terça-feira, 17 de novembro de 2020

SOMBRA EM VERDE


                                                      (WANTON MELANIE BY LENNON)

 

SOMBRA  (1999?)

 

ela chegou, consigo trouxe a chuva,

para atiçar em mim o chumbo liquefeito,

ela me deu calor à margem do direito

e, com palavras mudas, estendeu-me a luva,

num gesto antigo assim, em tom de desafio,

se me dispunha então a tudo retomar,

as idas e retornos, hesitações de amar,

na calidez do inverno e gelidez do estio.

nem     sei

se  poderá

plantar-se,

novamente,

dentro     em

meu coração,

porém trouxe

me a semente

e pôs  dentro

dessa     luva

um só gérmen

igual        botão,

como se lastimara

a perda e que avaliara,

depois de tentar tudo e tudo experimentar,

maior fosse a constância que o drama da paixão.

(É uma árvore, mas provavelmente se desconfigurará.)

 

ESCUMADOR I – 5 OUT 2019

 

pois vou fazer um plágio de mim mesmo,

fingir que ainda sou puro, que inocentes

são ainda meus dedos e meus dentes,

meu fígado e meu sangue, que anda a esmo;

 

eu vou fingir então, que sou poeta,

se bem que nunca fui, sou ferramenta,

que de escrever maus versos se contenta,

brotando fundo da emoção de esteta...

 

porque poetas... há tantos por ai...

plagiando-se uns aos outros, sem vergonha,

de verter platitudes, em sabor vago e sem sal...

 

prefiro apenas mostrar quanto sofri,

que poeta não sou, porém quem sonha

em plagiar a si mesmo até o final...

 

ESCUMADOR II

 

há no plagiar-se até certa nobreza,

um grau solerte de fidelidade

àquilo que se tem como verdade

no próprio coração sem sutileza.

 

se eu repetir, com laivos de impureza

o quanto antes descrevi com probidade,

iludirei qualquer sinceridade,

a qual, coitada! se julgará certeza,

 

por mais que a sombra se tenha degradado

e em nuances alheias diluído,

seu limite exterior todo manchado

 

e a tal sinceridade amentirado

por tantos gases que a tenham poluído,

sem que possa distinguir quanto é roubado.

 

ESCUMADOR III 

 

é necessário limpar minha superfície,

porque lá dentro talvez encontre a mim,

tão diferente do inepto arlequim

que navegou pelos mares da imundície,

 

ainda julgando que a si mesmo repetisse,

porem trocando o trigo por capim;

e ao longo dessas décadas eu vim

buscando em vão o que a alma me nutrisse.

 

portanto, irei passar escumador,

descartar toda a camada superior,

depois filtrar o resto que sobrou,

 

talvez, enfim, achando o que plagiar,

que seja o pouco que de mim restou,

antes que a lama me viesse respingar.

 

TRIDENTES I – 6 out 19

 

outra porta fechou-se, pois se Ocupam

os servos do destino, sem Cessar,

sedulamente meus sonhos a Cortar, (*)

que nem me inquietam mais nem Preocupam

 

e nem sequer consigo me Abalar:

são essas coisas que os sonhos me Refutam,

vez após outra, e meu pendor Enlutam,

sem que vitórias venham-me Aliviar;

 

então eu sinto pisarem meu Sepulcro,

de cada vez que de minha vida o Fulcro

se pareça finalmente Alcandorar:

 

como se os deuses apenas Balouçassem

a cornucópia murcha e me Atiçassem

para poderem melhor me Espezinhar.

(*) com persistência, com dedicação

 

TRIDENTES II

 

embora Netuno porte o seu Tridente,

a tradição o atribuiu a Satanás;

talvez nisto acreditar nem sequer Vás,

mas foi o garfo proibido a toda a Gente,

 

durante a idade média Contundente:

só usavam facas e colheres como Pás;

até mesmo da cozinha alvo se Faz:

deviam os garfos duas pontas ter Somente!

 

feita a reforma, foi o garfo Absolvido,

sem ferir a quaisquer almas no teu Prato;

surgiu a higiene com maior Recato,

 

mesmo depois do alimento ser Erguido

com a mão, o garfo posto ainda de Lado,

tigela de água te alcançava algum Criado!

 

TRIDENTES III

 

ora, se fosse o deus netuno a me Inticar

com as pontas do tridente Cintilante,

sempre haveria um sacrifício nesse Instante,

que sobre as ondas se deveria Lançar!

 

só iria o seu tridente então Usar

para acalmar da borrasca o pior Montante,

ou aplacado o tal deus Inconstante,

só outras embarcações a Perturbar.

 

e se nas ondas então eu Mergulhasse,

talvez até madrepérolas me Desse

ou um abalone de tão belo Esplendor,

 

não que pérolas verdadeiras Esperasse,

mas que ao menos o propiciasse a Prece,

condescendendo em aplacar o seu Fragor!

 

TRIDENTES IV

 

naturalmente, antes dele  houve Nereu,

pai das nereidas, que talvez chames de Sereias,

em algumas tradições nisto dúvidas Semeias,

que havia nereidas tão só no mar Egeu,

 

mas as sereias lugar tinham de Apogeu

no mar mediterrâneo em vastas Teias;

alguns diziam desejar-te para as Ceias,

outros que apenas te afogar era o alvo Seu.

 

o próprio ulysses no mastro se Amarrou,

enquanto aos marinheiros Ordenava

os dois ouvidos com cera bem Tapar

 

e ao escutar-lhes o canto se Endoidou;

algum dos seus então o Sujeitava,

antes que as cordas pudesse Arrebentar!

 

TRIDENTES V

 

mas embora nossa escritura nada Diga

sobre esse tal demoninho tão Potente,

nenhuma menção nos credos que se Assente

e nem nos dez mandamentos se Consiga,

 

nem no pai nosso tal entidade Imiga

se mencione em qualquer ponto, Realmente,

aqui e ali se busca menção Indiferente

do tentador que do mal seja o Auriga.

 

já eu não creio em demônio Arquipotente,

o deus do mal cuja crença vem do Irã,

como escusa para a Responsabilidade,

 

pois de um diabo não precisa a Gente,

justificativa sendo disso sempre Vã,

para seus atos constantes de Maldade.

 

TRIDENTES VI

 

mas acredito haver o Mau-olhado,

a força bruta da feroz Inveja,

que teu destino azedamente Beija,

e te causa tuas derrotas ou Enfado.

 

em meu sepulcro qualquer que haja Pisado,

não o fez por acidez que ali se Enseja;

quem poderia me ajudar, Boceja,

quem de mim tem rancor, fica Acordado.

 

e desse modo, os servos do Destino

não são mais que sofredoras Criaturas,

que fazem mal a si mesmas mais que a Mim

 

e seu meu fado foi ser Pequenino,

as minhas quimeras são pobres, porém Puras

e refazê-las eu sempre soube Enfim!

 

INSPIRADOR I – 7 out 19

coroadas de cachos e gavinhas

as pisoeiras esmagam frescas uvas,

nas largas bordalesas: longas linhas

de esguichos as recobrem; como luvas

avermelham seus braços; tais quais meias

lhes sobem pelas pernas, quase ao ventre,

 

enquanto tu, Dionysos, incendeias

o fértil vinho que o fermento adentre.

 

após ser esmagado, ferve o mosto

e em álcool se transmuta, numa calma

transformação, que me afogueia o rosto,

ao ver meus sonhos a Teus pés imersos;

porque uvas não são: é o sangue d'alma

que se fermenta em vinho nestes versos.

 

INSPIRADOR II

já muita vez atribuí inteiramente

a Dionysos todos os meus versos,

por mais contrários lhe sejam ou perversos,

esse é o avatar em tudo mais potente;

quando me inclina a taça, suavemente

e me faz dela sorver sonhos dispersos,

 

quando seus cachos me espreme, controversos

e a mente inteira se expande, irreverente,

 

as pisoeiras a me pisar o coração,

o fígado e os pulmões, meu sangue todo

a esguichar-lhes aos ventres afogueados,

na glória instante de tal concepção

desses poemas que eu esparzo a rodo,

nestes mil versos por mim ensanguentados.

 

INSPIRADOR III

Não cabe a mim dizer que sou poeta,

se a chuva rubra dessa inspiração

recai em mim com plena aceitação

e alma e espírito inteiramente afeta;

em cada esguicho o mosto assim completa

sua trajetória de exsanguinação...

 

também meu sangue chove em amplidão

e para o vasto mundo se projeta.

 

mas nada é meu.  sou apenas o instrumento;

se pela rede difundi-los tento,

não é que busque a glória de meu nome,

mas por saber intrínseco o valor

e se em tua alma despertar-se algum ardor

é o mesmo ardor que a vida me consome.

 

TORQUE  I – 8 set 2019 

 

Eu sou a voz passiva do soneto,

A te tocar, ativa, o coração,

Por despertar-te nalma uma emoção

Adormecida e de esplendor discreto.

 

O que não quero é te dar algo secreto,

Passiva e estática em tal contemplação:

Quero mover-te, dar o alarme em ocasião

Que segura te faça em confidente afeto.

 

Tais versos não são meus: a ti pertencem;

Se, como câncer, por dentro me corroem,

É que me sinto exposto na mensagem

 

Que tenho a transmitir: eles me vencem

E assim minha carne e músculos destroem

Só por tornar-te ativa em tua coragem.

 

TORQUE  II

 

Pois sem querer de Dionysos desfazer,

Eu mudo o alvo desta romaria,

Na aguardança de que assim te levaria

A um fragmento de emoção reconhecer.

 

Toda a poesia não passa de ilusão,

Mas nem por isso assim te iludiria;

É verdadeiro o cunho da homilia,

Eu quero mesmo te alegrar o coração

 

E desfazer em ti toda a tristeza,

A dor tranquila da melancolia,

A dor pungente que sofres no esqueleto

 

E em peregrinação trago beleza,

Que te possa nuançar a nostalgia,

Meu coração ao teu tornar completo.

 

TORQUE  III

 

Em nada importam o custo e o sacrifício:

Já tanto dei de mim anteriormente,

Sem a mágoa te podar subjacente

E se a podei, não foi ato vitalício,

 

O meu trabalho emasculou-se em vício,

Pensando ser gentil, fui prepotente,

Quis imprimir em ti minha própria mente,

Com todas minhas canções e seu bulício,

 

Mas o que te busquei dar e buscarei,

O que pretendo transmitir-te agora

É o forte torque deste meu martírio,

 

Que todos vejam quanto amo e que amarei,

Enquanto fores só de mim senhora,

Meu coração a derreter-se em puro círio.

 

PERCEPÇÃO I – 9 set 19

Somos centro do mundo, cada um,

cada um de nós vê só pelos seus olhos,

teus olhos tudo medem, são escolhos

escolhos são do raro -- e do comum.

e do comum, a recriar-se algum,

para si tendo a medida dos abrolhos,

mudando o que rodeia em veros molhos,

em que encontrar o que pareça amor nenhum,

 

amor em si que temos por nós mesmos,

mas que os outros mantêm para si mesmos,

é a mais antiga ilusão que nos reclama.

porque caímos todos no mundéu

que nos armam os deuses, desde o céu,

quando nos fazem crer que alguém nos ama.

 

PERCEPÇÃO II

Mas Dionysos não ama essa trapaça,

nunca pretende nos dar eternidade,

transmite o seu amor só a ebriedade,

não qualquer desilusão que a gente esqueça;

não é o deusinho que nos arma peça

com as flechas do carcaz sem castidade;

o amor nos dá de transitoriedade

e nem espera de alguém que lhe agradeça,

 

pois igual o agradecer é transitório;

contudo, ele nos traz fecundidade,

sabendo que a parreira secará,

mas na próxima estação trará o cibório

de um novo vinho vertido sem maldade,

que já sabemos também se esgotará.

 

PERCEPÇÃO III

Centro do mundo nem a si mesmo considera:

é o deus do vinho e do mais rubro amor;

não nos contempla com olhos de senhor

e nem sequer adoração de nós espera;

somente o amor dessa estação nos gera

e após ser consumado em seu vigor,

lava-se a taça, sem grande estridor,

que alguma borra no coração se altera

 

e desse amor conserva-se a lembrança,

sem seu final em nada lamentar,

foi um frasco de vinho a se esgotar

e ao mesmo tempo nos dá certa esperança

de acharmos vinha em nova brotação,

cachos de amor suculentos na ocasião.

 

PSICOFAGIA I (Revisitada) – 10 out 2019

Pensei um dia conquistar tua alma

[Sem mais pensar], logo entreguei a minha,

Azul e floralmente, em comezinha,

Bancária transação, tranquila e calma,

 

Que a tua em mim subsistiria em palma,

Alma por alma, na riqueza dessa vinha,

Tristeza por confiança, certeza em pura linha,

Beleza a fecundar com dores dalma...

 

Mas como essa tua alma é facetada!

Nunca me deste sequer um fragmento,

Por todo o meu esforço, por tudo que sonhei,

 

Mesmo que antanho a tivesse devastada,

Tal alma foi egoísta, tragou-me de alimento,

Sem nada retribuir por tudo que lhe dei.

 

PSICOFAGIA II

 

Não sei dizer sequer se alma envelhece;

Ligada ao corpo é assim contaminada,

Mas se a velhice da alma é suspeitada,

Não se comprova a ancianidade que acontece.

 

Do mundo superior se crê que alma nos desce

E a nosso corpo se faz interligada,

Mas nenhuma independência é conservada,

É um todo só num lamento que se esquece;

 

Em tradição pode a alma ser vendida,

A bem do corpo de transitoriedade;

Outrem a pode dominar completamente,

 

Ou dada pode ser a quem se ama,

Se a alma alheia destarte se reclama,

Sem doação mútua a alma não consente.

 

PSICOFAGIA III

 

Em bem sabia o que podia acontecer,

Porém fui tolo em minha ingenuidade;

Julgava a troca com naturalidade

Se completar por amor e com prazer.

 

Pois no momento da barganha se fazer,

Nada se havia de perder na realidade,

Sem nos enriquecer em saciedade,

O que eu te desse iria em mim permanecer,

 

Enriquecido pelo amor que me trarias

E o que me desses se iria em ti fortalecer

Pelo vigor que da minha possuirias...

 

Mas ai de nós!  Que minhalma devolveste,

Sem que da tua nada tivesse a devolver:

Perdi tua alma e igual a minha assim perdeste...


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