domingo, 8 de novembro de 2020


 

TRELIÇA I – 31 AGO 19 (*)

(*) Entrelaçado de ripas de madeira.

 

Prouvera aos deuses que teu rosto vira

Hoje no assomo de imortal quimera:

Que nenhum homem mais assim quisera

Tanger-se em claros dobres nesta lira;

 

Prouvera aos deuses hoje que te amara

Em solidão talar de melopeia vera:

Que ninguém mais da plateia numa espera,

Tua sombra visse a perpassar a trilha rara;

 

Mas que eu soubera prestar-te, em melodia,

O preito fino e o galardão sublime

Com que a alma bem no fundo te atingira;

 

Soubera eu bem dar-te apreço à nostalgia:

Veludo antigo em ânfora de vime,

Que se desfaz ao bafejar de quem suspira!

 

TRELIÇA II

 

Prouvera aos deuses que para mim viesses,

Toda despida de memórias e incerteza,

Sem precisar recordar qualquer vileza,

Desprezo algum no peito ainda sofresses;

 

Prouvera aos deuses no instante em que chegasses

Teu coração batesse apenas em real leveza

E se agitasse para mim, então, com alardeza

E lá do fundo num anelo suspirasses!

 

Soubera então que essa tua galhardia,

Despertada assim tão somente para mim

Eu louvasse e respeitasse em honraria;

 

Soubera eu dar real valor a tal meiguice

E cultivá-la qual arbusto de jasmim,

Sem que jamais ação minha te ferisse!

 

TRELIÇA III

 

Prouvera aos deuses que as almas se enlaçassem

Perfeitamente nos instantes dos abraços.

Que contemplasse os teus perfeitos traços

Presos aos meus no instante em que beijassem;

 

Que realmente assim se entrelaçassem,

Numa treliça dos mais firmes compassos,

Algo de ti sempre a envolver meus braços,

Partes de mim que em ti se condensassem!

 

Soubera então eu reforçar essas treliças,

Deixando espaço somente ao respirar

Nos intervalos de tais ripas abraçadas,

 

Cada qual dela a reforçar-nos liças,

Num arcabouço do mais perfeito amar,

Sem novas mágoas a ti sendo acrescentadas!

 

MARANHA I – 1º SET 2019

 

A vida é tua -- tens pleno direito

de fazer dela aquilo que te apraz.

Há certas coisas, porém, que não se faz,

só por questão primária de respeito.

 

Não se maltrata a quem sempre escorreito

agiu contigo, quem sempre foi capaz

de relevar tuas falhas e a veraz

oscilação de um gênio insatisfeito...

 

Pois que jamais te deu razão de queixa,

Sempre fiel te foi, sempre a teu lado,

Mostrou-se atento, leal e dedicado;

 

Mas quanta variedade a mente enfeixa!...

Quem se sente insegura e contrariada,

Magoa por prazer, quase por nada...

 

MARANHA II

 

Há sem dúvida a reação descompassada

De quem perdeu o seu primeiro amor

E mal consegue livrar-se desse ardor

Que a própria alma deixou toda requeimada!

 

E se apresento, em hora apaixonada,

Através do meu carinho, igual calor,

Não é de admirar sintas temor

De ser por ele novamente machucada...

 

O meu calor, contudo, é amornado,

Queimaduras não irá te provocar,

Sirvo num cálice com o maior cuidado,

 

Mas sem que seja, em absoluto, amortecido,

Pois pode bem o teu peito acalentar,

Que esse calor com frequência tem nutrido.

 

MARANHA III

 

Mas há tristeza no teu peito emaranhada,

Alguns fios a macular toda a alegria,

Outros mais fortes chamando a nostalgia,

Cada emoção dessa forma anuançada...

 

Em mim também existe, acompanhada

Por desapontos, azedumes e elegia,

Mas não a permito manchar o que eu queria:

A paz de espírito em ti toda renovada.

 

Assim insisto, com plena compreensão,

As mágoas do passado me escudaram,

A seu despeito, enraizei minha aguardança,

 

Já que os amores do passado mortos são,

Somente vivem esses dias que te amaram,

Em um futuro junto a ti tendo esperança...

 

CONCUBINA I – 2 SET 19

 

meus músculos são metade do que foram,

fui mais alto também, mas aos setenta

e mais sete anos, nova se apresenta

a realidade dos fatos que desdouram.

 

não uso mais machado ou picareta,

troquei por um teclado de discreto

soar, que à madrugada por completo

me leva a trabalhar, numa direta

 

troca do dia pela noite muda,

que me contempla, meiga e solidária,

que num suspiro o meu penar compreende,

 

que junto a mim nos versos se desnuda:

não sou velho, afinal: é a sedentária

atividade que a traduzir me prende...

 

CONCUBINA II

 

na verdade, foi o tal computador

que as vértebras, lentamente, me forçou,

minhas cartilagens, aos poucos, ressecou,

mesmo sem ter ressecado meu pendor.

 

também meus olhos já têm menor ardor,

embora, alguma vez, a arder deixou;

sobre o teclado meu deeneá ficou,

desfalecido por falta de calor...

 

calor da alma, que o calor real,

esse que os poros obriga até a chorar,

na realidade, sempre fez-me muito mal;

 

de caminhar a me cortar disposição...

não admira que me ponha a sedentar,

ventiladores só a mostrar-me compaixão!

 

CONCUBINA III

 

pois o aparelho que de noite me acompanha

tornou-se quase uma esposa secundária:

má barregã, de natureza vária,

que meus próprios desejos não amanha!

 

e se algum trecho a seduzir me assanha,

dá-me a máquina a propensão contrária,

qualquer desejo desprezado como pária:

sem completar, a paga não se ganha!...

 

e ao mesmo tempo, é caprichosa gueixa,

treinada apenas para o martelar

nas teclas frias da noite tenebrosa,

 

quando esse impulso de concluir não deixa

e a concubina meus dedos vem beijar

a cada hora que me foge, silenciosa...

 

NETHEAD I – 3 SET 19 (*)

(Viciado na rede digital)

 

De quando em vez, nas vagas da tormenta,

ferve meu sangue, movido pelo açoite

de nova exaltação e, em meu transnoite,

um verso novo e bom logo se assenta,

 

não mais na folha branca, em salmodia;

é no computador, na tela esquiva,

que tudo mostra e nega, na furtiva,

pixélica efusão que me envolvia.

 

Percebo então que esperança é aleivosia,

pois quantas vezes zombou de mim o fado...

porém insisto em lutar, por teimosia,

 

enquanto imagens falsas me retraças,

assim prossigo eu, entusiasmado,

na dança imaculada das desgraças... (*)

(*) Reconheço que este soneto revira o ponto de vista narrativo,

      três vozes a discutir uma com a outra.

 

NETHEAD II

 

Algumas vezes, me venho a rebelar

contra essa imposição da tirania,

ou manifesta ocasião de aleivosia, (*)

que me busca abertamente dominar,

 

nos intervalos deste meu elaborar

de traduções em que descansaria,

mas retorna a exaltação, à revelia:

novos sonetos me ponho a rascunhar!

 

Por isso, às vezes, quando sofre meu olhar,

ou quando falha em computar me trairia,

eu me recuso a lhes dar novo formato...

 

Porém vão se acumulando sem parar

e dessa poeira me sobe a gritaria,

que me atordoa sem sombra de recato!

(*) Mentira, traição.

 

NETHEAD III

 

Assim retorno, como o faço agora,

mais de ano e meio deixado a acumular,

por sorte com borrachinhas a guardar,

classificados assim nos dias de outrora...

 

Mas como faz-se exagerada essa demora!

para qualquer rascunho a revisar,

dois, três ou mais me vêm a pulular

e dessa forma se escorre cada hora...

 

e novamente, até pareço me viciar

nessa dança digital de meu teclado,

porém, de fato, me sinto acabrunhado,

 

quando percebo como é falso esse cantar,

enquanto zomba de mim a polvadeira,

qual vigarista a dominar-me inteira!...

 

EXIGÊNCIAS I – 4 SET 19

 

eu nunca me recuso a trabalhar,

não está em mim: é minha natureza,

nasci para os labores, com certeza

e nem sequer conheço o descansar.

e agora, meu Dionysos, me vens dar,

um novo impulso para mais grandeza

imprimir à minha vida sem beleza,

para mais tempo aos versos dedicar:

é tal a vastidão que me despontas!...

embora saiba que ao final das contas

seja operário do verso... e tradutor;

e para isso sigo trabalhando,

minhas tarefas firme executando,

vivendo em adrenalínico esplendor.

 

EXIGÊNCIAS II

 

impulsos esses que não deixam descansar:

eu chego a me acordar durante a noite,

voz insistente a chamar-me como açoite,

para ao trabalho interrompido retornar!

ouço dizer que existe algum bloquear

na inspiração de um escritor afoite,

que em bebida ou distração se acoite,

porque não pode a sua obra continuar;

mas comigo é o contrário – refugio

o meu cansaço por algumas horas

e logo volta Dionysos a exigir,

na imensidão teológica do brio,

pois me fez depositário das demoras

de tanta obra que não se pôde concluir.

 

EXIGÊNCIAS III

 

sem dúvida, é tão grande a variedade

de tantas vozes que se contrariam

que meus próprios pensamentos desconfiam

de que tais versos não são meus na realidade;

que Dionysos recolheu da antiguidade

a obra dos poetas que morriam,

sem completar o quanto perseguiam

e me afoga em tal tormenta sem maldade;

por só deseja é ver o amor antigo

sendo descrito nos tempos do presente

e assim me toca a lira e o tamborim,

de modo tal que negar-me não consigo

e servo sigo desse deus premente,

sua voz imposta, ardente, sobre mim!


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