sexta-feira, 27 de novembro de 2020



RAZÃO DE AUSÊNCIA



                                                                 (AVA GARDNER)


RAZÃO DE AUSÊNCIA I 13 NOV 2019

Agora eu sei por que razão havia parado,

nada de místico e nem sentimental,

foi por motivo totalmente material

que a interromper os versos fui levado.

Coisa tão simples... meu olhar foi afetado

pelo brilho cintilante e inatural

dos pixels da tela, o tremeluzir fatal

dessa corrida permanente de seu fado,

causando ainda um dolorido colunar

que realmente as vértebras colou

na posição frequente e sedentária

e que a própria estatura me afetou,

por tantas horas sem me levantar,

na redação de tanta frase solitária...

 

RAZÃO DE AUSÊNCIA II

Até compreendo que agisse desse modo,

doze horas trabalhando a cada dia

pelos feriados então eu traduzia,

algum dinheiro a esperar, mas não a rodo,

a maior parte a se perder no lodo

desses impostos e das taxas que teria,

na ilusão de que alguma coisa lucraria

e não o gastasse simplesmente todo.

Sem dúvida, após meu triste incêndio,

a biblioteca, pouco a pouco, renovei,

comprei mil discos; selos ajuntei,

mas permanente foi o único estipêndio

das costas comprimidas e dos olhos,

prejudicados no caçar de triste espólios.

 

RAZÃO DE AUSÊNCIA III

Por isso havia parado mais de ano

e realmente, já me sentia bem melhor,

a um ponto tal de me julgar merecedor

de novamente atender a esse reclamo

das gráceis musas, de Dionysos soberano,

recomeçando a pagar-lhes meu penhor,

com pertinácia e até certo esplendor

e de repente, a contrariar tal plano,

a dor nas costas retornou alegremente,

contracenando com a dor articular

que ainda sentia, após tanto caminhar!

Até parece uma piada, certamente,

meu corpo gasto empós a inspiração,

já que não posso digitar com o coração!

 

CAMBIANTE  I – 14 NOV 2019

 

Retraído o farol, o mistério se apaga,

Na escuridão total de atroz revelação,

Onde não mais reluz o ardor e a exaltação

Da delícia/incerteza que nalma a carne alaga.

 

Quando a noite se esvai, as cores se retiram

(E surge a escuridão servil da luz do dia,

Desfaz-se na ilusão o sabor de nostalgia)

Que nalba tremeluzem e ao dealbar rutilam.

 

Que as cores da alvorada são cores de incerteza,

De rosicler fingido, que esbate nessa usança

E apaga o verdigris do sonho e da esperança.

 

E assim afirma o ideal calor da mór beleza:

Só vive na poesia, só tem do amor o açoite

Quem cores pode ver na mais escura noite.

 

CAMBIANTE  II

 

Talvez me digas ser apenas simbolismo,

“todos os gatos são pardos,” diz ditado,

“durante a noite”, no cambiante acinzentado,

só nessa gradação a existir real verismo...

 

Mas é à noite que desperta o romantismo,

pelo esplendor diurno dominado;

na lágrima da amada vê-se um tom salgado

de anil e heliotrópio em claro abismo

 

em que me arrojo e vejo refletir

no sínople e magenta de sua boca,

cada gotícula de jalde a me sorrir

 

e nas suas faces contemplarei arminho,

blau nos cabelos quando mecha toca

meu rosto prata em gesto de carinho...

 

CAMBIANTE  III

 

E sobre a relva enxergarei garança,

será terra de siena cada tronco,

das matilhas de cães dourado ronco,

gatos miando numa íris de bonança...

 

mesmo no pio da coruja fúchsia dança,

vejo ametista em um jumento bronco

e turmalinas em cada espinho adunco,

bdélio sopra o vento da esperança,

 

o crisopraso a pintalgar cada colina,

o próprio ônix com um negror amortecido,

em sárdio e ródio brota a fonte pequenina

 

e se não podes ver cobalto nessas furnas,

eu te lastimo por teu grisáceo olvido

dessas mil cores da profusão noturna!...

 

FAINA I – 15 nov 19

 

Tu sabes bem, mulher, o quanto fazes,

Em teus gestos de ausência e de abandono,

De quanta vez, a murmurar de sono,

Me negas de teu leito etéreas gazes...

 

Mas quanta vez vem num sussurro o abono

Desse convite que com o olhar me fazes,

Na luta do prazer, após tranquilas pazes

Quando teu coração do meu é inteiro dono...

 

E noutras vezes, eu sinto uma peninha,

Talvez maior que quanta dor eu sinta,

Que para amor teu corpo não consinta.

 

É que eu entendo a sorte bem mesquinha

De quem podia ungir-se de rainha

E não se unge, por que ardor não sinta.

 

FAINA II

 

Pois nas vezes em que trais esse convite

Apenas com teus olhos indiscretos,

A pretender-me prazeres tão secretos

Que o coração só de pena já se agite,

 

Pois não sei bem qual seja o que te incite

A negar e a prodigar tantos afetos,

Quais sentimentos em ti gestas como fetos,

Que estranho instinto o proceder te dite...

 

Qual a incerteza que tens no coração,

Qual a armadilha de noção arguta,

Qual a certeza que constrói o teu domínio,

 

Qual fantasia a temperar cada emoção,

Qual estratégia a te tornar astuta,

Nessa rede multicor de teu fascínio...

 

ARGANAZES  I – 16 nov 2019

[ratos do campo]

 

Meus olhos te encontraram e viram refletida

A mesma estrela mesma que em meu olhar luzia,

A meiga e morna estrela de ardor-feitiçaria

A espadanar centelhas de almácegos e vida!

 

Meus olhos te encontraram, no ardor daquele instante,

Na morna estrela meiga, na mansa e morna estrela,

Fecunda e ribombante, na estrela mais singela,

Que a carne incentivava a um rumo palpitante!

 

A crocitar num chio bem fundo ao cerebelo,

Fragor ocipital, sonhar em que rebelo

À minha vida fugaz o quanto mais ressinto:

 

Debicando em minhalma o tumular flagelo

Que explode num vigor de cego que, pressinto,

É o sangue trasmutado em mel e vinho tinto!

 

 ARGANAZES  II

 

Os arganazes são meigos roedores,

Colhendo nozes, raízes e sementes

Acumuladas em túneis, previdentes,

Para o inverno enfrentar sem mais temores.

 

Teus olhos são igualmente possuidores,

Colhendo sonhos, fantasias impotentes,

Mesclando a minha à tua, duas mentes

Que então serão de um só abrigo os moradores.

 

Mas os teus olhos,melífluas armadilhas,

Capturaram os meus num estalido,

Numa ratoeira de ferro e amor fundido,

 

As duas pupilas perigosas trilhas,

Dentro da tua a armazenar-me a alma,

Para o desfruto hibernal em plena calma...

 

ARGANAZES  III

 

Mas ao invés de me prenderem numa toca

Que o brilho abafaria de uma estrela,

Por mais morna que fosse e mais singela

Me acorrentaram aos cantos de tua boca,

 

Cada beijo a envenenar-me de ânsia louca,

Queimado nessa luz que sempre vela

De teus olhos, nessa mais profunda cela,

Quando no meu o teu olhar se enfoca...

 

Assim meu sangue, por estrela temperado,

Diverso corre do que corria no passado,

Interligado ao teu em transfusão,

 

O meu desejo a fluir do cerebelo,

Agrilhoado mas feliz nesse teu zelo,

Com que me róis, lentamente, o coração.

 

EX-VOTO I – 17 nov 19

 

Ao ver me procuravas, desconfiado

fiquei, sem saber quê me querias:

seria apenas por vãs aleivosias,

ou por me desejares do teu lado?

 

Ao ver que te sentavas de meu lado

nem sabia se gozava de alegrias

ou se ao contrário, só tristezas me trarias,

o cérebro a agitar-se perturbado...

 

Ainda nutrindo certas esquivanças,

tantas tolices, na espera de alianças

que rejuntassem o teu destino ao meu,

esperando, sem tardo, que em alegria

desta amizade sincera que eu previa,

meu coração beijar pudesse o teu!—

 

EX-VOTO II

 

Não sei se fiz a Ártemis promessa

de em seu altar depor meu coração,

certamente sem queimá-lo na ocasião:

somente íntegro o seu amor não cessa;

 

mas de pingar, à medida em que ele cresça,

gotas de sonho na ara da aflição,

pois todo amor decorre de ilusão,

por mais inteiro e profundo que nos desça;

 

pois certamente não é um dom gratuito,

a deusa antiga um certo preço cobra:

que não devamos deixá-lo no abandono,

nem o percamos num desdém fortuito,

caso o façamos, nada mais nos sobra,

sem brotar sonho num pesado sono.

 

EX-VOTO III

 

Mas quando amor se revelou selvagem,

não mais uma alegria comedida,

não mais uma atração desconhecida,

só enfrentado por um ato de coragem,

 

percebi que lhe devia vassalagem,

que sua avatar me fora concedida,

que esta mulher me tomara de vencida,

nela habitando a caprichosa imagem.

 

E nesse ímpeto de mística miragem,

retirei meu coração qual um ex-voto

e humilde o coloquei sobre seu peito;

ela aceitou de meu sangue a beberagem,

tomou no seu meu coração devoto,

fez-se Afrodite com integral direito!...

 

ESSÊNCIA I – 18 nov 2019

 

Mortal esse aroma que o vento trescala:

Desnuda em minhalma um sabor de arrepio,

De suspiro e deleite e de um leque arredio

De emoções e sentidos que a mente avassala.

 

Mortal é o perfume que o faro me abala,

Narinas sulcadas por fero assovio,

Sensuais na assunção mais primeva do cio

Na virgem angústia da ausência da gala.

 

Mortal é o perfume e apenas um toque:

Essas palmas se esbatem e estrugem a sós,

Ovacionam tecendo estridor de cipós

 

Que outralma aprisionam no estranho berloque,

Da busca da glória na mente perdida

E no ardor da vitória na carne auferida...

 

ESSÊNCIA II

 

Mortal é o perfume que sobe nas palmas,

Sulcadas do aroma de um fero destino,

Roubadas da pele em sensual desatino

De quem nos encontra na angústia das almas.

 

No toque do ventre os dedos me embalmas,

Carícia inicial de audacioso menino,

Inocente exprimindo um desejo ferino,

Ainda inconsciente do exílio das calmas.

 

Só um toque irrequieto, tentativa inicial,

Sem suspeitar sequer de haver consumação,

Sentindo igualmente a maciez de sua mão,

 

Em mim curiosa, em sondagem bem sensual...

(Talvez hoje em dia coisa bem corriqueira,

Mas nunca se olvida a experiência primeira!...)

 


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