(WANTON MELANIE BY LENNON)
SOMBRA (1999?)
ela chegou, consigo trouxe a
chuva,
para atiçar em mim o chumbo
liquefeito,
ela me deu calor à margem do
direito
e, com palavras mudas,
estendeu-me a luva,
num gesto antigo assim, em tom
de desafio,
se me dispunha então a tudo
retomar,
as idas e retornos, hesitações
de amar,
na calidez do inverno e gelidez
do estio.
nem sei
se poderá
plantar-se,
novamente,
dentro em
meu coração,
porém trouxe
me a semente
e pôs dentro
dessa luva
um só gérmen
igual botão,
como se lastimara
a perda e que avaliara,
depois de tentar tudo e tudo
experimentar,
maior fosse a constância que o
drama da paixão.
(É uma árvore, mas
provavelmente se desconfigurará.)
ESCUMADOR I – 5 OUT 2019
pois vou fazer um plágio de mim
mesmo,
fingir que ainda sou puro, que
inocentes
são ainda meus dedos e meus
dentes,
meu fígado e meu sangue, que
anda a esmo;
eu vou fingir então, que sou
poeta,
se bem que nunca fui, sou
ferramenta,
que de escrever maus versos se
contenta,
brotando fundo da emoção de
esteta...
porque poetas... há tantos por
ai...
plagiando-se uns aos outros,
sem vergonha,
de verter platitudes, em
sabor vago e sem sal...
prefiro apenas mostrar quanto
sofri,
que poeta não sou, porém quem
sonha
em plagiar a si mesmo até o final...
ESCUMADOR II
há no plagiar-se até certa
nobreza,
um grau solerte de fidelidade
àquilo que se tem como verdade
no próprio coração sem
sutileza.
se eu repetir, com laivos de
impureza
o quanto antes descrevi com
probidade,
iludirei qualquer sinceridade,
a qual, coitada! se julgará
certeza,
por mais que a sombra se tenha
degradado
e em nuances alheias diluído,
seu limite exterior todo
manchado
e a tal sinceridade amentirado
por tantos gases que a tenham
poluído,
sem que possa distinguir quanto
é roubado.
ESCUMADOR III
é necessário limpar minha
superfície,
porque lá dentro talvez
encontre a mim,
tão diferente do inepto
arlequim
que navegou pelos mares da
imundície,
ainda julgando que a si mesmo
repetisse,
porem trocando o trigo por
capim;
e ao longo dessas décadas eu
vim
buscando em vão o que a alma me
nutrisse.
portanto, irei passar
escumador,
descartar toda a camada
superior,
depois filtrar o resto que
sobrou,
talvez, enfim, achando o que
plagiar,
que seja o pouco que de mim
restou,
antes que a lama me viesse
respingar.
TRIDENTES I – 6 out 19
outra porta fechou-se, pois se Ocupam
os servos do destino, sem Cessar,
sedulamente meus sonhos a Cortar, (*)
que nem me inquietam mais nem Preocupam
e nem sequer consigo me Abalar:
são essas coisas que os sonhos me Refutam,
vez após outra, e meu pendor Enlutam,
sem que vitórias venham-me Aliviar;
então eu sinto pisarem meu Sepulcro,
de cada vez que de minha vida o Fulcro
se pareça finalmente Alcandorar:
como se os deuses apenas Balouçassem
a cornucópia murcha e me Atiçassem
para poderem melhor me Espezinhar.
(*) com persistência, com
dedicação
TRIDENTES II
embora Netuno porte o seu Tridente,
a tradição o atribuiu a Satanás;
talvez nisto acreditar nem sequer Vás,
mas foi o garfo proibido a toda a Gente,
durante a idade média Contundente:
só usavam facas e colheres como Pás;
até mesmo da cozinha alvo se Faz:
deviam os garfos duas pontas ter Somente!
feita a reforma, foi o garfo Absolvido,
sem ferir a quaisquer almas no teu Prato;
surgiu a higiene com maior Recato,
mesmo depois do alimento ser Erguido
com a mão, o garfo posto ainda de Lado,
tigela de água te alcançava algum Criado!
TRIDENTES III
ora, se fosse o deus netuno a me Inticar
com as pontas do tridente Cintilante,
sempre haveria um sacrifício nesse Instante,
que sobre as ondas se deveria Lançar!
só iria o seu tridente então Usar
para acalmar da borrasca o pior Montante,
ou aplacado o tal deus Inconstante,
só outras embarcações a Perturbar.
e se nas ondas então eu Mergulhasse,
talvez até madrepérolas me Desse
ou um abalone de tão belo Esplendor,
não que pérolas verdadeiras Esperasse,
mas que ao menos o propiciasse a Prece,
condescendendo em aplacar o seu Fragor!
TRIDENTES IV
naturalmente, antes dele
houve Nereu,
pai das nereidas, que talvez chames de Sereias,
em algumas tradições nisto dúvidas Semeias,
que havia nereidas tão só no mar Egeu,
mas as sereias lugar tinham de Apogeu
no mar mediterrâneo em vastas Teias;
alguns diziam desejar-te para as Ceias,
outros que apenas te afogar era o alvo Seu.
o próprio ulysses no mastro se Amarrou,
enquanto aos marinheiros Ordenava
os dois ouvidos com cera bem Tapar
e ao escutar-lhes o canto se Endoidou;
algum dos seus então o Sujeitava,
antes que as cordas pudesse Arrebentar!
TRIDENTES V
mas embora nossa escritura nada Diga
sobre esse tal demoninho tão Potente,
nenhuma menção nos credos que se Assente
e nem nos dez mandamentos se Consiga,
nem no pai nosso tal entidade Imiga
se mencione em qualquer ponto, Realmente,
aqui e ali se busca menção Indiferente
do tentador que do mal seja o Auriga.
já eu não creio em demônio Arquipotente,
o deus do mal cuja crença vem do Irã,
como escusa para a Responsabilidade,
pois de um diabo não precisa a Gente,
justificativa sendo disso sempre Vã,
para seus atos constantes de Maldade.
TRIDENTES VI
mas acredito haver o Mau-olhado,
a força bruta da feroz Inveja,
que teu destino azedamente Beija,
e te causa tuas derrotas ou Enfado.
em meu sepulcro qualquer que haja Pisado,
não o fez por acidez que ali se Enseja;
quem poderia me ajudar, Boceja,
quem de mim tem rancor, fica Acordado.
e desse modo, os servos do Destino
não são mais que sofredoras Criaturas,
que fazem mal a si mesmas mais que a Mim
e seu meu fado foi ser Pequenino,
as minhas quimeras são pobres, porém Puras
e refazê-las eu sempre soube Enfim!
INSPIRADOR I – 7 out 19
coroadas de cachos e gavinhas
as pisoeiras esmagam frescas
uvas,
nas largas bordalesas: longas
linhas
de esguichos as recobrem; como
luvas
avermelham seus braços; tais
quais meias
lhes sobem pelas pernas, quase
ao ventre,
enquanto tu, Dionysos,
incendeias
o fértil vinho que o
fermento adentre.
após ser esmagado, ferve o
mosto
e em álcool se transmuta,
numa calma
transformação, que me afogueia
o rosto,
ao ver meus sonhos a Teus pés
imersos;
porque uvas não são: é o sangue
d'alma
que se fermenta em vinho nestes
versos.
INSPIRADOR II
já muita vez atribuí inteiramente
a Dionysos todos os meus versos,
por mais contrários lhe sejam ou
perversos,
esse é o avatar em tudo mais
potente;
quando me inclina a taça, suavemente
e me faz dela sorver sonhos
dispersos,
quando seus cachos me espreme,
controversos
e a mente inteira se expande,
irreverente,
as pisoeiras a me pisar o coração,
o fígado e os pulmões, meu sangue
todo
a esguichar-lhes aos ventres
afogueados,
na glória instante de tal concepção
desses poemas que eu esparzo a rodo,
nestes mil versos por mim
ensanguentados.
INSPIRADOR III
Não cabe a mim dizer que sou
poeta,
se a chuva rubra dessa
inspiração
recai em mim com plena
aceitação
e alma e espírito inteiramente
afeta;
em cada esguicho o mosto assim
completa
sua trajetória de
exsanguinação...
também meu sangue chove em
amplidão
e para o vasto mundo se
projeta.
mas nada é meu. sou apenas o instrumento;
se pela rede difundi-los tento,
não é que busque a glória de
meu nome,
mas por saber intrínseco o
valor
e se em tua alma despertar-se
algum ardor
é o mesmo ardor que a vida me
consome.
TORQUE I – 8 set 2019
Eu sou a voz passiva do soneto,
A te tocar, ativa, o coração,
Por despertar-te nalma uma emoção
Adormecida e de esplendor discreto.
O que não quero é te dar algo secreto,
Passiva e estática em tal contemplação:
Quero mover-te, dar o alarme em ocasião
Que segura te faça em confidente afeto.
Tais versos não são meus: a ti pertencem;
Se, como câncer, por dentro me corroem,
É que me sinto exposto na mensagem
Que tenho a transmitir: eles me vencem
E assim minha carne e músculos destroem
Só por tornar-te ativa em tua coragem.
TORQUE II
Pois sem querer de Dionysos desfazer,
Eu mudo o alvo desta romaria,
Na aguardança de que assim te levaria
A um fragmento de emoção reconhecer.
Toda a poesia não passa de ilusão,
Mas nem por isso assim te iludiria;
É verdadeiro o cunho da homilia,
Eu quero mesmo te alegrar o coração
E desfazer em ti toda a tristeza,
A dor tranquila da melancolia,
A dor pungente que sofres no esqueleto
E em peregrinação trago beleza,
Que te possa nuançar a nostalgia,
Meu coração ao teu tornar completo.
TORQUE III
Em nada importam o custo e o sacrifício:
Já tanto dei de mim anteriormente,
Sem a mágoa te podar subjacente
E se a podei, não foi ato vitalício,
O meu trabalho emasculou-se em vício,
Pensando ser gentil, fui prepotente,
Quis imprimir em ti minha própria mente,
Com todas minhas canções e seu bulício,
Mas o que te busquei dar e buscarei,
O que pretendo transmitir-te agora
É o forte torque deste meu martírio,
Que todos vejam quanto amo e que amarei,
Enquanto fores só de mim senhora,
Meu coração a derreter-se em puro círio.
PERCEPÇÃO I – 9 set 19
Somos centro do mundo, cada um,
cada um de nós vê só pelos seus
olhos,
teus olhos tudo medem, são escolhos
escolhos são do raro -- e do comum.
e do comum, a recriar-se algum,
para si tendo a medida dos abrolhos,
mudando o que rodeia em veros molhos,
em que encontrar o que pareça amor
nenhum,
amor em si que temos por nós mesmos,
mas que os outros mantêm para si
mesmos,
é a mais antiga ilusão que nos
reclama.
porque caímos todos no mundéu
que nos armam os deuses, desde o céu,
quando nos fazem crer que alguém nos
ama.
PERCEPÇÃO II
Mas Dionysos não ama essa trapaça,
nunca pretende nos dar eternidade,
transmite o seu amor só a ebriedade,
não qualquer desilusão que a gente esqueça;
não é o deusinho que nos arma peça
com as flechas do carcaz sem castidade;
o amor nos dá de transitoriedade
e nem espera de alguém que lhe agradeça,
pois igual o agradecer é transitório;
contudo, ele nos traz fecundidade,
sabendo que a parreira secará,
mas na próxima estação trará o cibório
de um novo vinho vertido sem maldade,
que já sabemos também se esgotará.
PERCEPÇÃO III
Centro do mundo nem a si mesmo considera:
é o deus do vinho e do mais rubro amor;
não nos contempla com olhos de senhor
e nem sequer adoração de nós espera;
somente o amor dessa estação nos gera
e após ser consumado em seu vigor,
lava-se a taça, sem grande estridor,
que alguma borra no coração se altera
e desse amor conserva-se a lembrança,
sem seu final em nada lamentar,
foi um frasco de vinho a se esgotar
e ao mesmo tempo nos dá certa esperança
de acharmos vinha em nova brotação,
cachos de amor suculentos na ocasião.
PSICOFAGIA I (Revisitada) – 10
out 2019
Pensei um dia conquistar tua alma
[Sem mais pensar], logo entreguei a minha,
Azul e floralmente, em comezinha,
Bancária transação, tranquila e calma,
Que a tua em mim subsistiria em palma,
Alma por alma, na riqueza dessa vinha,
Tristeza por confiança, certeza em pura linha,
Beleza a fecundar com dores dalma...
Mas como essa tua alma é facetada!
Nunca me deste sequer um fragmento,
Por todo o meu esforço, por tudo que sonhei,
Mesmo que antanho a tivesse devastada,
Tal alma foi egoísta, tragou-me de alimento,
Sem nada retribuir por tudo que lhe dei.
PSICOFAGIA II
Não sei dizer sequer se alma envelhece;
Ligada ao corpo é assim contaminada,
Mas se a velhice da alma é suspeitada,
Não se comprova a ancianidade que acontece.
Do mundo superior se crê que alma nos desce
E a nosso corpo se faz interligada,
Mas nenhuma independência é conservada,
É um todo só num lamento que se esquece;
Em tradição pode a alma ser vendida,
A bem do corpo de transitoriedade;
Outrem a pode dominar completamente,
Ou dada pode ser a quem se ama,
Se a alma alheia destarte se reclama,
Sem doação mútua a alma não consente.
PSICOFAGIA III
Em bem sabia o que podia acontecer,
Porém fui tolo em minha ingenuidade;
Julgava a troca com naturalidade
Se completar por amor e com prazer.
Pois no momento da barganha se fazer,
Nada se havia de perder na realidade,
Sem nos enriquecer em saciedade,
O que eu te desse iria em mim permanecer,
Enriquecido pelo amor que me trarias
E o que me desses se iria em ti fortalecer
Pelo vigor que da minha possuirias...
Mas ai de nós! Que
minhalma devolveste,
Sem que da tua nada tivesse a devolver:
Perdi tua alma e igual a minha assim perdeste...
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