terça-feira, 22 de dezembro de 2020


 

 

OS DOIS CORCUNDAS – 16 FEV 20

Folklore irlandês, adaptação e versão poética de

William lagos

 

OS DOIS CORCUNDAS I

 

Certas pessoas já nascem corcundas,

outras se vão encurvando pela idade...

mas ter de olhar os outros bem de baixo,

desde as vistas de pestanas fundas,

após de cima olhar na mocidade,

por ter sido transformado em cabisbaixo

é condição que traz tristeza, realmente

e grande mágoa ao coração dolente...

 

E se além disso alguém nascesse gago

e não pudesse expressar-se claramente,

sendo motivo para troça e zombaria,

a própria mãe a lhe fazer afago,

compadecida dele plenamente,

evitando rir-se dele engasgaria,

a quanto leva a condição humana:

desgraça alheia é uma alegria insana!

 

Pois mais ainda, que além de tudo o mais,

nascesse alguém extremamente pobre,

por mais que se esforçasse a trabalhar,

riquezas vendo só para os demais,

perante a vida será preciso que se dobre;

quando não pode a ela dominar...

e foi assim que esse mal alcança

a Patrick Blake, desde ainda criança...

 

Ainda pior, tinha ele um irmão

afligido por corcunda e por gaguez,

que por sorte despertara o sentimento

de uma viúva de bom coração,

talvez razão que a tal senhora fez

seu pedido aceitar de casamento...

sendo já velha, morreu sem deixar filhos,

Desmond Blake embarcando em ricos trilhos...

 

OS DOIS CORCUNDAS II

 

Seria de esperar que a boa sorte

seu coração triste houvera enternecido,

mas por mal dos pecados, o infeliz

se apaixonara ao lhe fazer a corte

e sua viúva o havia igual querido...

Quando morreu, a vida e o mundo então maldiz

e embora tivesse lhe deixado bom dinheiro,

não se tornou nem bom ou hospitaleiro...

 

E ao próprio irmão jamais ele ajudou,

pois o rapaz era um bom trabalhador,

apesar da corcunda e da gaguez,

porém somente casinha pequena lhe alugou,

determinando um aluguel de alto valor,

que lhe cobrava, pontualmente, mês a mês;

e quando esse aluguel ele atrasou,

sem qualquer pena, ao irmão já despejou...

 

E como ainda lhe devia dinheiro

nem o deixou levar os seus pertences:

só com a roupa do corpo o pôs na rua;

perdido o amor, era somente interesseiro

e a um avarento perdoar nunca convences

e assim Patrick saiu à luz da Lua,

para dormir apenas no relento,

sem um pedaço de pão para sustento!

 

Assim, o pobre e gago corcundinha

seguiu marchando ao longo de uma estrada;

por sorte, era uma noite de verão...

De onde dinheiro para o aluguel lhe vinha?

Corria os passos pela noite enluarada,

tristeza e pena no seu coração,

mas nem sequer contra o irmão se revoltar,

bem ao contrário, com seu direito a concordar!...

 

OS DOIS CORCUNDAS III

 

Ora, acontece que ali havia um altiplano,

entre as colinas de Tombrick e de Muldeen,

evitado desde então por irlandeses,

desde o Condado de Bundody pelo dano

até o de Enniscorthy, que provocava assim,

em resultado de ocorrerem ali, às vezes,

certos prodígios, fossem maus ou bons,

sendo melhor não escutar místicos sons...

 

Porém Patrick Blake, o nosso herói,

tinha ficado órfão muito cedo

e da fama do lugar sequer sabia;

ficando exausto, enfim deitar-se foi,

sem ter motivo para qualquer medo,

na grama verde que por ali nascia,

logo caindo no sono dos cansados,

os seus desgostos sendo rápido apagados...

 

Mas tão logo no alto do céu subiu a Lua,

o rapaz despertou e sua corcunda ergueu,

ao escutar de bela música os acordes...

e de repente, em uma rocha nua,

que uma porta se abria percebeu...

 Talvez abrigo em me dar sejam concordes...

E então entrou por um extenso corredor,

muitos torchais a lhe dar luz e calor...

 

E desta forma encontrou vasto salão

de gigantesco palácio subterrâneo,

pelas paredes estrelinhas aos milhares,

a contemplar, com estupefação

um povo lindo, de humano sucedâneo,

dançando alegremente, em muitos pares.

Mas só cantavam: “Segundas e Segundas,

Terças e Terças”, em inclinações profundas!

 

OS DOIS CORCUNDAS IV

 

Então Patrick igualmente se inclinou

profundamente e alguns as mãos lhe deram...

Ficou dançando alegre o corcundinha,

mas de cantar só tais palavras se cansou

e como os gagos, quando cantam, nunca erram,

rapidamente modificou sua ladainha:

“Isso é muito bonito, realmente,

porém é curto demais, naturalmente...”

 

Sempre cantando a música escutada,

ele entoou: “Terças e Segundas,

Segundas, Terças e já Quartas-feiras!”

E continuou, bem empostadamente:

“Quartas e Quintas,” em vênias mais profundas,

“Quartas e Quintas, depois Sextas-feiras!”

E tão bem lhes apresentou essa versão

que das palavras se agradou a multidão!

 

Era uma tribo de silfos e de fadas,

muito claros os seus corpos dourados,

todos trajando roupagens cintilantes,

as suas asas translúcidas prateadas,

os seus longos cabelos encarnados,

ágeis e belos seus passos saltitantes:

nenhum deles lhe passava da cintura,

os rostos lindos a cantar na voz mais pura!

 

Ora, por que a Monday, Tuesday limitavam

o seu canto de harmonia celestial

e Wednesday, Thursday tanto os encantou

e logo Friday as suas vozes entoavam,

para irlandeses talvez fosse natural,

mas essa rima pouco ou nada me inspirou:

Segundas, Terças e Quartas, realmente,

Quintas e Sextas não têm nada surpreendente!

 

OS DOIS CORCUNDAS V

 

Mas ao povinho das fadas agradou,

horas e horas a cantar passaram

e Patrick alegremente acompanhava,

sua corcunda em nada o atrapalhou,

até que os outros finalmente se cansaram,

quando a Lua já o horizonte transpassava...

Então o rapaz sentou-se num banquinho,

de fome e sede a sentir só um pouquinho...

 

Logo a seguir, a regente dessa orquestra,

os músicos já guardando os instrumentos,

chegou-se a ele na maior delicadeza:

“Desta maneira a melodia é bem mais destra

e muito alegra os nossos sentimentos,

estamos todos muito gratos, com certeza!”

Patrick então, só com a cabeça, agradecera:

caso falasse, talvez o encanto se perdera...

 

“Somos silfos e fadas, como vê,

a mais antiga raça desta terra...

pelos favores é costume agradecer...”

“Não é pre-preciso que na-nada se me dê...”

Mas a fadinha sua negativa encerra:

“Mencione algo que possamos lhe fazer,

não gostamos de ficar algo devendo,

diga o que quer e com prazer lhe atendo!”

 

Então Patrick finalmente decidiu:

Que importância tem se notarem que sou gago?

“Se pu-puderem a co-corcunda me tirar,

essa co-corcova que se-sempre me afligiu,

eu me da-darei por muito bem pa-pago!...”

“Será feito!” – disse-lhe sem pestanejar,

a criatura que parecia ser rainha.

“Doravante, não será mais corcundinha!”

 

OS DOIS CORCUNDAS VI

 

Um peso enorme das costas lhe sumiu

e Patrick em um instante levantou,

as mãos erguidas até tocar no teto:

“Agra-gadeço pelo bem que me se-serviu!”

disse ele e de novo se curvou...

Mas a fadinha o contemplou com olhar dileto:

“Vejo que tem ainda outra aflição,

doravante será clara a sua dicção!...”

 

Patrick só faltou jogar-se ao chão,

Agradecendo por um tal favor.

“Mas eu percebo também pela sua roupa

que é muito pobre, mas tem bom coração;

terceiro dom eu lhe darei de outro teor,

um bem nos trouxe que em nada é coisa pouca!”

Batendo palmas, surgiu saco de ouro,

Patrick aceitou só metade do tesouro...

 

“Senhora dona rainha, é o suficiente,

o saco inteiro me parece bem pesado

e se de novo faz-me as costas retombar?”

E assim deixou o palácio bem contente,

o Sol já havia todo o campo iluminado

e para casa foi depressa retornar:

“Caro Desmond, o aluguel vim lhe trazer

e mais um mês irá ainda receber!...”

 

Mas se pensas que Desmond se alegrou,

estás muito enganado... O dinheiro recebeu

e desconfiado, o contou e recontou.

“Está ce-certo,” disse enfim e então notou

como Patrick bem mais alto pareceu,

“E a sua co-corcunda?  Como de-dela se livrou?”

Patrick não queria falar inicialmente,

pois não podia confiar no seu parente...

 

OS DOIS CORCUNDAS VII

 

Mas como o irmão foi insistir bastante,

acabou por contar-lhe toda a história,

inclusive ter deixado o meio saco:

“Muito pesado para se levar avante...”

“Po-porém que ati-titude mas si-simplória!

Me-merece mesmo mo-morar nesse bu-buraco!”

Então Patrick, a desconfiar de sua intenção,

pegou suas coisas e foi morar noutra região!

 

Desmond até notou que fora embora,

porém nem um pouquinho se importou:

Que vá assim, esticado e bem janota!

Esta noite eu irei, à mesma hora

pegar o meio saco de ouro que deixou!

Esse meu mano sempre soube que era idiota!

Em nada duvidou da sua história,

já ouvira do Palácio de Tombrick a imensa glória...

 

E nessa noite, que ainda era de luar,

chegou meio ofegante à pradaria

e na rocha a mesma porta então se abriu.

Não esperou ninguém o convidar,

no corredor depressa já corria

e o concorrido baile logo viu...

Além de gago, música detestava,

entrou depressa e logo ali gritava!

 

“Que ca-canção é essa, que bo-bobagem!

Foi a to-tolice que meu irmão cri-criou?

Tem de di-dizer é a se-semana inteira!

Só Se-segunda, Te-terça, Qua-quarta tem!

Qui-quinta, Se-sexta, Sa-sábado!” – gritou

“E o Do-domingo será a da-data de-derra-radeira!”

Então a música parou no mesmo instante,

chegou a rainha, seu olhar bem pescrutante...

 

Ora, acontece que o povinho era pagão

e de Domingo nem queria saber,

com a proposta estavam ofendidos,

porque esse dia santo era cristão!

Mas a rainha quis a ofensa lhe esconder

e indagou, voz e gestos comedidos:

“O que te trouxe aqui, caro senhor...?”

“De me-meu idi-diota irmão quero o fa-favor!”

 

EPÍLOGO

 

“Como assim?”  “Vim bu-buscar o que de-deixou,”

Falou Desmond, pensando só no ouro.

”Está bem,” disse a fada, “assim será,

eu te darei o que Patrick abandonou...”

Numa expressão que lhe arrepiou o couro,

imenso peso sobre as costas já lhe dá,

trouxe a Desmond, como castigo da ambição,

a corcunda que ali deixara seu irmão!...

 

Com outro gesto, o malvado foi lançado,

bruscamente, por todo o corredor

e a porta de imediato se fechou...

Pelo peso de duas corcundas carregado,

muito mais gago, foi gritar, cheio de horror:

“Pa-pa-patrick, o cre-cretino me enga-ganou!

Mas contra o irmão não conseguiu tomar vingança,

que estava longe e seu rancor jamais o alcança!

 

TRÊS FÁBULAS DE ESOPO

 

A CEGONHA E OS GANSOS – 17 FEV 20

 

O grego Aesopos escreveu muitas histórias,

sempre no intento de transmitir lição,

algumas delas muito simples são,

outras conservam permanentes glórias.

 

“Um lavrador armadilha preparou;

capturar gansos selvagens sonha,

mas na arapuca foi cair uma cegonha,

que ao vê-lo, depressa lhe falou:

 

“Solta-me, lavrador, não te fiz mal,

sou uma cegonha e só trago boa sorte...”

“Mesmo assim, eu não te atenderei,

com os gansos fazias carnaval

e essa imprudência causará tua morte,

esta noite, no jantar, te comerei!...”

 

“Más companhias são prejudiciais,

sofrerás a mesma sorte dos demais,”

é o que queria dizer o fabulista,

nesta historieta em que moral se avista:

DIZE-ME COM QUEM ANDAS

E TE DIREI QUEM ÉS.

 

O CABRITINHO E O LOBO I – 17 FEV 20

 

Foi uma cabra conduzida até a pastagem,

mas era muito novo o seu cabrito;

disse ao filhote: “Não fiques aflito,

volto hoje à noite, espera com coragem!

 

“Mas por aí anda muita bandidagem

e o ardil dos lobos é infinito,

por mais que um venha a te falar bonito,

não abras a porta por qualquer bobagem!

 

“Quando eu chegar, logo verás quem sou

e do estábulo, além disso, tenho a chave,

fica, portanto, bem quietinho no teu canto!

 

“Ainda não posso te levar aonde vou,

mas não quero, ao retornar, sofrer agrave,

nem por tua morte ter de verter meu pranto!”

 

O CABRITINHO E O LOBO II

 

Havia um lobo que julgava ser esperto:

chegou-se à porta do estábulo, a balir,

a voz da cabra conseguindo até fingir:

“Deixa eu entrar, meu filho, que está certo...”

 

“Se és minha mãe, já devias ter aberto

com a tua chave o portão, sem me pedir;

tu és um lobo e não podes me iludir:

vai embora já para teu covil deserto!”

 

Assim o lobo se foi, desapontado,

e quando a cabra retornou, ficou contente

por seu cabrito se mostrar tão obediente...

 

Ficou assim o apólogo terminado.

Talvez não penses ter sido tão bonito,

Mas há mais de dois mil anos foi escrito!

 

MERCÚRIO E O LENHADOR I – 18 FEV 20

 

Na Grécia antiga havia um lenhador

que fora trabalhar à beira-rio.

Quebrou-se o cabo do machado e em corrupio

caiu nas águas, a espadanar fragor!

Chorou o homem, ao ver-se perdedor

do instrumento de trabalho, em desvalio;

o deus Mercúrio o seu lamento ouviu

e se apiedou do bom trabalhador.

 

Aquele rio era a ele consagrado,

mas querendo o queixoso experimentar,

veio um machado de ouro apresentar...

“Não, meu senhor, não é o meu machado

e nem com ele eu poderia cortar lenha,

um forte gume é preciso que se tenha...”

 

MERCÚRIO E O LENHADOR II

 

Mercúrio agradou-se da resposta,

voltou a mergulhar e, lá do fundo,

trouxe um machado de cintilar profundo,

todo de prata... “E deste agora gosta?”

“Não, meu senhor.  Mesmo estando bem disposta,

essa lâmina tem só aspecto jocundo,

não é o meu machado, velho e imundo

de ferrugem, mas que nunca me desgosta...”

 

Mercúrio se admirou da honestidade

e do fundo do rio trouxe o machado,

feito de ferro e já bem desgastado:

“Sim, meu senhor!  É grande sua bondade!”

Mercúrio o entregou e, sem ofensa,

os outros dois lhe deu de recompensa!

 

MERCÚRIO E O LENHADOR III

 

De seus companheiros houve um que teve inveja

e à beira-rio foi também tentar a sorte,

lançando à água um machado de bom corte

e se pôs a lamentar o que lhe enseja;

Mercúrio pressentiu o mal que o beija,

mas para experimentar seu real porte,

do machado de ouro foi buscar consorte,

a indagar se sua ferramenta seja...

 

“É o meu!...” – tolamente o invejoso lhe mentiu,

mas Mercúrio apenas riu desse impostor:

“Este machado jamais lhe pertenceu...

“mas como a falsidade o conduziu,

não mais terá de mim qualquer favor

e nem ao menos lhe devolvo o que era seu!”

 

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