terça-feira, 10 de novembro de 2020


 

 

ENXERTO I – 11 SET 2019 (*)

(*) Revisão de original escrito depois da longa série

OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES.

 

Esta série de sonetos herculanos

Exige mais de mim que as simples linhas

Que brotam lá de dentro, sem mesquinhas

Intenções de programas sobre-humanos.

 

São "poemas-cabeça", intelectuais,

Como falam na gíria, são pesados,

Encaixados no esquema, marchetados

De forma e objetivo artesanais.

 

No fundo, são sinais de aleivosia,

Busca de efeitos, coriscos de implosão,

Imagens oratórias da razão...

 

Pois um poema-cabeça entristecia:

É artificial; muito menor valia

Possui, do que um poema-coração.

 

ENXERTO II

 

Em teoria poética, são chamados

De “poemas dionisíacos” os que brotam,

Naturalmente, quase antes que se anotam

Em rascunhos a depois ser completados,

 

Referência a Dionysos, cujos brados

Enviam poemas cujos versos cantam,

Sem grande luta e o coração imantam,

De “poemas-coração” apelidados.

 

Do lado aposto, quando são elaborados

Com certo esforço e até planejamento,

São “poemas apolíneos”, cuidadosos

 

E até mesmo com frequência revisados.

São os “poemas-cabeça” nesse evento,

Se bem regados, se tornam vigorosos...

 

ENXERTO III

 

Walt Whitman dos exemplos é o melhor:

Este poeta, que viveu nos oitocentos,

Descreveu num só livro seus momentos

E o revisou vinte e mais vezes com ardor...

 

Sem redigir qualquer outro maior,

Apenas versos esparsos em eventos,

“Folhas de Relva”, com artifícios lentos,

Neologismos ali empregando com vigor...

 

Na maior parte redigido em verso branco,

Deliberando cada rima descartar,

Foi apolíneo, em essência, seu trabalho.

 

Já imitá-lo, porém, é um árduo tranco,

Que muita gente esse esforço eu vi tentar,

A desgastar-se num imperfeito talho...

 

ENXERTO IV

 

Já meus poemas Dionysos me murmura,

Na maioria são descrições de amor,

Desenvolvendo assim o meu pendor

De um romantismo que ainda me perdura.

 

Mas armadilha aqui prepara impura:

Quando descrevo as ocasiões de ardor,

Melífluo tenta esse antigo sedutor,

Beijo menciona que toda a vida dura...

 

Mas mesmo sendo só inocente beijo,

Este é o primeiro emissário do desejo,

Para o impulso sexual feroz auriga;

 

E cada ato de amor é apenas pasmo,

Que por mais nos expanda nesse espasmo

É o derradeiro verso da cantiga!...

 

ROSÁCEA I – 12 set 19

 

Muito longe de ti me quedarei,

Sozinho sempre e sem lembrar saudade,

Até que, suavemente, a mocidade

Se escoe, como o vinho que tomei...

 

Mas bem perto de ti sempre estarei,

Que a ti meu ser inteiro está ligado,

No rosicler amargo experimentado

Em roçagar de pálpebras que amei...

 

Que distância e presença são quimeras,

Que à própria contradita se antepõem,

No mar da ausência azul tantas galeras,

 

Quantos remos os dias nos propõem;

E, se em memória apenas consideras,

Os dias passados juntos nos repõem...

 

ROSÁCEA II

 

Até que ponto a memória persistente

É mais real que uma ausência conhecida?

Duram memórias, quiçá, por toda a vida,

Enquanto o ausente é só o oposto do presente;

 

Se alguma vez no passado esteve assente

Essa memória, ainda em nós está contida,

Enquanto a ausência se faz desfalecida

E ternamente se esvai quanto se sente;

 

Porque uma ausência não existe no futuro,

Não se pode esse vácuo se prever,

Mas a memória nos perdura, certamente;

 

Enquanto o invólucro da mente é puro,

Sem um declínio para o desconhecer,

Nossa memória ainda retorna persistente.

 

ROSÁCEA III

 

Pois mesmo quando o achaque da velhice

Nos atinge... é a memória mais recente

Que desliza pelas mãos, indiferente

E a mais antiga do esquecimento ri-se;

 

Mas a ausência que nossa alma perseguisse,

É esquecida nesse dia plenamente;

Já da memória a presença faz-se assente,

Quando mais no passado nos ferisse;

 

E ao passo que essa ausência é material,

Mas perpassado o tempo se destrói,

Sua memória ainda vinga na lembrança,

 

Mais verdadeira a presença espiritual

Do que a distância que tal amor nos rói,

No diluir paulatino da esperança...

 

ROSÁCEA IV

 

Mas na memória se encontra uma perfídia:

O que lembramos, aos poucos, se transforma;

Lentamente recordamos nova forma,

A inicial toda escondida nessa insídia...

 

Não é a memória qual impressa mídia,

Ali gravada em permanente norma:

É digital – esfria-se ou amorna,

Talhos sofrendo qual corte de vídia;

 

E dessa forma o dilema se esclarece:

Enquanto a ausência é apenas inegável,

A memória se faz mais amorável,

 

Muito diversa de decorada prece,

A memória se transmuda, porque é terna,

Mas a tua ausência dentro em mim será eterna.

 

 

REMORSO I – 13 setembro 2019

 

Escusa de acusar-me, fugidia,

imagem luminosa de [tres]noites,

na boca amarga o gosto dos açoites,

da boca que beijei em salmodia.

 

Escusa de culpar-me à revelia

ou às claras mesmo, ao sopro dos aboites,

julgar que na vaidade tenho afoites

que por orgulho teu lamentar desprezaria.

 

Porque minha parte fiz -- e mais que ela!

Teu chamado escutei e, sem cautela,

Lancei-me aos braços frios que me estendias.

 

Não te podes queixar... nos separaram

Os ventos mesmos que breve nos juntaram,

Se amor foi mesmo o que por mim sentias...

 

REMORSO II

 

Não te deixei por medo ou por capricho.

As circunstâncias é que nos afastaram,

Meus sentimentos igual se lastimaram

Ou mais que os teus em protegido nicho;

 

Assim pressinto no sondar do esguicho

De sangue astral com que me contemplaram

Esses deuses fugazes que me odiaram,

Minha esperança a baralhar sem ponto fixo;

 

Talvez nisso participe a inexperiência:

Eu nem sabia de que modo reagir,

Quando aos ouvidos me mandavam desistir;

 

Ou talvez nisso tenha parte a impotência:

Eu era muito jovem em tal momento,

Fragilizado pela força do portento.

 

REMORSO III

 

Mas não achara em ti real calor,

Mostraste mais aquiescência ou desfastio,

Alguma coisa destacou-se de meu brio:

Não era assim que figurara o teu amor...

 

E amor, se houve... foi mais um estertor,

Que nos uniu em ato até sombrio,

Cortado de imediato o argênteo fio

Que me atraíra para ti com tal vigor...

 

Durante anos considerei tal corte:

Não foi minha ausência aqui de maior porte,

Bem mais ausente senti teu coração,

 

Durante um ato sensual assaz complexo,

Dentro do qual perdeu-se todo o nexo,

Amortalhado em um fragor de sensação!

 

DEVOLUÇÃO I – 14 set 19

 

   Sugando sêmen, a terra chora e espera

       por um momento final de liberdade

           e escravidão de total gradualidade

               em que o fruto germina e se exaspera.

    

               Sugando sêmen, a terra nua altera,

                   à rocha estéril traz fecundidade,

                       sutil insere da raiz a habilidade

                           que a pedra expande e nela a vida gera.

   

                           Sugando sêmen, a terra geme e chora,

                              no êxtase total da entrega morna,

                                  no cintilante orgasmo de uma aurora,

    

                                  na verde exaltação de que se adorna,

                                       pois é o sêmen dos deuses que ela adora

                                            e à divindade a vida então retorna!..

 

DEVOLUÇÃO II

 

   Sem dúvida, deuses há na pedraria

       as divindades ctônicas do abismo,

           que às superfícies trazem cataclismo,

               carvão formando da vida que existia...

    

               Ou, com o tempo, petróleo ali se formaria,

                   transformando em total mineralismo

                       o vegetal e o animal nesse mesmismo,

                           ou em diamante tudo enfim comprimiria!

   

                           Mas a vida ainda suga a sua semente:

                              passado um tempo, da rocha em que jazia,

                                  cotilédones em verde se projetam!...

    

                                   qual se uma deusa da atmosfera, mais potente,

                   desse sua carne à terra, em  nostalgia                                          

                        e cada seixo e calhau assim se inquietam!...

 

DEVOLUÇÃO III

 

   Hoje nos falam tanto das queimadas

       que ocorrem na Amazônia gigantesca

           como se fossem a coisa mais dantesca

               essas paisagens parcialmente exterminadas!

    

               Ao mesmo tempo, há florestas calcinadas

                   pela Europa em incêndios, na burlesca

                       contrariedade das intenções que atesta,

                           suas ambições flebilmente disfarçadas!...

   

                           Pois a floresta é inseminada e se renova,

                               mas essas casas e vidas lá do Norte,

                                   que a cada ano se perdem, não rebrotam!

    

                                   A cada ano a extorquir sua quota,

                                      os deuses rebelados contra o porte

                                          antiecológico que tais nações adotam!..

 

ARTIFÍCIO I – 15 SET 2019

 

foi uma gota de sombra nosso amor,

escorrendo pelas fendas da surpresa;

foi um brilho de vento essa incerteza,

carícia de perfume sem calor...

 

foi um toque inconsútil tal pendor,

uma sombra de alma, sem vileza,

um gosto mudo apenas, na pureza

das suavidades mortas de uma cor...

 

foi delícia imperpétua, uma balela,

um farfalhar de luz, uma fumaça

que em mim se condensou, uma singela,

 

labiríntica flor, que ardor gelado

me conservasse assim, numa pirraça:

por uma gota de sombra atribulado...

 

ARTIFÍCIO II

 

sem dúvida ardil é desse deus cego,

que lança dardos sem cuidar aonde,

que por trás de cada árvore se esconde,

a provocar em nós estranho apego...

 

meu próprio amor, contudo, em mesmo rego

com o sangue que do espírito me ronde;

não é bastante que a azagaia sonde

meu coração: eu mesmo sou que lego

 

meus sentimentos ao ardor desordenado

que tantas vezes meu peito lastimou,

eros não culpo pela força da traição;

 

culpo a mim mesmo por ser tão descuidado,

ainda na espera desse amor que não chegou,

mas que em meus sonhos perpétuo se mostrou.

 

ARTIFÍCIO III

 

amor de ontem é coisa merencória,

quando em nós ainda revive essa lembrança,

sem ter valor sequer de uma esquivança,

misto de sombra e de matéria transitória,

 

que sem a sombra seria coisa inglória,

tal qual a pretensão de uma criança,

duzentos filhos de afirmar tendo esperança,

como a romã dessa jocosa história...

 

pois mais importa o amor que hoje se vê,

cuja sombra projetamos ao futuro,

por mais que seu presente seja impuro,

 

mas no qual ainda confiamos, se

ao menos o pudéssemos guardar,

mais que ilusão no peito a gotejar...

 

 

 

 


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