sexta-feira, 18 de dezembro de 2020


 

 

ADVERTÊNCIA I – 1º  fevereiro 2020

 

Quando um casal convive muitos anos,

ou quando amigos têm real afinidade,

ou se exacerba por demais maternidade

no coração da mãe, rituais arcanos

e dessa companheira os desenganos

da vida ou reais efeitos da mortalidade,

ou o amigo ou o filho, sem piedade,

dele ou dela dilacerem os afanos,

 

quando ficam a nutrir sobreviventes,

talvez por décadas, a mais crua saudade,

em qualquer ponto escuso de suas mentes,

falsos se formam traços de personalidade,

suas imagens desenvolvendo urgentes,

bem mais que um corpo astral na realidade.

 

ADVERTÊNCIA II

 

Não são almas realmente ali inseridas

pela indigência atroz de uma carência,

nem conformadas através da inteligência,

mas por seus sentimentos concebidas

e ali ficam pseudoalmas falecidas,

a tomar corpo em tal benemerência,

alimentadas por lembranças em potência,

muito diversas do que foram em suas vidas,

 

pois em geral já se esquecem os defeitos

e se exageram todas as qualidades,

muito mais a que as humanas têm direitos

e tal fantasma, como um câncer, cresce

dentro do cérebro dessas personalidades,

talvez com o vivo a partilhar de alguma prece!

 

ADVERTÊNCIA III

 

Eventualmente, o viúvo ou viúva morre,

ou morre a mãe ou o amigo verdadeiro,

mas sempre há alguém no momento derradeiro

que o acompanhe enquanto a vida escorre,

que a higiene lhe faça e a cama forre,

talvez qualquer atendente ou enfermeiro,

mas com frequência uma filha ou companheiro,

que a lenta saga de cuidados lhe percorre.

 

E que acontece, caso o moribundo

comece a tratar o carinhoso cuidador

pelo nome da idealizada criatura

e benfazejo, ou talvez em tom jocundo,

ela ou ele lhe responda com amor,

como se fosse realmente essa figura?

 

ADVERTÊNCIA IV

 

Tudo depende do grau de intensidade

com que atende ao suplicar do falecido;

se não ficar por demais comprometido,

finalmente se dissolve essa entidade,

mas se essa que o atende, na verdade,

tem grande amor pelo ente sucumbido

ou sente culpa por se haver desentendido

vezes demais em um passado sem bondade?

 

Sempre é possível que venha a acontecer

que esse fragmento, sem ter viver real,

mas que deseje um pouco mais sobreviver,

se projete para fora dessa mente

e se introduza em qualquer rede neural

desse infeliz, esperando que o alimente!

 

BUQUÊ DE FOGOS-FÁTUOS I – 2 FEV 20

 

Ela sorri de leve e encosta a mão,

na farsa de um convite sugerido...

Solta um suspiro breve ao pé do ouvido,

qual revelasse por mim certa emoção.

 

Muita vez já partilhei tal ilusão,

por sugestões apenas perseguido...

Não há desejo ali por mim sentido:

É o jogo, nada mais, da sedução...

 

Mas no momento em que a fábula aceitasse,

me obrigaria a correr atrás de si,

pelo prazer de causar-me sofrimento.

 

E até possível, talvez, que se eu tentasse,

me "desse bem", como dizem por aí,

mas não me abalo a fazer o investimento...

 

BUQUÊ DE FOGOS-FÁTUOS II

 

Tanta mulher existe, até insegura,

mais desejando se sentir mulher,

que se aproxima sorrateira de um qualquer,

na sugestão de sutil chamada impura,

 

ou de outras vezes, em proposta apura,

não para amor, que nem sente sequer,

mas para o leito em que provar-se quer

sedutora muito além de qualquer jura...

 

seja em promessa falsa ou até casual,

nesse acenar para um relacionamento

não há valor real e nem virtual,

mas tão somente para à vaidade dar sustento,

seja no espírito, mais frequente no carnal,

em revoada já no próximo momento...

 

BUQUÊ DE FOGOS-FÁTUOS III

 

Deste modo, sempre usei certa cautela,

antes de nesse jogo proposto me imiscuir;

mas se ela apenas se desejava divertir,

podia igualmente me divertir com ela,

 

mas nunca dei meu coração a tal donzela,

que frágil sempre foi e poder-se-ia ferir,

não se importando com um simples seduzir,

mas no usufruto de relação que se encastela

 

nos alicerces de sérios sentimentos,

não nos fossos de possíveis desalentos;

assim não cruzo a ponte levadiça,

a não ser já preparado para a liça,

nessas justas de amor trocando lanças,

sem me iludirem suas palavras mansas...

 

BUQUÊ DE FOGOS-FÁTUOS IV

 

Ainda hoje percebo algures solidão

em alma alheia a nutrir expectativas,

num lenitivo para a feridas mais nocivas

que um amor falho lhes deixou no coração.

 

E não me deixo iludir por tal paixão,

às margaridas prefiro as sempre-vivas,

na integridade sempre sensitivas,

que de meu peito guarde no jarrão,

 

mesmo não tendo mais quaisquer momentos

para o embaralho de novos sentimentos,

enquanto brando a varinha de condão

que me legaram Apollo ou Dionyso,

meus olhos a fixar perante o viso

de outro poema que me encadeie a mão.

 

SOMBRA BRILHANTE I – 3 FEV 20

 

Eu poderia dizer que em minha retina

ainda guardo mil imagens que eram tuas,

imagens persistentes, formas nuas,

sonora a imagem da voz que me fascina;

eu poderia dizer que assim me ensina

a vida, em suas contínuas tranças cruas,

para sempre dentro em mim, embora as ruas

não mais percorras em teus passos de menina,

que há muito já não és; e entanto vejo

conservada de ti a luz do ensejo

dessa imagem entre pudor e fescenina;

mas não guardo de ti visão que chegue,

meu amor não se esvaiu e ainda segue

a sombra tua que avisto em cada esquina...

 

SOMBRA BRILHANTE II

 

Talvez reclamem da tolice dessa imagem:

como uma sombra poderia ser brilhante?

Como haveria a escuridão reinante

completar esse efeito de miragem?

E entretanto, bem sei não ser bobagem:

onde se encontra a sombra em cada instante,

não sendo mais que interromper da luz cortante

que dos céus desce em repetida aragem?

Ou nos brota da luz de simples vela

ou de lanterna redonda e sorrateira

ou desde o céu interno de uma casa,

sempre mutável, carinhosa cinderella,

que pelos móveis ora baila toda inteira

mas a seguir bem longe deles vaza...

 

SOMBRA BRILHANTE III

 

Pois tua respiração feita poesia

alguma sombra provoca dentro em mim,

cobre da alma algum recanto assim,

mais permanente que na rua seria;

e essa imagem que a retina via,

deixa-lhe sombra marchetada de carmim,

nela gravada do começo até o fim,

quando a retina afinal desmancharia...

portanto o olhar em si causa ferida,

quando essa sombra numa mancha torna

que se grava para sempre no quiasma,

sem que essa marca lhe seja dolorida,

mas que a acalente qual centelha morna

a condensar-se numa saudade pasma!...

 

ÁGUA SALOBRA I – 4 FEV 2020

 

É quando esse relâmpago acomete

os páramos de sonhos tonitruantes,

que se interrompe essa minha delirante

captação da vida, a que remete

a tradução de livros, essa enquete

de alhures pensamentos cascateantes,

nas redes de neurônios dominantes,

por alguns dias, até que se complete.

 

Só então é que desligo esse aparelho

e me sobram momentos de mim mesmo,

quando se põe a refluir a fonte clara,

água salobra de meu poço velho,

que tiro aos baldes e derramo a esmo,

por demonstrar até que ponto é amara...

 

ÁGUA SALOBRA II

 

Contudo, o pouco tempo que me sobra

não guardo para mim, pensando em ti,

melancolia adormecendo aqui,

enquanto a tua saudade assim me cobra

recordação que a cada dia se redobra,

cada momento relembrando em que te vi,

ou cada instante que depois perdi,

atabalhoado em tanta alheia obra.

 

Fica o rascunho apenas dessa imagem,

que se preserve num asilo de calor,

nessa presença a sentir a alma asilada,

por mais que seja momentânea essa contagem

dos períodos faiscantes desse amor,

depois perdido no fragor da tempestade.

 

ÁGUA SALOBRA III

 

Mas o corisco vem inteiro de teu olhos,

como as centelhas que partem do fogão,

que não consigo captar dentro da mão

e pelo espaço não deixam quaisquer fólios,

esses faíscas que brotam dos escolhos

de teu olhar a me cobrir em profusão,

ariscas luzes no pensamento são,

rasgando fontes de líquidos espólios.

 

E quando a mim esse relâmpago acomete,

meus sonhos abrem braços para a chuva,

que os recobre de frescor como uma luva

e pelos nervos distribui-se qual confete,

de cada parte de mim lambendo a mágoa,

por mais salobra sendo a lágrima em tal frágua.

 

JERICÓ ONE Revisitado – 5 fev 20

 

            eu canto o encanto monótono do beijo

            tantas vezes repetido com amor,

            por mais que conhecido o seu sabor,

            na experiência sutil de novo ensejo,

                    que se revela,

                    a mim e a ela,

                    numa janela,

                    exposta ao vento!

            louvo o beijo conhecido e sem mistério,

            beijo doméstico, de expressão singela,

            beijo de despertar, beijo de vela,

            sem explosão de intenso despautério,

            mas rico ainda, em sua intensidade,

            no conhecido flavor da saciedade,

            que diariamente nos traz o refrigério.

 

JERICÓ ONE II

 

   eu canto o encanto monótono do leito,

   em que juntos, com amor, nos aninhamos,

   sob as cobertas em que nos confortamos,

   teus cabelos espalhados no meu peito,

no mesmo olor

qual alecrim

misto a jasmim,

de igual primor!

   eu louvo o leito de colchão marcado,

   leito doméstico de lençóis cansados,

   leito de adormecer sem ter cuidados,

   em que se acorda com o corpo renovado,

   quando um bando de pássaros revela

   num pipilar matutino sem cautela

   um rosto amigo de olhos machucados...

 

JERICÓ ONE III

 

   eu canto o canto monótono do abraço

   repetido tantas vezes, sem maldade,

   despido embora de toda a novidade

   e no entretanto de carinhoso traço,

esse abraço frequente,

com algum prazer,

amor de pertencer,

sem nada diferente.

   eu louvo o abraço trocado sem mistério,

   sem ter escrúpulos, pleno e descansado,

   pequeno seja o esplendor aqui alcançado,

   porém constante em somatório sério,

   tranquilidade de uma plena aceitação,

   salvo em momento de menor excitação,

   repetido como a prece em monastério...

 

JERICÓ ONE IV

 

   eu canto o canto monótono da confiança,

   nessa ilusão de tudo conhecer

   de quem se iluda por tudo compreender

   nessas mágoas silenciosas da esperança,

amor de prole,

amor de lar,

sem lupanar

que nos engole.

   louvo a confiança que nos traz o tédio,

   porém que novamente se enriquece,

   quando a coberta para os pés se desce

   e num carinho se renova o assédio,

   amor sem provocar grande exercício,

   confiança plena nesse amor sem vício

   em que o desejo só nos traz espanto médio...

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