quarta-feira, 30 de dezembro de 2020


 

 

A PARLANÇA DO POEMA I – 25 MAR 20

 

Uma coisa é a linguagem dos poemas

e bem diversa a da realidade:

cortam-se erres e esses sem piedade

e a concordância sofre duras penas!

Essa gíria popular que até condenas

natural soa em sua vulgaridade

e é bem fácil degradar-se a qualidade

no quotidiano das diárias cenas...

pois se tentarmos falar com mais cuidado

é bem possível não sermos entendidos:

dizem que a gente “não fala declarado”!...

porém nos versos tom melhor será buscado,

mesmo em quadrinhas populares atendidos

os troncos básicos do idioma mutilado...

 

A PARLANÇA DO POEMA II

 

Mas nem por isso falarei mais “empolado”,

uso as palavras que me vêm à mente,

para a rima chega alguma que é infrequente,

mas só por isso espero ser perdoado;

que não seja o meu denodo condenado,

ao dicionário não vou buscar contente

qualquer termo desconhecido pela gente,

só por grafias será o livro consultado,

mas certas vezes uma palavra chora,

tendo saudade do mundo exterior,

no qual já mais ninguém lhe dá favor,

todo esquecido o seu valor de outrora,

quando a empregavam rei e camponês:

no verso a abraço apenas desta vez...

 

A PARLANÇA DO POEMA III

 

Algumas vezes coloco um asterisco

bem no final do verso, a explicar

significado a pretender comunicar,

para a leitura é claro que me arrisco,

mas geralmente é um termo que confisco

do científico ou biológico falar

e me recuso inteiramente a interpolar

o significado das palavras desse disco,

que seja claro isto que digo eu julgo,

que não habito em torre de marfim,

nem coisa esdrúxula na poesia divulgo,

embora empregue certa vez uma parlança,

em que devia fazer certa mudança,

mas dou de ombros... e deixo mesmo assim!

 

ENCAIXE I – 26 mar 2020

 

Deito a teu lado e a palavra de carinho

sai de tua boca para encher-me o ouvido;

mal posso acreditar que sou querido,

após o meu viver triste e mesquinho.

 

Sei bem que amor é fato comezinho,

porém o meu vivia só no olvido:

depois de ser por abandono perseguido,

temia o fado ter de estar sozinho...

 

Mas de repente, teus olhos me alcançaram,

depois de tanto terem-me evitado,

belos e agudos a penetrar nos meus...

 

e meus ouvidos os sons teus abençoaram,

morta a tristeza por que fôra antes magoado

e os meus se perdem agora só nos teus...

 

ENCAIXE II

 

De repetir-se há em tudo redundância:

por tolice qualquer eu me escondi,

ao receber certo rancor de ti,

sem me atrever a enfrentar a circunstância

 

de meu martírio, perdido nessa instância,

depois que te busquei e não te vi,

ausente estavas, mesmo estando ali,

somente o afastamento em tua constância...

 

Foi então que em outros amores me perdi,

em alguns deles mostrei-me até fiel

e nesses incertos olhares me acolhi,

 

mas de teus beijos nunca me esqueci,

em lábios outros degustando fel,

igual fantasma de mim mesmo assim vivi.

 

ENCAIXE III

 

Em ti busquei o meu amor de sol,

a contentar-me com pálidas estrelas;

seus raios cintilavam e eram belas,

porém distante encontrei seu arrebol.

 

Por mais que me acendessem seu farol

e me deixassem alçar-me em suas estelas,

era incompleto o amor de tais donzelas

e me sentia derretido num crisol...

 

só aguardava por ti meu coração,

meu corpo apenas em irrequieto ardor,

enquanto a alma ia além da atmosfera,

 

em Vênus pura encontrando só ilusão,

em Betelgeuse a frigidez do amor,

a mente toda confrangida nessa espera...

 

ENCAIXE IV -- 26/3/2006

 

Depois de década e mais de lenta espera

em que minha própria incúria me afastava

e a quanto mais queria, me negava,

toquei de leve a sombra da quimera...

 

Depois de década nessa alheia esfera,

em que cada circunstância denegava,

sorriu-se o fado  e os nós nos desatava,

completando esse enlaçar que mais quisera...

 

No aquecimento lento dos abraços,

teus olhos sobre os meus, teus olhos baços,

quase apagados, mornos de lixívia...

 

Na singular magia dos teus traços,

antes comuns e agora, nos meus braços,

transfiguradas jóias de lascívia!...

 

SINGULARIDADE I – 27 mar 2020

 

Há sempre sorte como fração de amor,

Mas nunca amor que não nos traga sorte,

Pequeno e sem fragor em flébil porte,

Mas só existe quando é duplo o seu ardor.

 

Se não recíproco, é desejo sem valor,

Para outrem lançado sem reporte,

Amor brejeiro em um singelo esporte

Brandido contra nós sem destemor.

 

Quando a mulher se sente desejada

Mas tenha apenas aceitação mental,

A sua vaidade num afago material

 

E até amiga, em condescendência alada,

Seu orgulho exultante nessa hora,

Na avaliação de quanto nos devora...

 

SINGULARIDADE II

Cunhou-se o termo “singularidade”

Para indicar o que ocorre uma só vez;

Beijos gozados com desfaçatez

Não se enquadram nessa mística verdade.

 

Os beijos que se busca são vaidade,

São beijos-cópia que em teus lábios vês

Só um beijo que em mútuo amor lhes dês

Será um beijo de total veracidade.

 

Reconheço de amores  grande variedade,

Uns sendo simples, outros complicados,

Amores há que só querem ser trocados

 

Por segurança mais do que felicidade;

E nesta intenção são mesmo puros,

Mas na saliva se percebem tons escuros...

 

SINGULARIDADE III

 

E a singular imagem do Universo

Só a teu amor poderá ser comparada,

Quando surgiu em mim na deslumbrada

E deslumbrante invasão de meu anverso.

 

Uma só vez, apenas, sem existir reverso,

Não são amores, mas união desamparada

E igual desamparante e acarinhada,

Toda impossível de registrar-se em verso...

 

Não obstante, muito além da vacuidade

Desses amores mais pequenos de minha vida,

Que em meus versos descrevi intermitentes,

 

Só esse mágico amor sem veleidade,

Quando a alma nos quer por nós querida,

E atroz nos arde em seus vigores permanentes ...

 

FOTOSSÍNTESE I – 28 MAR 2020

 

a luz do sol na flor Encarcerada,

em arco-íris se transforma como um Leque;

somente quando a flor emurche e Seque,

vai sendo essa centelha Libertada...

 

de puro verde a clorofila Deslumbrada

por cada folha no galhado Deque,

esta se lança ao sol antes que Peque

todo o vigor pela ampla terra Descuidada...

 

a luz do sol se espalha sem Limites,

para onde a maioria se Irradia?

só uma fração sobre a terra Pousaria,

por mais que a rede de clorofila Agites

e tanto mais se espalha sobre as Rochas,

sem da vida ali acender humildes Tochas!

 

FOTOSSÍNTESE II

 

a luz do sol em vastidão Alada

se espalha sobre o mar e tudo Aquece;

por sobre as algas igualmente Desce,

cianofícias ou de cor mais Variegada.

 

sem essa luz do sol toda Gelada

seria a superfície que se Mece;

de uma outra fotossíntese Padece,

cada corrente marinha assim Gerada...

 

e ao mesmo tempo os ventos Origina,

enquanto a terra volteia Permanente,

por ser preciso que um hemisfério Esquente,

enquanto o outro para o frio se Inclina;

se assim não fora, a vida Conhecida

em parte alguma seria Introduzida.

 

FOTOSSÍNTESE III

 

e desce a alma do sol nos Alimentos,

que “toda a carne é erva”, Realmente;

a fotossíntese em todo ser se faz Presente,

transfere a alma aos animais Sedentos.

 

uma outra fotossíntese em seus Alentos

se realiza, que a erva em carne se Apresente,

nessa cadeia o próprio sangue se Apascente,

anéis carnais em seus progressos Lentos...

 

e assim vem para nós, que os Devoramos,

porque aprendemos como tudo Aproveitar,

filhos e herdeiros nos tornamos desse Sol;

para mim chega em solstícios mais Arcanos:

essa torrente irei de novo Alimentar,

em meus versos de esmeralda qual Farol.

 

FOTOSSÍNTESE IV – (28/3/2004)

 

dos alimentos a alma Aprisionada

se evola em redolências do meu Ser

e a energia por outros Dissipada

transformo em verso e música e Poder.

 

da luz do sol toda a memória Alçada,

lingotes minerais cada raiz a Desprender,

caleidoscópio branco em meu Prazer,

em madrigais a clorofila é Requentada...

 

derramo assim meu sêmen sem Malícia

sobre as páginas brancas, Versejando,

nos pentagramas os textos Fecundando,

 

em canções gaseificadas de Letícia,

demarcando meus limites, sem Tristeza,

com fotossíntese sutil que em mim Viceja...

 

permanência 1 – 29 março 2020

 

sei de um poeta que passou sua vida

reescrevendo um só livro que compôs:

folhas de relva em seus papéis dispôs

e a nada mais criou nem deu guarida.

 

que coisa  estranha essa aridez contida,

tão convicta de si que só repôs

sua pena no papel em correção; depôs

um risco aqui ou inclusão ali ferida.

 

mas eu jamais poderia agir assim!

detesto a própria ideia de riscar,

tão só rascunhos eu busco aperfeiçoar.

 

e me percebo a meditar assim,

que algo precisa se mudar, porém

minha própria vida eu riscarei também.

 

permanência 2

 

muito lamento esse poeta antigo,

que de algum modo alcançou acolhimento,

em quarenta edições fez o portento

de sempre algo exumar de seu jazigo...

 

um só cadáver a conduzir consigo,

desenterrado após seu passamento,

a mortalha a rebordar a seu contento,

de qualquer ressurreição tendo perigo...

 

ele evitava as regras, certamente

e as suas construções desencontradas

eram louvadas como sendo originais.

 

porém comigo transporto mais dolente,

de múmias multidões acabrunhadas,

cujas faixas desnudar não quero mais.

 

permanência 3

 

mil mortos-vivos pelo mundo já enviei,

são mortos todos em túmulos de versos,

são vivos todos por teu olhar conversos:

para teu cérebro devorar nunca mandei...

 

do meu saíram, em que fendas perfurei,

meus neurônios e axônios são dispersos,

mas em cada gestalt são diversos,

têm ideias próprias que eu só manipulei...

 

então não vejo algum porquê de revisar,

embora aos poucos os vá desenterrar,

das tumbas a alavancar lápides roucas...

 

nas catacumbas porém estando a perfilhar,

consigo trazem multidão de crias loucas,

que tua paciência se põem a experimentar...

 

permanência 4

 

em sendo crias, igualmente são crianças,

mas esquecidos foram já seus genitores,

alguns dos quais comportaram esplendores,

outros mais simples que facilmente alcanças

 

reconhecer; mas sei somente em tais andanças

que quanto mais exponho seus verdores,

tanto mais de meu sentir cobram amores

e me desgasto em tal girândola de danças...

 

não sobra tempo realmente às revisões

e os entrego, sem defesa, às multidões,

que os poderão esfolar ou dar-lhes mantos,

 

e assim expõem para ti suas mutações,

querendo as fibras arrancar dos corações,

liras forjando para as teclas de seus cantos.

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