segunda-feira, 7 de dezembro de 2020


 

 

superveniência I --  22 dez 19

 

a vida é pouco mais que a eterna dança

    dos fogos-fátuos, pelas lantejoulas

        enamorados, em sonho de papoulas,

            ou vagalumes inebriados de esperança.

 

            a vida é pouco mais que uma criança,

        com o olhar esgazeado, pombas-rolas

    a contemplar os gatos, sombras tolas,

nessa injunção irreal da vida mansa...

 

a vida é uma tocaia, sempre à espreita;

    cada rosto de mulher é uma armadilha,

        cada corpo de mulher, a sepultura,

 

        em que morrem milhões, vida sujeita

    a que um só sobreviva à longa trilha

que leva à absorção, na esfera escura...

 

superveniência II

 

à vida eu agradeço, que nunca me deu nada,

     pois tudo quanto tenho, tomei com meu esforço,

          tive de planejar, montar o meu escorço,

               até que minha fatia me fosse recortada...

 

               à vida eu agradeço, modesta e esforçada,

          buscando retirar o peso de meu dorso

     dos bens que adquiri nesta aridez de corso,

para depois motrar-me os dentes, esfaimada...

 

à vida eu agradeço, que tanto me mostrou,

      apenas me acenando, tantálica e cruel,

            tirando com a esquerda o que a direita dava.

 

            à vida eu agradeço, porque ainda não tomou

      o pouco que possuo, em agridoce fel,

enquanto me desvio das setas de sua aljava.

 

superveniência III

 

nem sei se agradeço por ela estar em mim;

     por que agradecer a meu élan vital,

          esta minha superveniência material,

               que me nutre e me devora até meu fim?

 

               porque essa vida solerte de arlequim

          emparasita a minha vida espiritual,

     exige tanto de mim o ser mortal

e mal e mal compreendo por que vim

 

para este mundo que o demiurgo rege:

      muitas sendas tomei sem ver saída,

            muitas estradas eu mesmo desbravei

 

            e não compreendo se a vida me protege

      ou ao contrário se  eu protejo a vida

no breve tempo em que aqui persistirei...

 

superveniência IV

 

quem me proteja quiçá nem seja a vida,

     mas certo é que a morte minha não seja,

          pois se quando ela chegar, já não esteja,

               chamar de minha não posso a morte havida.

 

               ou então a vida em segurança insida

          e me proteja de todo o mal que adeja

      e dessa senda sem saída me proteja,

adeje em mim por não se ver contida.

 

talvez a vida se ressinta do caminho

       que por meu gosto, aos poucos, desbravei

              e novamente marque o fim de tal vereda,

 

              mas me proteja sem ter por mim carinho,

       só por saber que nessa estrada eu morrerei

e então se extinga dentre a carne queda.

 

superveniência V

 

certo é que a vida se expande em toda a terra,

      flagrada esteja em lugar inesperado,

           que em cada frágua e canto retirado,

                 alguma forma de vida ali se encerra.

 

                 certo é que em mim até hoje se aferra,

          sem que me acorde à noite a pedir nada...

     quem rege o sonho que tenho em madrugada,

a vida mesma ou a morte que me aterra?

 

e assim retorno ao paraíso da poesia,

       tão transitório quanto o éden do jardim,

              talvez me guardem dois arcanjos poderosos,

 

             com seus alfanjes de fogo em garantia

      de que complete essa missão para que vim

até o término de meus dias momentosos...

 

superveniência VI

 

mas por que eu?  por que razão fui escolhido

     pelo óvulo que em minha mãe se maturou?

          por que o cone de atração selecionou

               o espermatozóide pelo qual fui concebido?

 

               foi puro descaso genético ante o gemido

          dos milhões de meus irmãos que rejeitou

     ou um intelecto ovular que me avaliou

para mesclar-me ao deeneá em si contido?

 

será que posso, em um orgulho singular,

      crer realmente em ter missão a realizar,

            no extremo avassalar de minha vaidade,

 

            ou então submeter-me em humildade,

     por não ser mérito meu essa missão,

mas por castigo acorrentado a tal grilhão?

afrodite negra I – 23 dez 2019

 

em meu país temos padroeira negra,

que dizem achada ter sido numa praia,

de algum naufrágio sobrevivendo à baia,

essas senhoras brancas sendo em regra;

o mar salgado dolente é que a denegra,

de portugal a percorrer do oceano a saia,

até que em nosso areal um dia caia:

quem a acolheu à mariolatria se integra...

por que essa ânsia de à trindade abandonar

na preferência desse símbolo materno,

não traz um filho, mas mostra um olhar terno,

e deste modo vem a escritura a contrariar,

que a mãe humana é também mãe da colheita,

sacrificar-se então a ela é fácil peita...

 

afrodite negra II

 

a grande mãe nos vem da antiguidade,

quando não era de fato meiga assim,

sacrifícios de sangue o seu botim,

em seu altar a romper-se virgindade,

pois dessa forma julgava a humanidade

que as colheitas fertilizava esse carmim,

que o gado todo prosperaria enfim

e as mães humanas encheriam a cidade.

bem gostaria que a padroeira do brasil

a terra enchesse de real prosperidade

e de igual modo a nós multiplicasse,

tanto lugar sob o nosso céu de anil,

por mais que ao triúno guarde fidelidade

e por menos que em tal deusa acreditasse!

 

afrodite negra III

 

afrodite, deusa antiga, a dama dos orgasmos,

não posso me queixar dos muitos que já tive:

talvez mais eu quisera em ventres que não estive,

porque ainda conservo o vigor dos entusiasmos.

devo plantar um mirto e esmigalhar pães asmos

em torno à sua raiz, onde a alegria vive;

com tomilho silvestre o meu ardor revive

e me leva ao final das ânsias dos espasmos...

à beira dos regatos devera eu assentar-me

e louvar minha deusa, meu par, sempre a meu lado,

ao invés de prender-me à tela fluorescente

deste mundo eletrônico, dia após dia a sugar-me,

que os prazeres da vida eu tenho abandonado

por bolsas de ouro falso em paga intermitente...

 

afrodite negra IV

 

dizem que amor é cego... mas nos cega,

pois vê perfeitamente, em zombaria.

somos nós que não vemos o que via:

controla o lema e não mais se navega...

de mosto nos instila, dessa adega

em que os vinhos mais preciosos guardaria,

mas de algum modo o paladar vicia:

dá-nos vinagre e o vinho mesmo nega.

então tomamos o vinagre pelo vinho,

enquanto o nosso olfato, de empanado,

já nem percebe dos beijos a acidez...

e igual tomamos por guirlandas de azevinho

essas coroas de urtiga de seu fado,

que mal nos picam, em nossa embriaguez...

 

afrodite negra V

 

como negar que o amor seja buscado

nesses altares dourados da padroeira?

amor materno sendo a coisa mais certeira,

mas ali mesmo o matrimônio é celebrado;

não que nisso eu perceba algum pecado,

para o batismo é igualmente hospitaleira

e à sua basílica corre a gente interesseira,

um pede a graça por que esteja entusiasmado,

outros promessas muitas vezes fazem,

atendimento comprando com suas velas...

pois se a deusa enfrentou tantas procelas,

seus braços lá do céu pedidos trazem,

tão só porque, nas bodas de caná

falou um dia que vinho já não há!...

 

afrodite negra VI

 

mesmo a despeito do conhecimento atual

e tanta coisa que a ciência nos revela,

a humanidade não mudou – é igual àquela

que ovelha e pomba sacrificava num ritual;

o mesmo povo que se assanha em carnaval

vai à padroeira trocar perdão por vela,

quiçá pensando corromper a imagem bela,

talvez pensando confessar ter feito mal...

mas eu, de fato, nada peço, nem a deus,

salvo o desejo de por tudo agradecer

pelo que vem e demonstrar-lhe meu louvor,

sem partilhar de procissões de fariseus,

somente o amor que encontre a recolher,

dessa afrodite que nem cobra seu favor...

 

MEU CIÚME I – 24 dez 2019

 

Nunca fui em demasia ciumento;

confio em ti e sei que em mim confias,

talvez em breve lampejo trairias,

mas não em ato volúvel como o vento.

 

E certamente não te persigo atento,

no capcioso cuidar de aonde ias,

ou flagrar com quem te encontrarias,

ou imaginar praticares mau portento.

 

Não são ações a despertar suspeita,

porém os fatos reais e indiferentes,

procedimentos diários e inconscientes,

 

que qualquer outro normalmente aceita;

são os momentos em que te achas afastada,

fora do alcance de minha vista descuidada...

 

 

MEU CIÚME II

 

Se algum ciúme tenho, é não ser visto

por teu olhar, quando pousa em objetos...

Indiferentes que sejam tais afetos,

em nenhum deles a mim mesmo assisto.

 

Teu amor, desse modo, não conquisto,

porque o teu olhar em pontos quietos

se fixa... ou em outros mais diletos,

em movimento constante ou mesmo misto.

 

E, dessa forma, em minha inveja insisto,

por não ser alvo desse teu olhar...

São coisas mortas a razão de meu pesar,

 

pois é só para te achar que agora existo

e ao ver que não me queres enxergar,

eu me sinto abandonado como um cristo!

 

MEU CIÚME III

 

É como se deixasses pelo olhar

uma parte de ti mesma em cada ponto;

cada parede provoca desaponto

em que fixaste o foco do enxergar.

 

Não foi a mim que viste, por me achar

bem longe de tuas vistas, no reponto

das marchas paralelas, contraponto

de nossos ritmos diversos a marchar.

 

Mas se olhasses para mim, me deixarias

andando sobre a pele, a tua visão:

algo de ti assim eu obteria...

 

Indiferentes, mas certeiras melodias,

alvejando essas pupilas coração

que só a ti entregue então seria...

 

HIERARQUIA I – 25 DEZ 2019

 

Teria estado o Arcanjo Gabriel

a presidir o coro de Belém?

por certo foi o Anunciador também,

que a Maria mostrou lábios de mel.

 

Decerto não estaria ali Miguel,

que se ocupava com o adversário além,

que na França Setentrional mosteiro tem

o nome desse Arcanjo... porém fel

 

é que saiu de seus lábios na ocasião,

quando o Maligno desde o céu precipitou

e sob o Monte Saint-Michel o encerrou!...

 

Resta saber de Rafael qual a função:

não sei dizer se por igual participou

ou se Deus de outra missão o encarregou...

 

HIERARQUIA II

 

Ali estariam a louvar Dominações,

os Tronos todos e mais as Potestades,

Serafins e Querubins de majestades

ou atenderiam outras celebrações...?

 

O Testamento só refere as multidões

dessa milícia celestial em harmonidades

a entoar cantos de melodiosidades,

muito além da compreensão das gerações.

 

Foi de fato até proposta uma doutrina,

que não se pode afirmar ser heresia,

que outro mundo redenção igual teria;

 

de um outro Infante de Belém ali se ensina,

que maravilhas a outra raça ensinaria

e algum diverso Evangelho lhes destina...

 

HIERARQUIA III

 

Mas essa mesma doutrina afirmaria

que não seria mui diversa essa mensagem,

que um querigma pregado com coragem (*)

também à estranha gente atenderia...

 

Pois de encarnar Deus jamais precisaria,

são os humanos atolados em vadiagem

que necessitam render essa homenagem

àquele Deus que para todos surgiria...

 

Mas uma coisa é preciso não se esqueça,

por mais que seja de difícil compreensão:

além do tempo encontra-se Deus Pai,

 

que seu Verbo a encarnar nos ofereça,

para surgir em nosso tempo a redenção

a cada humano que no tempo à morte vai.

(*) Pregação de uma doutrina.

 

ANGÚSTIAS I – 26 DEZ 19

(Em memória de Orlando Poschi)

 

Quando olho a meu redor, mesmo tranquilo,

envolto em calma, prudência e até paciência,

dos filosóficos alicerces a eminência,

essa pelagem que me toca em parte esquilo.

 

Contra a vontade, eu venho a dar-lhe asilo,

em empatia de singular benemerência;

recebo em mim em tal ato de assistência

do entristecer-se alheio o vasto filo...

 

pois cada olhar a recair sobre minha pele

deixa algo de si em intermitência

e é muito raro ser mensagem de carinho;

 

talvez é suplica que à compaixão apele,

talvez rancor por amorosa ausência,

talvez da inveja o peçonhento espinho...

 

ANGÚSTIAS II

 

Por tanta angústia me vejo assoberbado,

não a minha própria, mas a angústia alheia,

que não angústia, mas em cólera incendeia

as minhas emoções, em fogo dispersado.

 

Por certo que alguma vez fui angustiado,

mas não me deixo embaralhar ao meio

da depressão, nem me ponho de permeio

ao gris novelo atribulado do pecado.

 

Sou meio indiferente ao mal da vida,

não me deixo abater, eu sinto é raiva,

antes que angústia, contrário à depressão.

 

No fundo de minha mente acho guarida

e a angústia alheia me toca, em simples laiva,

sem conseguir avassalar-me o coração.

 

ANGÚSTIAS III

 

Contudo angústias voam às soltas por aí,

brotam de olhar maníaco ou despeitado,

de hematomas matizado de encarnado,

cuspindo lava esses dragões que em torno vi.

 

Abandonadas famintas, elas cuidam só de si,

como aríetes a buscar abrigo ansiado,

em que possam pulular em negro fado,

sempre as expulso quando as vejo aqui.

 

Mas são espectros brutos e medonhos,

que outros deixam para trás, indiferentes

a qualquer mal que causem noutras gentes

 

ou até querendo nos tornar todos tristonhos...

e o clarim toco a meus pares combatentes:

que as queimem todas em mil piras de sonhos!

 

ALÍVIO I  [para Liège Gischkow]

 

Um pobre garotinho venezuelano

chegou da escola, sem ganhar merenda.

Viu a mãe remendando uma fazenda,

com retalhos retirados de outro pano.

 

Passando fome já há mais de um ano,

pediu à mãe: "A senhora não se ofenda,

há algo de comer em nossa tenda?"

E ela lhe disse, em tom de desengano:

 

"Não, meu filho, a comida já acabou..."

Ele viu o papagaio em sua gaiola,

a pata presa por uma correntinha...

 

Então uma nova ideia perpassou

(talvez achasse antes que era tola),

pelos meandros de sua cabecinha.

 

ALIVIO II

 

"Mamãe, quem sabe, papagaio com arroz?"

"Nós não temos arroz, pobre filhinho,

o de ontem nos deu nosso vizinho,

não tinha mais para nos dar depois..."

 

"Mas a senhora não pode assar no forno?"

"Não, filhinho, o gás também faltou..."

"E na assadeira elétrica?" -- falou.

"A luz cortaram, o tempo hoje está morno..."

 

"Mamãe, não dá para fritar o papagaio?"

"Mas como, filho, não temos mais azeite...

As coisas ficam cada dia mais graves,

 

pra cozinhar, só se nos cai um raio..."

E gritou o papagaio, em seu deleite:

"Longa vida ao Presidente Chávez!..."

 

Um comentário:

  1. Muito bom! Aliás, excelente! Destaco Afrodite negra ; Ciúmes e o Venezuelano, que nos causa tristeza e comoção. Meu abraço

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