(VINTAGE ELIZABETH TAYLOR)
CONTRACEPTIVO I – 26 NOV 2019
Não é que eu queira parecer bonzinho,
mas realmente, não sei guardar rancor:
por mais que alguém me fira ou demonstre desamor,
a raiva que me inspira é fraca e, de mansinho,
igual que em ampulheta, cada menor grãozinho
escorre pelos dedos, em paz, sem estridor
qual fosse uma peneira segura com fervor
restando grão de ouro, por mais que pequeninho.
Sequer desejo aqui dizer que bem me faça
perdoar os outros --- em gesto meigo e doce.
Perdoa quem odeia ou quem amor perpassa
a quem por seu amor tão pouco amor lhe trouxe.
E o ódio para mim é estranha exaltação
que aborta sem apoio qualquer do coração.
CONTRACEPTIVO II
Minha índole é assim e o hormonal completa;
felicidade é coisa que a gente cria inteira,
mesmo que surja pequena dor ligeira
ou terrível incômodo que o fado mau excreta.
Qual antes mencionei, em saga de ampulheta,
Felicidade é o sol tapado com peneira,
ou água que transporta rancor, pura e brejeira,
alívio nos deixando bênção bem secreta.
Assim o meu pendor é um contraceptivo,
raiva e rancor não deixa que em mim se reproduzam,
pouco tempo os conservo, tão só na excitação.
Requer tanta energia guardar-se um ódio esquivo!
Meus outros interesses permito que o conduzam
e fico simplesmente a escrever outra canção.
CONTRACEPTIVO III
Talvez até pressinta que tal me prejudique,
que justamente é o ódio, quando catalisado
que conduz ao sucesso, até o ponto achado
de lhe dar ocasião para que se magnifique
e então se manifeste no auge de seu pique,
vingança derramando no alvo tão odiado,
num gesto violento ou sorrateiro dado,
que seja enfim saciada a raiva que nos fique;
mas tenho para mim que uma tal satisfação
acaba por deixar um vazio no coração:
o ódio satisfeito, o que ali alojar...?
Muito melhor então deixar que lento escoe,
sem esse maleficio que nosso peito roe,
para algo de mais útil poder-se realizar.
CONTROLE I
-- 27 nov 2019
Certas coisas existem, que até fisicamente
parecem-me impossíveis: o ódio, por exemplo,
exceto de um instante: o rosto que contemplo
posso enxergar envolto em véu vermelho e quente.
A frase de rancor talvez brote inclemente
e mesmo a violência, quiçá por um momento,
se torne então possível; porém o turbulento
e inquieto coração controlo incontinenti.
E logo traspassado o assomo de arrepio,
o ódio tremeluz e esvai-se, em mil tremores.
Minh'alma internamente retorce em estertores
e o punho entrecerrado, em gesto fugidio
deixa de ser crispado e assim não mais remói
o ódio dentro d'alma que a própria alma destrói.
CONTROLE
II
Chegado
o fim do dia, qual neopitagórico,
o
meu balanço faço, imparcial nessa ocasião,
sem
limitar-me apenas a qualquer meditação,
meus
erros a purgar num zelo paregórico;
se
ponderado agi, não permaneço eufórico:
sem
dar nas próprias costas tapas de aprovação;
também
dos atos bons é preciso contenção,
no
meio está a virtude, afirma o velho dórico.
Pois
o feito está feito – a palavra já escapou,
nem
é de desculpar-se aqui uma questão,
de
nada adiantará que alguém me dê perdão,
que
quer tenha ocorrido no passado se alojou,
somente
o dia futuro mantenho sobre a mão:
que
agir possa melhor no tempo que restou.
ORGANISMO I – 28 nov 19
Se eu comparar poesia à minha bexiga
Te causarei um choque, caro ouvinte?
Esquece, pois, o choque: mas pressinte
Que símile mais certa eu não consiga.
Pois para mim é assim: uma pressão
Que se acumula desde o baixo ventre,
Premindo o diafragma se adentre
Nos domínios sacrais do coração...
Que já numa explosão ruge de afeto
E sai a maquinar novo soneto
E para isso engaja olhar e mão;
E o verso se derrama multifário,
Qual ouro líquido em vaso sanitário
E o corpo inteiro se invade de emoção!...
ORGANISMO II
Se não gostaste da símile, lamento!
mas na poesia o corpo inteiro emprego,
por órgão algum eu mostro desapego,
o próprio cérebro a exalar-se em vento,
cada pulmão concede igual alento,
não são as pulsações que apenas lego
e minhas próprias entranhas não renego,
do fígado os hormônios ali assento.
Porque, afinal, a urina já foi sangue,
filtrado em ouro se tornou por cada rim,
preciosa para nós sua dupla gangue
e desse modo, se em urina me desfaço,
igual em ouro o verso jorrar faço,
que depois disso se perde para mim!...
ORGANISMO III
“Tudo que é humano me pertence,”
em Aretino se encontra a afirmação;
que não se pense ser só a humana ação,
por mais nobre ou mais vil que em nós se adense.
E se em São Paulo é preciso que se pense,
também nos disse que igual aceitação
tenham os membros que pouco honrados são,
que para todos é a graça que o mal vence.
Deste modo, talvez por vez primeira,
provalmente em estampa derradeira,
louvo o trabalho que executa minha bexiga,
tal qual louvo o que faz o coração,
o cérebro, meu fígado e o pulmão,
todo o organismo que enfim o verso intriga!
CONDÃO I – 29 nov 19
Com frequência, o que o povo mais despreza
Assume real beleza e singular,
Que, num momento, assalta o nosso olhar
E põe em dúvida quanto antes se preza...
Pois eu vou te dizer: das mais bonitas
Coisas que vi --- também mais desprezadas --
Foi contemplar na grama rejeitadas
Fezes cobertas de moscas esquisitas...
Os corpos verdes, de ouro cintilantes,
De azul e prata, em chispas de poesia,
A cintilar suas asas rebrilhantes,
Em uníssono zumbido de harmonia:
Como se fora um broche de diamantes
Abandonado assim na pradaria...
CONDÃO II
Não quero me gabar de ser sensível,
Mas foi apenas com olhos de poeta
Que contemplei beleza ali secreta,
Para os demais humanos invisivel.
Sei muito bem que é inexaurível
Esse apego que a um cientista afeta
Por coisa que aos demais seria infecta,
Nada é nojento se lhe for inteligível.
Mas eu não sou cientista, só um lampejo
Me surpreendeu ao passar pelo relvado
E a “jóia” encontrar do desleixado
Ou do infeliz que esperar não teve ensejo,
Mas foram moscas a me causarem tal surpresa
E à luz do sol me mostrar falsa beleza...
CONDÃO III
Não obstante, revoaram bem depressa,
Mal pressentiram minha aproximação,
Como um enxame ergueram-se do chão,
Qual um falso condão que revoar não cessa.
No mesmo instante, revelou-se a peça
Que originara em mim tanta ilusão,
Era um gestalt apenas,
dir-me-ão
Os psicólogos, configurada nessa
Figuração de desprezo até arquetípica.
Claro que tive subitâneo desaponto,
Não que uma jóia julgasse abandonada,
À natureza em cumprimento de obra cíclica;
Mas fui tomado por esse impulso tonto,
A minha surpresa assim glorificada!...
INEXPERIÊNCIA I – 30 nov 2019
O mais lindo do caso, é que não sinto
mais que alegria ao ver ideal adiado,
tal qual se virgem fosse, sem cansado
sentir o corpo gasto de absinto...
Minha tensão se foi: de renascer pressinto
junto de ti, qual jovem namorado,
meu peito se renova de encantado
teu beijo quente como vinho tinto...
E esse hesitar que aos trinta magoaria,
ao meu verdor apenas pequenino
de vinte anos, tanto amor traria...
Junto de ti, retornei a ser menino,
e as frustrações que adulto sentiria
tomei por dote meigo do destino!...
INEXPERIÊNCIA II
Não sei porque hoje me deixo recordar
acontecimentos entranhados no passado,
essas lembranças que havia bem guardado,
sem com tal revivescência me importar.
Conforme dizem, da vida no findar,
fica o presente meio descurado,
lembrando apenas seu antigo fado,
a mente inteira seus fantasmas a chamar.
Mas por enquanto, a memória do presente
se encontra em mim fiel e permanente,
sei muito bem o que fiz o dia inteiro;
mas “o alemão” talvez esteja à espreita
e ao devaneio a mente então sujeita,
do dia as memórias afastando bem ligeiro.
INEXPERIÊNCIA III
Talvez por isso hoje sinta-me inclinado
a registrar qualquer recordação,
sentindo pálida a presente situação,
por poucas coisas a sentir-me entusiasmado;
o certo é que hoje tudo tem lugar marcado,
não há surpresa envolvida na atuação,
hora escolhida para cada refeição,
cada tarefa ou passeio já esperado;
mas nem por isso me atolo na rotina
e ainda encontro surpresa pequenina
se, por exemplo, a esposa me sorri;
não que me seja tão raro um tal sorriso,
mas cada vez que embeleza o rosto liso,
lembro a esperança da primeira vez que a vi.
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