TRELIÇA I – 31 AGO 19 (*)
(*) Entrelaçado de ripas de madeira.
Prouvera aos deuses que teu rosto vira
Hoje no assomo de imortal quimera:
Que nenhum homem mais assim quisera
Tanger-se em claros dobres nesta lira;
Prouvera aos deuses hoje que te amara
Em solidão talar de melopeia vera:
Que ninguém mais da plateia numa espera,
Tua sombra visse a perpassar a trilha rara;
Mas que eu soubera prestar-te, em melodia,
O preito fino e o galardão sublime
Com que a alma bem no fundo te atingira;
Soubera eu bem dar-te apreço à nostalgia:
Veludo antigo em ânfora de vime,
Que se desfaz ao bafejar de quem suspira!
TRELIÇA II
Prouvera aos deuses que para mim viesses,
Toda despida de memórias e incerteza,
Sem precisar recordar qualquer vileza,
Desprezo algum no peito ainda sofresses;
Prouvera aos deuses no instante em que
chegasses
Teu coração batesse apenas em real leveza
E se agitasse para mim, então, com alardeza
E lá do fundo num anelo suspirasses!
Soubera então que essa tua galhardia,
Despertada assim tão somente para mim
Eu louvasse e respeitasse em honraria;
Soubera eu dar real valor a tal meiguice
E cultivá-la qual arbusto de jasmim,
Sem que jamais ação minha te ferisse!
TRELIÇA III
Prouvera aos deuses que as almas se
enlaçassem
Perfeitamente nos instantes dos abraços.
Que contemplasse os teus perfeitos traços
Presos aos meus no instante em que
beijassem;
Que realmente assim se entrelaçassem,
Numa treliça dos mais firmes compassos,
Algo de ti sempre a envolver meus braços,
Partes de mim que em ti se condensassem!
Soubera então eu reforçar essas treliças,
Deixando espaço somente ao respirar
Nos intervalos de tais ripas abraçadas,
Cada qual dela a reforçar-nos liças,
Num arcabouço do mais perfeito amar,
Sem novas mágoas a ti sendo acrescentadas!
MARANHA I – 1º SET 2019
A vida é tua -- tens pleno direito
de fazer dela aquilo que te apraz.
Há certas coisas, porém, que não se faz,
só por questão primária de respeito.
Não se maltrata a quem sempre escorreito
agiu contigo, quem sempre foi capaz
de relevar tuas falhas e a veraz
oscilação de um gênio insatisfeito...
Pois que jamais te deu razão de queixa,
Sempre fiel te foi, sempre a teu lado,
Mostrou-se atento, leal e dedicado;
Mas quanta variedade a mente enfeixa!...
Quem se sente insegura e contrariada,
Magoa por prazer, quase por nada...
MARANHA II
Há sem dúvida a reação descompassada
De quem perdeu o seu primeiro amor
E mal consegue livrar-se desse ardor
Que a própria alma deixou toda requeimada!
E se apresento, em hora apaixonada,
Através do meu carinho, igual calor,
Não é de admirar sintas temor
De ser por ele novamente machucada...
O meu calor, contudo, é amornado,
Queimaduras não irá te provocar,
Sirvo num cálice com o maior cuidado,
Mas sem que seja, em absoluto, amortecido,
Pois pode bem o teu peito acalentar,
Que esse calor com frequência tem nutrido.
MARANHA III
Mas há tristeza no teu peito emaranhada,
Alguns fios a macular toda a alegria,
Outros mais fortes chamando a nostalgia,
Cada emoção dessa forma anuançada...
Em mim também existe, acompanhada
Por desapontos, azedumes e elegia,
Mas não a permito manchar o que eu queria:
A paz de espírito em ti toda renovada.
Assim insisto, com plena compreensão,
As mágoas do passado me escudaram,
A seu despeito, enraizei minha aguardança,
Já que os amores do passado mortos são,
Somente vivem esses dias que te amaram,
Em um futuro junto a ti tendo esperança...
CONCUBINA I – 2 SET 19
meus músculos são metade do que
foram,
fui mais alto também, mas aos
setenta
e mais sete anos, nova se
apresenta
a realidade dos fatos que
desdouram.
não uso mais machado ou
picareta,
troquei por um teclado de
discreto
soar, que à madrugada por
completo
me leva a trabalhar, numa
direta
troca do dia pela noite muda,
que me contempla, meiga e
solidária,
que num suspiro o meu penar
compreende,
que junto a mim nos versos se
desnuda:
não sou velho, afinal: é a
sedentária
atividade que a traduzir me
prende...
CONCUBINA II
na verdade, foi o tal
computador
que as vértebras, lentamente,
me forçou,
minhas cartilagens, aos poucos,
ressecou,
mesmo sem ter ressecado meu
pendor.
também meus olhos já têm menor
ardor,
embora, alguma vez, a arder
deixou;
sobre o teclado meu deeneá
ficou,
desfalecido por falta de calor...
calor da alma, que o calor
real,
esse que os poros obriga até a
chorar,
na realidade, sempre fez-me
muito mal;
de caminhar a me cortar
disposição...
não admira que me ponha a
sedentar,
ventiladores só a mostrar-me
compaixão!
CONCUBINA III
pois o aparelho que de noite me
acompanha
tornou-se quase uma esposa
secundária:
má barregã, de natureza vária,
que meus próprios desejos não
amanha!
e se algum trecho a seduzir me
assanha,
dá-me a máquina a propensão
contrária,
qualquer desejo desprezado como
pária:
sem completar, a paga não se
ganha!...
e ao mesmo tempo, é caprichosa
gueixa,
treinada apenas para o martelar
nas teclas frias da noite
tenebrosa,
quando esse impulso de concluir
não deixa
e a concubina meus dedos vem
beijar
a cada hora que me foge,
silenciosa...
NETHEAD I – 3 SET 19 (*)
(Viciado na rede digital)
De quando em vez, nas vagas da tormenta,
ferve meu sangue, movido pelo açoite
de nova exaltação e, em meu transnoite,
um verso novo e bom logo se assenta,
não mais na folha branca, em salmodia;
é no computador, na tela esquiva,
que tudo mostra e nega, na furtiva,
pixélica efusão que me envolvia.
Percebo então que esperança é aleivosia,
pois quantas vezes zombou de mim o fado...
porém insisto em lutar, por teimosia,
enquanto imagens falsas me retraças,
assim prossigo eu, entusiasmado,
na dança imaculada das desgraças... (*)
(*) Reconheço que este
soneto revira o ponto de vista narrativo,
três vozes a discutir uma com a outra.
NETHEAD II
Algumas vezes, me venho a rebelar
contra essa imposição da tirania,
ou manifesta ocasião de aleivosia, (*)
que me busca abertamente dominar,
nos intervalos deste meu elaborar
de traduções em que descansaria,
mas retorna a exaltação, à revelia:
novos sonetos me ponho a rascunhar!
Por isso, às vezes, quando sofre meu olhar,
ou quando falha em computar me trairia,
eu me recuso a lhes dar novo formato...
Porém vão se acumulando sem parar
e dessa poeira me sobe a gritaria,
que me atordoa sem sombra de recato!
(*) Mentira, traição.
NETHEAD III
Assim retorno, como o faço agora,
mais de ano e meio deixado a acumular,
por sorte com borrachinhas a guardar,
classificados assim nos dias de outrora...
Mas como faz-se exagerada essa demora!
para qualquer rascunho a revisar,
dois, três ou mais me vêm a pulular
e dessa forma se escorre cada hora...
e novamente, até pareço me viciar
nessa dança digital de meu teclado,
porém, de fato, me sinto acabrunhado,
quando percebo como é falso esse cantar,
enquanto zomba de mim a polvadeira,
qual vigarista a dominar-me inteira!...
EXIGÊNCIAS I – 4 SET 19
eu nunca me recuso a trabalhar,
não está em mim: é minha
natureza,
nasci para os labores, com
certeza
e nem sequer conheço o
descansar.
e agora, meu Dionysos, me vens
dar,
um novo impulso para mais
grandeza
imprimir à minha vida sem
beleza,
para mais tempo aos versos
dedicar:
é tal a vastidão que me
despontas!...
embora saiba que ao final das
contas
seja operário do verso... e
tradutor;
e para isso sigo trabalhando,
minhas tarefas firme
executando,
vivendo em adrenalínico
esplendor.
EXIGÊNCIAS II
impulsos esses que não deixam
descansar:
eu chego a me acordar durante a
noite,
voz insistente a chamar-me como
açoite,
para ao trabalho interrompido
retornar!
ouço dizer que existe algum
bloquear
na inspiração de um escritor
afoite,
que em bebida ou distração se
acoite,
porque não pode a sua obra
continuar;
mas comigo é o contrário –
refugio
o meu cansaço por algumas horas
e logo volta Dionysos a exigir,
na imensidão teológica do brio,
pois me fez depositário das
demoras
de tanta obra que não se pôde
concluir.
EXIGÊNCIAS III
sem dúvida, é tão grande a
variedade
de tantas vozes que se
contrariam
que meus próprios pensamentos
desconfiam
de que tais versos não são meus
na realidade;
que Dionysos recolheu da
antiguidade
a obra dos poetas que morriam,
sem completar o quanto
perseguiam
e me afoga em tal tormenta sem
maldade;
por só deseja é ver o amor
antigo
sendo descrito nos tempos do
presente
e assim me toca a lira e o
tamborim,
de modo tal que negar-me não
consigo
e servo sigo desse deus
premente,
sua voz imposta, ardente, sobre
mim!
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