se na ilusão o sabor de nostalgia)
Que nalba tremeluzem e ao dealbar rutilam.
Que as cores da alvorada são cores de incerteza,
De rosicler fingido, que esbate nessa usança
E apaga o verdigris do sonho e da esperança.
E assim afirma o ideal calor da mór beleza:
Só vive na poesia, só tem do amor o açoite
Quem cores pode ver na mais escura noite.
CAMBIANTE
II
Talvez me digas ser apenas simbolismo,
“todos os gatos são pardos,” diz ditado,
“durante a noite”, no cambiante
acinzentado,
só nessa gradação a existir real verismo...
Mas é à noite que desperta o romantismo,
pelo esplendor diurno dominado;
na lágrima da amada vê-se um tom salgado
de anil e heliotrópio em claro abismo
em que me arrojo e vejo refletir
no sínople e magenta de sua boca,
cada gotícula de jalde a me sorrir
e nas suas faces contemplarei arminho,
blau nos cabelos quando mecha toca
meu rosto prata em gesto de carinho...
CAMBIANTE
III
E sobre a relva enxergarei garança,
será terra de siena cada tronco,
das matilhas de cães dourado ronco,
gatos miando numa íris de bonança...
mesmo no pio da coruja fúchsia dança,
vejo ametista em um jumento bronco
e turmalinas em cada espinho adunco,
bdélio sopra o vento da esperança,
o crisopraso a pintalgar cada colina,
o próprio ônix com um negror amortecido,
em sárdio e ródio brota a fonte pequenina
e se não podes ver cobalto nessas furnas,
eu te lastimo por teu grisáceo olvido
dessas mil cores da profusão noturna!...
FAINA I – 15 nov 19
Tu sabes bem, mulher, o quanto fazes,
Em teus gestos de ausência e de abandono,
De quanta vez, a murmurar de sono,
Me negas de teu leito etéreas gazes...
Mas quanta vez vem num sussurro o abono
Desse convite que com o olhar me fazes,
Na luta do prazer, após tranquilas pazes
Quando teu coração do meu é inteiro dono...
E noutras vezes, eu sinto uma peninha,
Talvez maior que quanta dor eu sinta,
Que para amor teu corpo não consinta.
É que eu entendo a sorte bem mesquinha
De quem podia ungir-se de rainha
E não se unge, por que ardor não
sinta.
FAINA II
Pois nas vezes em que trais esse convite
Apenas com teus olhos indiscretos,
A pretender-me prazeres tão secretos
Que o coração só de pena já se agite,
Pois não sei bem qual seja o que te incite
A negar e a prodigar tantos afetos,
Quais sentimentos em ti gestas como fetos,
Que estranho instinto o proceder te dite...
Qual a incerteza que tens no coração,
Qual a armadilha de noção arguta,
Qual a certeza que constrói o teu domínio,
Qual fantasia a temperar cada emoção,
Qual estratégia a te tornar astuta,
Nessa rede multicor de teu fascínio...
ARGANAZES I – 16
nov 2019
[ratos do campo]
Meus olhos te encontraram e viram refletida
A mesma estrela mesma que em meu olhar luzia,
A meiga e morna estrela de ardor-feitiçaria
A espadanar centelhas de almácegos e vida!
Meus olhos te encontraram, no ardor daquele instante,
Na morna estrela meiga, na mansa e morna estrela,
Fecunda e ribombante, na estrela mais singela,
Que a carne incentivava a um rumo palpitante!
A crocitar num chio bem fundo ao cerebelo,
Fragor ocipital, sonhar em que rebelo
À minha vida fugaz o quanto mais ressinto:
Debicando em minhalma o tumular flagelo
Que explode num vigor de cego que, pressinto,
É o sangue trasmutado em mel e vinho tinto!
ARGANAZES II
Os arganazes são meigos
roedores,
Colhendo nozes, raízes e
sementes
Acumuladas em túneis,
previdentes,
Para o inverno enfrentar
sem mais temores.
Teus olhos são
igualmente possuidores,
Colhendo sonhos,
fantasias impotentes,
Mesclando a minha à tua,
duas mentes
Que então serão de um só
abrigo os moradores.
Mas os teus olhos,melífluas
armadilhas,
Capturaram os meus num
estalido,
Numa ratoeira de ferro e
amor fundido,
As duas pupilas
perigosas trilhas,
Dentro da tua a
armazenar-me a alma,
Para o desfruto hibernal
em plena calma...
ARGANAZES III
Mas ao invés de me prenderem
numa toca
Que o brilho abafaria de
uma estrela,
Por mais morna que fosse
e mais singela
Me acorrentaram aos
cantos de tua boca,
Cada beijo a
envenenar-me de ânsia louca,
Queimado nessa luz que
sempre vela
De teus olhos, nessa
mais profunda cela,
Quando no meu o teu
olhar se enfoca...
Assim meu sangue, por
estrela temperado,
Diverso corre do que
corria no passado,
Interligado ao teu em
transfusão,
O meu desejo a fluir do
cerebelo,
Agrilhoado mas feliz
nesse teu zelo,
Com que me róis,
lentamente, o coração.
EX-VOTO I – 17 nov 19
Ao ver me procuravas,
desconfiado
fiquei, sem saber quê me
querias:
seria apenas por vãs
aleivosias,
ou por me desejares do teu
lado?
Ao ver que te sentavas de meu
lado
nem sabia se gozava de alegrias
ou se ao contrário, só
tristezas me trarias,
o cérebro a agitar-se
perturbado...
Ainda nutrindo certas
esquivanças,
tantas tolices, na espera de
alianças
que rejuntassem o teu destino
ao meu,
esperando, sem tardo, que em
alegria
desta amizade sincera que eu
previa,
meu coração beijar pudesse o
teu!—
EX-VOTO II
Não sei se fiz a Ártemis
promessa
de em seu altar depor meu
coração,
certamente sem queimá-lo na
ocasião:
somente íntegro o seu amor não
cessa;
mas de pingar, à medida em que
ele cresça,
gotas de sonho na ara da
aflição,
pois todo amor decorre de
ilusão,
por mais inteiro e profundo que
nos desça;
pois certamente não é um dom
gratuito,
a deusa antiga um certo preço
cobra:
que não devamos deixá-lo no
abandono,
nem o percamos num desdém
fortuito,
caso o façamos, nada mais nos
sobra,
sem brotar sonho num pesado
sono.
EX-VOTO III
Mas quando amor se revelou
selvagem,
não mais uma alegria comedida,
não mais uma atração
desconhecida,
só enfrentado por um ato de
coragem,
percebi que lhe devia
vassalagem,
que sua avatar me fora
concedida,
que esta mulher me tomara de
vencida,
nela habitando a caprichosa
imagem.
E nesse ímpeto de mística
miragem,
retirei meu coração qual um
ex-voto
e humilde o coloquei sobre seu
peito;
ela aceitou de meu sangue a
beberagem,
tomou no seu meu coração
devoto,
fez-se Afrodite com integral
direito!...
ESSÊNCIA I – 18 nov 2019
Mortal esse aroma que o vento trescala:
Desnuda em minhalma um sabor de arrepio,
De suspiro e deleite e de um leque arredio
De emoções e sentidos que a mente avassala.
Mortal é o perfume que o faro me abala,
Narinas sulcadas por fero assovio,
Sensuais na assunção mais primeva do cio
Na virgem angústia da ausência da gala.
Mortal é o perfume e apenas um toque:
Essas palmas se esbatem e estrugem a sós,
Ovacionam tecendo estridor de cipós
Que outralma aprisionam no estranho
berloque,
Da busca da glória na mente perdida
E no ardor da vitória na carne auferida...
ESSÊNCIA II
Mortal é o perfume que sobe nas palmas,
Sulcadas do aroma de um fero destino,
Roubadas da pele em sensual desatino
De quem nos encontra na angústia das almas.
No toque do ventre os dedos me embalmas,
Carícia inicial de audacioso menino,
Inocente exprimindo um desejo ferino,
Ainda inconsciente do exílio das calmas.
Só um toque irrequieto, tentativa inicial,
Sem suspeitar sequer de haver consumação,
Sentindo igualmente a maciez de sua mão,
Em mim curiosa, em sondagem bem sensual...
(Talvez hoje em dia coisa bem corriqueira,
Mas nunca se olvida a experiência
primeira!...)
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