superveniência I -- 22
dez 19
a vida é pouco mais que a eterna dança
dos fogos-fátuos, pelas lantejoulas
enamorados, em sonho de
papoulas,
ou
vagalumes inebriados de esperança.
a vida
é pouco mais que uma criança,
com o olhar esgazeado,
pombas-rolas
a contemplar os gatos, sombras tolas,
nessa injunção irreal da vida mansa...
a vida é uma tocaia, sempre à espreita;
cada rosto de mulher é uma armadilha,
cada corpo de mulher, a
sepultura,
em que morrem milhões,
vida sujeita
a que um só sobreviva à longa trilha
que leva à absorção, na esfera escura...
superveniência II
à vida eu agradeço, que nunca me deu nada,
pois tudo quanto
tenho, tomei com meu esforço,
tive de
planejar, montar o meu escorço,
até que
minha fatia me fosse recortada...
à vida eu
agradeço, modesta e esforçada,
buscando retirar
o peso de meu dorso
dos bens que adquiri
nesta aridez de corso,
para depois motrar-me os dentes, esfaimada...
à vida eu agradeço, que tanto me mostrou,
apenas me acenando,
tantálica e cruel,
tirando com a
esquerda o que a direita dava.
à vida eu
agradeço, porque ainda não tomou
o pouco que possuo,
em agridoce fel,
enquanto me desvio das setas de sua aljava.
superveniência III
nem sei se agradeço por ela estar em mim;
por que agradecer a
meu élan vital,
esta minha superveniência
material,
que me
nutre e me devora até meu fim?
porque essa
vida solerte de arlequim
emparasita a
minha vida espiritual,
exige tanto de mim o
ser mortal
e mal e mal compreendo por que vim
para este mundo que o demiurgo rege:
muitas sendas tomei
sem ver saída,
muitas
estradas eu mesmo desbravei
e não
compreendo se a vida me protege
ou ao contrário
se eu protejo a vida
no breve tempo em que aqui persistirei...
superveniência IV
quem me proteja quiçá nem seja a vida,
mas certo é que a
morte minha não seja,
pois se quando
ela chegar, já não esteja,
chamar de
minha não posso a morte havida.
ou então a
vida em segurança insida
e me proteja de
todo o mal que adeja
e dessa senda sem
saída me proteja,
adeje em mim por não se ver contida.
talvez a vida se ressinta do caminho
que por meu gosto,
aos poucos, desbravei
e novamente
marque o fim de tal vereda,
mas me
proteja sem ter por mim carinho,
só por saber que
nessa estrada eu morrerei
e então se extinga dentre a carne queda.
superveniência V
certo é que a vida se expande em toda a terra,
flagrada esteja em
lugar inesperado,
que em cada
frágua e canto retirado,
alguma
forma de vida ali se encerra.
certo é
que em mim até hoje se aferra,
sem que me
acorde à noite a pedir nada...
quem rege o sonho que tenho em madrugada,
a vida mesma ou a morte que me aterra?
e assim retorno ao paraíso da poesia,
tão transitório
quanto o éden do jardim,
talvez me
guardem dois arcanjos poderosos,
com seus
alfanjes de fogo em garantia
de que complete essa
missão para que vim
até o término de meus dias momentosos...
superveniência VI
mas por que eu? por que
razão fui escolhido
pelo óvulo que em
minha mãe se maturou?
por que o cone
de atração selecionou
o
espermatozóide pelo qual fui concebido?
foi puro
descaso genético ante o gemido
dos milhões de
meus irmãos que rejeitou
ou um intelecto
ovular que me avaliou
para mesclar-me ao deeneá em si contido?
será que posso, em um orgulho singular,
crer realmente em
ter missão a realizar,
no extremo
avassalar de minha vaidade,
ou então
submeter-me em humildade,
por não ser mérito
meu essa missão,
mas por castigo acorrentado a tal grilhão?
afrodite negra I – 23 dez 2019
em meu país temos padroeira negra,
que dizem achada ter sido numa praia,
de algum naufrágio sobrevivendo à
baia,
essas senhoras brancas sendo em
regra;
o mar salgado dolente é que a
denegra,
de portugal a percorrer do oceano a
saia,
até que em nosso areal um dia caia:
quem a acolheu à mariolatria se
integra...
por que essa ânsia de à trindade
abandonar
na preferência desse símbolo materno,
não traz um filho, mas mostra um
olhar terno,
e deste modo vem a escritura a
contrariar,
que a mãe humana é também mãe da
colheita,
sacrificar-se então a ela é fácil
peita...
afrodite negra II
a grande mãe nos vem da antiguidade,
quando não era de fato meiga assim,
sacrifícios de sangue o seu botim,
em seu altar a romper-se virgindade,
pois dessa forma julgava a humanidade
que as colheitas fertilizava esse
carmim,
que o gado todo prosperaria enfim
e as mães humanas encheriam a cidade.
bem gostaria que a padroeira do
brasil
a terra enchesse de real prosperidade
e de igual modo a nós multiplicasse,
tanto lugar sob o nosso céu de anil,
por mais que ao triúno guarde
fidelidade
e por menos que em tal deusa
acreditasse!
afrodite negra III
afrodite, deusa antiga, a dama dos
orgasmos,
não posso me queixar dos muitos que já
tive:
talvez mais eu quisera em ventres que
não estive,
porque ainda conservo o vigor dos
entusiasmos.
devo plantar um mirto e esmigalhar
pães asmos
em torno à sua raiz, onde a alegria
vive;
com tomilho silvestre o meu ardor
revive
e me leva ao final das ânsias dos
espasmos...
à beira dos regatos devera eu
assentar-me
e louvar minha deusa, meu par, sempre
a meu lado,
ao invés de prender-me à tela
fluorescente
deste mundo eletrônico, dia após dia
a sugar-me,
que os prazeres da vida eu tenho
abandonado
por bolsas de ouro falso em paga
intermitente...
afrodite negra IV
dizem que amor é cego... mas nos
cega,
pois vê perfeitamente, em zombaria.
somos nós que não vemos o que via:
controla o lema e não mais se
navega...
de mosto nos instila, dessa adega
em que os vinhos mais preciosos
guardaria,
mas de algum modo o paladar vicia:
dá-nos vinagre e o vinho mesmo nega.
então tomamos o vinagre pelo vinho,
enquanto o nosso olfato, de empanado,
já nem percebe dos beijos a acidez...
e igual tomamos por guirlandas de azevinho
essas coroas de urtiga de seu fado,
que mal nos picam, em nossa
embriaguez...
afrodite negra V
como negar que o amor seja buscado
nesses altares dourados da padroeira?
amor materno sendo a coisa mais
certeira,
mas ali mesmo o matrimônio é celebrado;
não que nisso eu perceba algum
pecado,
para o batismo é igualmente
hospitaleira
e à sua basílica corre a gente
interesseira,
um pede a graça por que esteja
entusiasmado,
outros promessas muitas vezes fazem,
atendimento comprando com suas
velas...
pois se a deusa enfrentou tantas
procelas,
seus braços lá do céu pedidos trazem,
tão só porque, nas bodas de caná
falou um dia que vinho já não há!...
afrodite negra VI
mesmo a despeito do conhecimento
atual
e tanta coisa que a ciência nos
revela,
a humanidade não mudou – é igual
àquela
que ovelha e pomba sacrificava num
ritual;
o mesmo povo que se assanha em
carnaval
vai à padroeira trocar perdão por
vela,
quiçá pensando corromper a imagem
bela,
talvez pensando confessar ter feito
mal...
mas eu, de fato, nada peço, nem a
deus,
salvo o desejo de por tudo agradecer
pelo que vem e demonstrar-lhe meu
louvor,
sem partilhar de procissões de
fariseus,
somente o amor que encontre a
recolher,
dessa afrodite que nem cobra seu
favor...
MEU CIÚME I – 24 dez 2019
Nunca fui em demasia ciumento;
confio em ti e sei que em mim confias,
talvez em breve lampejo trairias,
mas não em ato volúvel como o vento.
E certamente não te persigo atento,
no capcioso cuidar de aonde ias,
ou flagrar com quem te encontrarias,
ou imaginar praticares mau portento.
Não são ações a despertar suspeita,
porém os fatos reais e indiferentes,
procedimentos diários e inconscientes,
que qualquer outro normalmente aceita;
são os momentos em que te achas afastada,
fora do alcance de minha vista descuidada...
MEU CIÚME
II
Se algum ciúme tenho, é não ser visto
por teu olhar, quando pousa em
objetos...
Indiferentes que sejam tais afetos,
em nenhum deles a mim mesmo assisto.
Teu amor, desse modo, não conquisto,
porque o teu olhar em pontos quietos
se fixa... ou em outros mais diletos,
em movimento constante ou mesmo
misto.
E, dessa forma, em minha inveja
insisto,
por não ser alvo desse teu olhar...
São coisas mortas a razão de meu
pesar,
pois é só para te achar que agora
existo
e ao ver que não me queres enxergar,
eu me sinto abandonado como um
cristo!
MEU CIÚME III
É como se deixasses pelo olhar
uma parte de ti mesma em cada ponto;
cada parede provoca desaponto
em que fixaste o foco do enxergar.
Não foi a mim que viste, por me achar
bem longe de tuas vistas, no reponto
das marchas paralelas, contraponto
de nossos ritmos diversos a marchar.
Mas se olhasses para mim, me deixarias
andando sobre a pele, a tua visão:
algo de ti assim eu obteria...
Indiferentes, mas certeiras melodias,
alvejando essas pupilas coração
que só a ti entregue então seria...
HIERARQUIA I – 25 DEZ 2019
Teria estado o Arcanjo Gabriel
a presidir o coro de Belém?
por certo foi o Anunciador também,
que a Maria mostrou lábios de mel.
Decerto não estaria ali Miguel,
que se ocupava com o adversário além,
que na França Setentrional mosteiro tem
o nome desse Arcanjo... porém fel
é que saiu de seus lábios na ocasião,
quando o Maligno desde o céu precipitou
e sob o Monte Saint-Michel o encerrou!...
Resta saber de Rafael qual a função:
não sei dizer se por igual participou
ou se Deus de outra missão o encarregou...
HIERARQUIA II
Ali estariam a louvar Dominações,
os Tronos todos e mais as Potestades,
Serafins e Querubins de majestades
ou atenderiam outras celebrações...?
O Testamento só refere as multidões
dessa milícia celestial em harmonidades
a entoar cantos de melodiosidades,
muito além da compreensão das gerações.
Foi de fato até proposta uma doutrina,
que não se pode afirmar ser heresia,
que outro mundo redenção igual teria;
de um outro Infante de Belém ali se ensina,
que maravilhas a outra raça ensinaria
e algum diverso Evangelho lhes destina...
HIERARQUIA III
Mas essa mesma doutrina afirmaria
que não seria mui diversa essa mensagem,
que um querigma pregado com coragem (*)
também à estranha gente atenderia...
Pois de encarnar Deus jamais precisaria,
são os humanos atolados em vadiagem
que necessitam render essa homenagem
àquele Deus que para todos surgiria...
Mas uma coisa é preciso não se esqueça,
por mais que seja de difícil compreensão:
além do tempo encontra-se Deus Pai,
que seu Verbo a encarnar nos ofereça,
para surgir em nosso tempo a redenção
a cada humano que no tempo à morte vai.
(*) Pregação de uma doutrina.
ANGÚSTIAS I – 26 DEZ 19
(Em memória de Orlando Poschi)
Quando olho a meu redor, mesmo tranquilo,
envolto em calma, prudência e até paciência,
dos filosóficos alicerces a eminência,
essa pelagem que me toca em parte esquilo.
Contra a vontade, eu venho a dar-lhe asilo,
em empatia de singular benemerência;
recebo em mim em tal ato de assistência
do entristecer-se alheio o vasto filo...
pois cada olhar a recair sobre minha pele
deixa algo de si em intermitência
e é muito raro ser mensagem de carinho;
talvez é suplica que à compaixão apele,
talvez rancor por amorosa ausência,
talvez da inveja o peçonhento espinho...
ANGÚSTIAS II
Por tanta angústia me vejo assoberbado,
não a minha própria, mas a angústia alheia,
que não angústia, mas em cólera incendeia
as minhas emoções, em fogo dispersado.
Por certo que alguma vez fui angustiado,
mas não me deixo embaralhar ao meio
da depressão, nem me ponho de permeio
ao gris novelo atribulado do pecado.
Sou meio indiferente ao mal da vida,
não me deixo abater, eu sinto é raiva,
antes que angústia, contrário à depressão.
No fundo de minha mente acho guarida
e a angústia alheia me toca, em simples laiva,
sem conseguir avassalar-me o coração.
ANGÚSTIAS III
Contudo angústias voam às soltas por aí,
brotam de olhar maníaco ou despeitado,
de hematomas matizado de encarnado,
cuspindo lava esses dragões que em torno vi.
Abandonadas famintas, elas cuidam só de si,
como aríetes a buscar abrigo ansiado,
em que possam pulular em negro fado,
sempre as expulso quando as vejo aqui.
Mas são espectros brutos e medonhos,
que outros deixam para trás, indiferentes
a qualquer mal que causem noutras gentes
ou até querendo nos tornar todos tristonhos...
e o clarim toco a meus pares combatentes:
que as queimem todas em mil piras de sonhos!
ALÍVIO I [para
Liège Gischkow]
Um pobre garotinho venezuelano
chegou da escola, sem ganhar merenda.
Viu a mãe remendando uma fazenda,
com retalhos retirados de outro pano.
Passando fome já há mais de um ano,
pediu à mãe: "A senhora não se ofenda,
há algo de comer em nossa tenda?"
E ela lhe disse, em tom de desengano:
"Não, meu filho, a comida já acabou..."
Ele viu o papagaio em sua gaiola,
a pata presa por uma correntinha...
Então uma nova ideia perpassou
(talvez achasse antes que era tola),
pelos meandros de sua cabecinha.
ALIVIO II
"Mamãe, quem sabe, papagaio com arroz?"
"Nós não temos arroz, pobre filhinho,
o de ontem nos deu nosso vizinho,
não tinha mais para nos dar depois..."
"Mas a senhora não pode assar no forno?"
"Não, filhinho, o gás também faltou..."
"E na assadeira elétrica?" -- falou.
"A luz cortaram, o tempo hoje está morno..."
"Mamãe, não dá para fritar o papagaio?"
"Mas como, filho, não temos mais azeite...
As coisas ficam cada dia mais graves,
pra cozinhar, só se nos cai um raio..."
E gritou o papagaio, em seu deleite:
"Longa vida ao Presidente Chávez!..."
Muito bom! Aliás, excelente! Destaco Afrodite negra ; Ciúmes e o Venezuelano, que nos causa tristeza e comoção. Meu abraço
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