ENXERTO I – 11 SET 2019 (*)
(*) Revisão de original escrito depois da longa série
OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES.
Esta série de sonetos herculanos
Exige mais de mim que as simples linhas
Que brotam lá de dentro, sem mesquinhas
Intenções de programas sobre-humanos.
São "poemas-cabeça", intelectuais,
Como falam na gíria, são pesados,
Encaixados no esquema, marchetados
De forma e objetivo artesanais.
No fundo, são sinais de aleivosia,
Busca de efeitos, coriscos de implosão,
Imagens oratórias da razão...
Pois um poema-cabeça entristecia:
É artificial; muito menor valia
Possui, do que um poema-coração.
ENXERTO II
Em teoria poética, são chamados
De “poemas dionisíacos” os que brotam,
Naturalmente, quase antes que se anotam
Em rascunhos a depois ser completados,
Referência a Dionysos, cujos brados
Enviam poemas cujos versos cantam,
Sem grande luta e o coração imantam,
De “poemas-coração” apelidados.
Do lado aposto, quando são elaborados
Com certo esforço e até planejamento,
São “poemas apolíneos”, cuidadosos
E até mesmo com frequência revisados.
São os “poemas-cabeça” nesse evento,
Se bem regados, se tornam vigorosos...
ENXERTO III
Walt Whitman dos exemplos é o melhor:
Este poeta, que viveu nos oitocentos,
Descreveu num só livro seus momentos
E o revisou vinte e mais vezes com ardor...
Sem redigir qualquer outro maior,
Apenas versos esparsos em eventos,
“Folhas de Relva”, com artifícios lentos,
Neologismos ali empregando com vigor...
Na maior parte redigido em verso branco,
Deliberando cada rima descartar,
Foi apolíneo, em essência, seu trabalho.
Já imitá-lo, porém, é um árduo tranco,
Que muita gente esse esforço eu vi tentar,
A desgastar-se num imperfeito talho...
ENXERTO IV
Já meus poemas Dionysos me murmura,
Na maioria são descrições de amor,
Desenvolvendo assim o meu pendor
De um romantismo que ainda me perdura.
Mas armadilha aqui prepara impura:
Quando descrevo as ocasiões de ardor,
Melífluo tenta esse antigo sedutor,
Beijo menciona que toda a vida dura...
Mas mesmo sendo só inocente beijo,
Este é o primeiro emissário do desejo,
Para o impulso sexual feroz auriga;
E cada ato de amor é apenas pasmo,
Que por mais nos expanda nesse espasmo
É o derradeiro verso da cantiga!...
ROSÁCEA I – 12 set 19
Muito longe de ti me quedarei,
Sozinho sempre e sem lembrar saudade,
Até que, suavemente, a mocidade
Se escoe, como o vinho que tomei...
Mas bem perto de ti sempre estarei,
Que a ti meu ser inteiro está ligado,
No rosicler amargo experimentado
Em roçagar de pálpebras que amei...
Que distância e presença são quimeras,
Que à própria contradita se antepõem,
No mar da ausência azul tantas galeras,
Quantos remos os dias nos propõem;
E, se em memória apenas consideras,
Os dias passados juntos nos repõem...
ROSÁCEA II
Até que ponto a memória persistente
É mais real que uma ausência conhecida?
Duram memórias, quiçá, por toda a vida,
Enquanto o ausente é só o oposto do
presente;
Se alguma vez no passado esteve assente
Essa memória, ainda em nós está contida,
Enquanto a ausência se faz desfalecida
E ternamente se esvai quanto se sente;
Porque uma ausência não existe no futuro,
Não se pode esse vácuo se prever,
Mas a memória nos perdura, certamente;
Enquanto o invólucro da mente é puro,
Sem um declínio para o desconhecer,
Nossa memória ainda retorna persistente.
ROSÁCEA III
Pois mesmo quando o achaque da velhice
Nos atinge... é a memória mais recente
Que desliza pelas mãos, indiferente
E a mais antiga do esquecimento ri-se;
Mas a ausência que nossa alma perseguisse,
É esquecida nesse dia plenamente;
Já da memória a presença faz-se assente,
Quando mais no passado nos ferisse;
E ao passo que essa ausência é material,
Mas perpassado o tempo se destrói,
Sua memória ainda vinga na lembrança,
Mais verdadeira a presença espiritual
Do que a distância que tal amor nos rói,
No diluir paulatino da esperança...
ROSÁCEA IV
Mas na memória se encontra uma perfídia:
O que lembramos, aos poucos, se transforma;
Lentamente recordamos nova forma,
A inicial toda escondida nessa insídia...
Não é a memória qual impressa mídia,
Ali gravada em permanente norma:
É digital – esfria-se ou amorna,
Talhos sofrendo qual corte de vídia;
E dessa forma o dilema se esclarece:
Enquanto a ausência é apenas inegável,
A memória se faz mais amorável,
Muito diversa de decorada prece,
A memória se transmuda, porque é terna,
Mas a tua ausência dentro em mim será
eterna.
REMORSO I – 13 setembro 2019
Escusa de acusar-me, fugidia,
imagem luminosa de [tres]noites,
na boca amarga o gosto dos açoites,
da boca que beijei em salmodia.
Escusa de culpar-me à revelia
ou às claras mesmo, ao sopro dos
aboites,
julgar que na vaidade tenho afoites
que por orgulho teu lamentar
desprezaria.
Porque minha parte fiz -- e mais que ela!
Teu chamado escutei e, sem cautela,
Lancei-me aos braços frios que me
estendias.
Não te podes queixar... nos separaram
Os ventos mesmos que breve nos
juntaram,
Se amor foi mesmo o que por mim
sentias...
REMORSO II
Não te deixei por medo ou por capricho.
As circunstâncias é que nos
afastaram,
Meus sentimentos igual se lastimaram
Ou mais que os teus em protegido
nicho;
Assim pressinto no sondar do esguicho
De sangue astral com que me
contemplaram
Esses deuses fugazes que me odiaram,
Minha esperança a baralhar sem ponto
fixo;
Talvez nisso participe a
inexperiência:
Eu nem sabia de que modo reagir,
Quando aos ouvidos me mandavam
desistir;
Ou talvez nisso tenha parte a
impotência:
Eu era muito jovem em tal momento,
Fragilizado pela força do portento.
REMORSO III
Mas não achara em ti real calor,
Mostraste mais aquiescência ou
desfastio,
Alguma coisa destacou-se de meu brio:
Não era assim que figurara o teu
amor...
E amor, se houve... foi mais um
estertor,
Que nos uniu em ato até sombrio,
Cortado de imediato o argênteo fio
Que me atraíra para ti com tal
vigor...
Durante anos considerei tal corte:
Não foi minha ausência aqui de maior
porte,
Bem mais ausente senti teu coração,
Durante um ato sensual assaz
complexo,
Dentro do qual perdeu-se todo o nexo,
Amortalhado em um fragor de sensação!
DEVOLUÇÃO I – 14 set 19
Sugando sêmen, a terra chora e espera
por
um momento final de liberdade
e escravidão de total gradualidade
em que o fruto germina e se exaspera.
Sugando sêmen, a terra nua altera,
à rocha estéril traz fecundidade,
sutil insere da raiz a
habilidade
que a pedra
expande e nela a vida gera.
Sugando
sêmen, a terra geme e chora,
no êxtase total da entrega morna,
no cintilante orgasmo de uma aurora,
na verde exaltação de que se adorna,
pois é o sêmen dos deuses que ela adora
e à divindade a vida então
retorna!..
DEVOLUÇÃO II
Sem dúvida, deuses há na pedraria
as
divindades ctônicas do abismo,
que às superfícies trazem cataclismo,
carvão formando da vida que existia...
Ou, com o tempo, petróleo ali se
formaria,
transformando em total mineralismo
o vegetal e o animal nesse
mesmismo,
ou em diamante
tudo enfim comprimiria!
Mas a vida
ainda suga a sua semente:
passado um tempo, da rocha em que
jazia,
cotilédones em verde se projetam!...
qual se uma deusa da
atmosfera, mais potente,
desse sua carne à terra,
em nostalgia
e cada seixo e calhau
assim se inquietam!...
DEVOLUÇÃO III
Hoje nos falam tanto das queimadas
que
ocorrem na Amazônia gigantesca
como se fossem a coisa mais dantesca
essas paisagens parcialmente
exterminadas!
Ao mesmo tempo, há florestas calcinadas
pela Europa em incêndios, na
burlesca
contrariedade das
intenções que atesta,
suas ambições
flebilmente disfarçadas!...
Pois a
floresta é inseminada e se renova,
mas essas casas e vidas lá do Norte,
que a cada ano se perdem, não rebrotam!
A cada ano a extorquir sua
quota,
os deuses rebelados contra o porte
antiecológico que tais nações adotam!..
ARTIFÍCIO I – 15 SET 2019
foi uma gota de sombra nosso
amor,
escorrendo pelas fendas da surpresa;
foi um brilho de vento essa
incerteza,
carícia de perfume sem calor...
foi um toque inconsútil tal
pendor,
uma sombra de alma, sem vileza,
um gosto mudo apenas, na pureza
das suavidades mortas de uma
cor...
foi delícia imperpétua, uma
balela,
um farfalhar de luz, uma fumaça
que em mim se condensou, uma
singela,
labiríntica flor, que ardor
gelado
me conservasse assim, numa
pirraça:
por uma gota de sombra
atribulado...
ARTIFÍCIO II
sem dúvida ardil é desse deus
cego,
que lança dardos sem cuidar
aonde,
que por trás de cada árvore se
esconde,
a provocar em nós estranho
apego...
meu próprio amor, contudo, em
mesmo rego
com o sangue que do espírito me
ronde;
não é bastante que a azagaia
sonde
meu coração: eu mesmo sou que
lego
meus sentimentos ao ardor
desordenado
que tantas vezes meu peito
lastimou,
eros não culpo pela força da
traição;
culpo a mim mesmo por ser tão
descuidado,
ainda na espera desse amor que
não chegou,
mas que em meus sonhos perpétuo
se mostrou.
ARTIFÍCIO III
amor de ontem é coisa
merencória,
quando em nós ainda revive essa
lembrança,
sem ter valor sequer de uma
esquivança,
misto de sombra e de matéria
transitória,
que sem a sombra seria coisa
inglória,
tal qual a pretensão de uma
criança,
duzentos filhos de afirmar
tendo esperança,
como a romã dessa jocosa
história...
pois mais importa o amor que
hoje se vê,
cuja sombra projetamos ao
futuro,
por mais que seu presente seja
impuro,
mas no qual ainda confiamos, se
ao menos o pudéssemos guardar,
mais que ilusão no peito a
gotejar...
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