ADVERTÊNCIA I – 1º fevereiro 2020
Quando um casal convive muitos anos,
ou quando amigos têm real afinidade,
ou se exacerba por demais maternidade
no coração da mãe, rituais arcanos
e dessa companheira os desenganos
da vida ou reais efeitos da mortalidade,
ou o amigo ou o filho, sem piedade,
dele ou dela dilacerem os afanos,
quando ficam a nutrir sobreviventes,
talvez por décadas, a mais crua saudade,
em qualquer ponto escuso de suas mentes,
falsos se formam traços de personalidade,
suas imagens desenvolvendo urgentes,
bem mais que um corpo astral na realidade.
ADVERTÊNCIA II
Não são almas realmente ali inseridas
pela indigência atroz de uma carência,
nem conformadas através da inteligência,
mas por seus sentimentos concebidas
e ali ficam pseudoalmas falecidas,
a tomar corpo em tal benemerência,
alimentadas por lembranças em potência,
muito diversas do que foram em suas vidas,
pois em geral já se esquecem os defeitos
e se exageram todas as qualidades,
muito mais a que as humanas têm direitos
e tal fantasma, como um câncer, cresce
dentro do cérebro dessas personalidades,
talvez com o vivo a partilhar de alguma prece!
ADVERTÊNCIA III
Eventualmente, o viúvo ou viúva morre,
ou morre a mãe ou o amigo verdadeiro,
mas sempre há alguém no momento derradeiro
que o acompanhe enquanto a vida escorre,
que a higiene lhe faça e a cama forre,
talvez qualquer atendente ou enfermeiro,
mas com frequência uma filha ou companheiro,
que a lenta saga de cuidados lhe percorre.
E que acontece, caso o moribundo
comece a tratar o carinhoso cuidador
pelo nome da idealizada criatura
e benfazejo, ou talvez em tom jocundo,
ela ou ele lhe responda com amor,
como se fosse realmente essa figura?
ADVERTÊNCIA IV
Tudo depende do grau de intensidade
com que atende ao suplicar do falecido;
se não ficar por demais comprometido,
finalmente se dissolve essa entidade,
mas se essa que o atende, na verdade,
tem grande amor pelo ente sucumbido
ou sente culpa por se haver desentendido
vezes demais em um passado sem bondade?
Sempre é possível que venha a acontecer
que esse fragmento, sem ter viver real,
mas que deseje um pouco mais sobreviver,
se projete para fora dessa mente
e se introduza em qualquer rede neural
desse infeliz, esperando que o alimente!
BUQUÊ DE FOGOS-FÁTUOS I – 2 FEV 20
Ela sorri de leve
e encosta a mão,
na farsa de um
convite sugerido...
Solta um suspiro
breve ao pé do ouvido,
qual revelasse
por mim certa emoção.
Muita vez já
partilhei tal ilusão,
por sugestões
apenas perseguido...
Não há desejo ali
por mim sentido:
É o jogo, nada
mais, da sedução...
Mas no momento em
que a fábula aceitasse,
me obrigaria a correr
atrás de si,
pelo prazer de
causar-me sofrimento.
E até possível,
talvez, que se eu tentasse,
me "desse
bem", como dizem por aí,
mas não me abalo
a fazer o investimento...
BUQUÊ DE
FOGOS-FÁTUOS II
Tanta mulher
existe, até insegura,
mais desejando se
sentir mulher,
que se aproxima
sorrateira de um qualquer,
na sugestão de
sutil chamada impura,
ou de outras
vezes, em proposta apura,
não para amor,
que nem sente sequer,
mas para o leito
em que provar-se quer
sedutora muito além
de qualquer jura...
seja em promessa
falsa ou até casual,
nesse acenar para
um relacionamento
não há valor real
e nem virtual,
mas tão somente
para à vaidade dar sustento,
seja no espírito,
mais frequente no carnal,
em revoada já no
próximo momento...
BUQUÊ DE
FOGOS-FÁTUOS III
Deste modo,
sempre usei certa cautela,
antes de nesse
jogo proposto me imiscuir;
mas se ela apenas
se desejava divertir,
podia igualmente
me divertir com ela,
mas nunca dei meu
coração a tal donzela,
que frágil sempre
foi e poder-se-ia ferir,
não se importando
com um simples seduzir,
mas no usufruto
de relação que se encastela
nos alicerces de
sérios sentimentos,
não nos fossos de
possíveis desalentos;
assim não cruzo a
ponte levadiça,
a não ser já
preparado para a liça,
nessas justas de
amor trocando lanças,
sem me iludirem
suas palavras mansas...
BUQUÊ DE
FOGOS-FÁTUOS IV
Ainda hoje
percebo algures solidão
em alma alheia a
nutrir expectativas,
num lenitivo para
a feridas mais nocivas
que um amor falho
lhes deixou no coração.
E não me deixo
iludir por tal paixão,
às margaridas
prefiro as sempre-vivas,
na integridade
sempre sensitivas,
que de meu peito
guarde no jarrão,
mesmo não tendo
mais quaisquer momentos
para o embaralho
de novos sentimentos,
enquanto brando a
varinha de condão
que me legaram
Apollo ou Dionyso,
meus olhos a
fixar perante o viso
de outro poema
que me encadeie a mão.
SOMBRA
BRILHANTE I – 3 FEV 20
Eu
poderia dizer que em minha retina
ainda
guardo mil imagens que eram tuas,
imagens
persistentes, formas nuas,
sonora
a imagem da voz que me fascina;
eu
poderia dizer que assim me ensina
a
vida, em suas contínuas tranças cruas,
para
sempre dentro em mim, embora as ruas
não
mais percorras em teus passos de menina,
que
há muito já não és; e entanto vejo
conservada
de ti a luz do ensejo
dessa
imagem entre pudor e fescenina;
mas
não guardo de ti visão que chegue,
meu
amor não se esvaiu e ainda segue
a
sombra tua que avisto em cada esquina...
SOMBRA
BRILHANTE II
Talvez
reclamem da tolice dessa imagem:
como
uma sombra poderia ser brilhante?
Como
haveria a escuridão reinante
completar
esse efeito de miragem?
E
entretanto, bem sei não ser bobagem:
onde
se encontra a sombra em cada instante,
não
sendo mais que interromper da luz cortante
que
dos céus desce em repetida aragem?
Ou
nos brota da luz de simples vela
ou
de lanterna redonda e sorrateira
ou
desde o céu interno de uma casa,
sempre
mutável, carinhosa cinderella,
que
pelos móveis ora baila toda inteira
mas
a seguir bem longe deles vaza...
SOMBRA
BRILHANTE III
Pois
tua respiração feita poesia
alguma
sombra provoca dentro em mim,
cobre
da alma algum recanto assim,
mais
permanente que na rua seria;
e
essa imagem que a retina via,
deixa-lhe
sombra marchetada de carmim,
nela
gravada do começo até o fim,
quando
a retina afinal desmancharia...
portanto
o olhar em si causa ferida,
quando
essa sombra numa mancha torna
que
se grava para sempre no quiasma,
sem
que essa marca lhe seja dolorida,
mas
que a acalente qual centelha morna
a
condensar-se numa saudade pasma!...
ÁGUA
SALOBRA I – 4 FEV 2020
É quando
esse relâmpago acomete
os páramos
de sonhos tonitruantes,
que se
interrompe essa minha delirante
captação da
vida, a que remete
a tradução
de livros, essa enquete
de alhures
pensamentos cascateantes,
nas redes
de neurônios dominantes,
por alguns
dias, até que se complete.
Só então é
que desligo esse aparelho
e me sobram
momentos de mim mesmo,
quando se
põe a refluir a fonte clara,
água
salobra de meu poço velho,
que tiro
aos baldes e derramo a esmo,
por
demonstrar até que ponto é amara...
ÁGUA
SALOBRA II
Contudo, o
pouco tempo que me sobra
não guardo
para mim, pensando em ti,
melancolia
adormecendo aqui,
enquanto a
tua saudade assim me cobra
recordação
que a cada dia se redobra,
cada
momento relembrando em que te vi,
ou cada
instante que depois perdi,
atabalhoado
em tanta alheia obra.
Fica o
rascunho apenas dessa imagem,
que se
preserve num asilo de calor,
nessa
presença a sentir a alma asilada,
por mais
que seja momentânea essa contagem
dos
períodos faiscantes desse amor,
depois
perdido no fragor da tempestade.
ÁGUA
SALOBRA III
Mas o
corisco vem inteiro de teu olhos,
como as
centelhas que partem do fogão,
que não
consigo captar dentro da mão
e pelo
espaço não deixam quaisquer fólios,
esses
faíscas que brotam dos escolhos
de teu
olhar a me cobrir em profusão,
ariscas
luzes no pensamento são,
rasgando
fontes de líquidos espólios.
E quando a
mim esse relâmpago acomete,
meus sonhos
abrem braços para a chuva,
que os
recobre de frescor como uma luva
e pelos
nervos distribui-se qual confete,
de cada
parte de mim lambendo a mágoa,
por mais
salobra sendo a lágrima em tal frágua.
JERICÓ ONE Revisitado – 5 fev 20
eu
canto o encanto monótono do beijo
tantas
vezes repetido com amor,
por mais
que conhecido o seu sabor,
na experiência
sutil de novo ensejo,
que se revela,
a mim e
a ela,
numa janela,
exposta
ao vento!
louvo
o beijo conhecido e sem mistério,
beijo
doméstico, de expressão singela,
beijo de
despertar, beijo de vela,
sem
explosão de intenso despautério,
mas rico
ainda, em sua intensidade,
no
conhecido flavor da saciedade,
que
diariamente nos traz o refrigério.
JERICÓ ONE II
eu canto o encanto monótono do leito,
em que juntos, com amor,
nos aninhamos,
sob as cobertas em que
nos confortamos,
teus cabelos espalhados
no meu peito,
no mesmo olor
qual alecrim
misto a jasmim,
de igual primor!
eu louvo o leito de
colchão marcado,
leito doméstico de
lençóis cansados,
leito de adormecer sem
ter cuidados,
em que se acorda com o
corpo renovado,
quando um bando de
pássaros revela
num pipilar matutino sem
cautela
um rosto amigo de olhos
machucados...
JERICÓ ONE III
eu canto o canto monótono
do abraço
repetido tantas vezes,
sem maldade,
despido embora de toda a
novidade
e no entretanto de
carinhoso traço,
esse abraço frequente,
com algum prazer,
amor de pertencer,
sem nada diferente.
eu louvo o abraço trocado
sem mistério,
sem ter escrúpulos, pleno
e descansado,
pequeno seja o esplendor
aqui alcançado,
porém constante em
somatório sério,
tranquilidade de uma
plena aceitação,
salvo em momento de menor
excitação,
repetido como a prece em
monastério...
JERICÓ ONE IV
eu canto o canto monótono
da confiança,
nessa ilusão de tudo
conhecer
de quem se iluda por tudo
compreender
nessas mágoas silenciosas
da esperança,
amor de prole,
amor de lar,
sem lupanar
que nos engole.
louvo a confiança que nos
traz o tédio,
porém que novamente se enriquece,
quando a coberta para os
pés se desce
e num carinho se renova o
assédio,
amor sem provocar grande
exercício,
confiança plena nesse
amor sem vício
em que o desejo só nos
traz espanto médio...
Nenhum comentário:
Postar um comentário