ZÉFIRO E FLORA, WILLIAM-ADOLPHE BOUGUEREAU, 1975
VENTOS DE OURO I – 10 MAR 2020
Os ventos sopram nesta madrugada,
pela janela do banheiro vem corrente,
certa ameça de chuva se pressente,
mas por enquanto, não nos choveu nada.
Haverá vento quando da alvorada
e por acaso estarei nela presente?
Em longos sonhos é preciso que me assente
talvez um dia faça ali morada...
que venha o vento para me assoprar
e retirar de mim a sudorese,
que tanto me incomoda no verão...
que venha o vento para me ajudar
a manobrar este corpo que me pese,
ágil no sonho e na maior agitação!...
VENTOS DE OURO II
Que venha o vento para espantar tristeza
e que varra para longe a humilhação,
que venha o vento em plena oposição
à ambição que tanta gente lesa...
Que venha o vento, não trazer riqueza,
porém conforto para a multidão;
sempre pobres haverá em ocasião,
mas que trabalho exista com certeza...
Que venha o vento moléstias a espantar,
de qualquer tipo ou forma revestida,
os vírus e bactérias carregando...
Que venha Zéfiro nas faces me beijar
em cada fio da barba já crescida,
quem sabe os brancos todos renovando!
VENTOS DE OURO III
Porém não venha com força demais,
para arrancar da cabeça o meu boné;
com esta máscara mal se firma até,
estendo a mão para que o prenda mais...
Que venha o vento com dotes naturais,
não peço ouro, somente o meu café
com pão e queijo, talvez um cafuné
de quem me assiste em horas matinais...
Que venha o vento sem destruição:
já me arrancou a clarabóia um seu irmão
e a maioria das telhas da garagem...
Mas o seguro não me fez reparação,
em seu contrato uma esperta defasagem:
ninguém havia previsto um furacão!
VENTOS DE OURO IV
Derrama o vento sobre mim seus raios,
enquanto sopra o sol desde o horizonte,
o vento em torno borbulha como fonte
e o sol se tapa com o vime de balaios.
Cavalga o vento quais cavalos baios
e o sol se arrasta ao longo de uma ponte,
o vento escala um pontiagudo monte,
gasoso o sol a zunir relinchos gaios...
Meus ventos e meus sóis originais
os seus papéis alegres destrocando,
minhas presunções inteiras destroçando.
Só em minha janela pretenções casuais,
como se o vento soprasse para mim,
como se o sol habitasse em meu jardim...
HÓSPEDE
DESEJADO I – 11 MAR 20
Quando
amor chega, dizem muitas vezes
Que
ocorreu-lhes grande transformação,
Que
toda a vida se compara a uma canção,
Repetido
seu ardor por muitos meses,
Mas
olha bem que o argumento leses,
Que
na constante e veraz repetição
Talvez
se instale o aborrecimento vão,
Substituindo
a maravilha que assim preses...
Amor
é muito mais que uma canção
Que
se ponha a repetir no gravador,
No
aparelho de som, rádio ou tevê;
É
uma constância que atravessa geração,
Que
o tédio possa encarar sem destemor,
Mirando
o olhar que nossos olhos vê...
HÓSPEDE
DESEJADO II
Amor,
de certo modo, é mimetismo.
Alguma
coisa a copiar do ser amado,
Mesmo
inconsciente, sem ser desejado
O
mecanismo de tal companheirismo,
Mesmo
que amor jamais é um mecanismo,
Mas
um dom para ser compartilhado,
Algo
se dá e também algo nos é dado,
Mas
sem nisso existir comercialismo.
Amor
é um hóspede que goza de favor,
Que
convidamos para a casa se mudar,
Porque
despesa nenhuma causará,
Amor
não come e de beber não tem pendor,
Não
lava as roupas e seu único lugar
Imponderável
entre o casal construirá.
HÓSPEDE
DESEJADO III
Amor
assim é esse efeito imponderável,
Tão
intangível como a luz do sol,
Muito
mais imaterial que seu farol,
Bem
mais que o vento a lamber-nos favorável...
Mas
hospedar o vento é inaceitável
Ou
luz solar capturar cada arrebol:
Posso
plantar no jardim um girassol
Ou
ligar ventilador bastante amável...
Já
amor será mais fácil se agarrar,
Se
do casal houver igual constância,
Os
dois a segurar pontas da corda,
Na
qual amor, inconsequente, vem pular,
Sempre
disseram que Amor era criança,
Brincar
querendo a cada vez que nos aborda...
EM
LEVE AMOR I -- 12 MAR 2020
amor
não deves levar demais a sério,
não
é um bem que se possa armazenar,
oscila
sempre, entre nós em adejar,
de
vez em quanto comete um despautério...
ou
então deseja de ti um refrigério,
talvez
espere um sorvetinho a lambiscar
ou
algum suquinho para ali bebericar:
só
não lhe sirvas um pratinho de adultério!
sendo
criança, tudo nele é brincadeira,
algo
de lúdico em teu maior desgosto,
foge
de ti para sentar em colo alheio...
mas
que não te desaponte a sua maneira,
talvez
retorne mesmo antes do sol posto,
talvez
num vento, banhado em pleno asseio...
EM
LEVE AMOR II
quando
retorna, talvez queira se deitar,
talvez
ainda da pilha tenha assanho,
cheirando
mal, talvez precise banho,
cansadinho,
talvez só queira te abraçar...
esse
amor leve de puro acariciar,
igual
a amor de mãe no teu antanho,
igual
a amor de pai com mais acanho:
recebe-o
logo, que te irá recompensar...
mas
como é raro amor assim tratar,
algumas
vezes é encadeado num ciúme,
em
outras vezes o pretendes castigar...
que
tanta gente quer amor de possessão,
quando
em retorno lhes cospe em azedume
e
então se muda para um outro coração!...
EM
LEVE AMOR III
teu
amor, porém, mais do que tudo,
eu
desejo, essa delícia compassada
em
vara de condão, teu dom de fada,
bulício
leve de teus dedos de veludo...
eu
quero a tua delícia e não me iludo
que
eterna venha a ser ou conservada
mais
que em momento de sonho revelada,
mais
que no abraço meigo em que me escudo.
quero
teu corpo ao meu enovelado,
numa
paina de luz, leve contato,
mas
recebendo sem qualquer reserva;
que
seja o teu amor um consagrado
fulgor
perene, em tal perfeito fato
que
a glória desse amor a nós conserva.
PREGOS BRILHANTES
I – 13 MAR 20
IGUAL JOSÉ EU
FIZ-ME CARPINTEIRO
POREM SEM
EMPREGAR ENXÓ E PLAINA
É COM OUTRA
FERRAMENTA QUE SE AMAINA
O MOBILIÁRIO QUE
MODELO EM MEU TERREIRO
E CADA PEÇA ENTÃO
LIXO POR INTEIRO
MACIA SEJA QUAL
TRANSITÓRIA PAINA
FINAL PRODUTO DE
CUIDADOSA FAINA
ANTES QUE O LANCE
FORA DO ESTALEIRO
PORQUE O PRETENDO
LANÇAR DE FATO AO MAR
GASOSO E INSÓLITO
EM SEU DESTILAR
QUE POSSA A
OUTREM LEVAR RESPIRAÇÃO
CADA MÓVEL EM
LINHAS A PLASMAR
MADEIRA FEITA DA
LEI DO CORAÇÃO
SUA COLA O SANGUE
A ME CORRER DA MÃO
PREGOS BRILHANTES
II
DE ESPUMA DE ALMA
EU FIZ ESSES POEMAS
DE LUZ E DE
SALIVA E DE SANGRIA
DE SUORES
DERRAMADOS E CERA FRIA
SENDO A LINFA DAS
FERIDAS DIADEMAS
RASPÕES DA PELE A
REFAZER EM AÇUCENAS
SERRAGEM EM
PRANTO QUE DO OLHAR CORRIA
OU MESMO DA
CORIZA QUE ESCONDIA
JÁ TRANSFORMADA
EM DOCES ALFAZEMAS
QUAL LÁGRIMA
IRRITANDO O NERVO ÓTICO
TÊM O MESMO SABOR
AMNIÓTICO
DA MARESIA EM
ARRECIFE SOBERANO
AO SE ESPALHAREM
ASSIM EM TANTOS FLUXOS
DERRAMADOS POR
VÊNUS, MEUS REFLUXOS
DE ADRENALINA E
LÍQUIDO RAQUIANO
PREGOS BRILHANTES
III
USO CADA ELEMENTO
COMO UM PREGO
QUE NÃO SE PARTE
ASSIM TÃO FACILMENTE
MAS QUE POR
DÉCADAS SEJA SUBJACENTE
AOS SENTIMENTOS
MEUS QUE HOJE TE LEGO
E NÃO TE ROGO QUE
OS ACEITES COMO UM CEGO
MAS AO CONTRÁRIO
QUE PONDERES A SEMENTE
NA PALMA DE TUA
MÃO TRANQUILO ASSENTE
O SEU PESO E SE
DESEJAS SEU APEGO
PORQUE AFINAL SÃO
APENAS UM PRESENTE
NADA TE COBRO
SENÃO A TUA ATENÇÃO
E DELA PEÇO
APENAS UM MOMENTO
E QUE DECIDAS
PONDERADAMENTE
SE LHE ABRIRÁS
LUGAR NO CORAÇÃO
OU DESCARTÁ-LO EM
TOTAL DESPREENDIMENTO
DESLITURGIA
I – 14 MAR 20
À
catedral acorre mais a fantasia
ou
o desejo de expor as vestimentas,
em
trajo domingueiro o corpo assentas,
a
maquiagem melhor que se podia...
Durante
a missa, então cochicho se faria
com
a tua amiga e às palavras bentas
bem
pouco ou nada a atenção atentas:
mas
não é mais em latim que se dizia!
João
Vinte e Três, no século passado,
determinou
que no vernáculo se reze,
mas
em vernáculo também corre o falatório
e
o sinal da cruz assim é conspurcado
pela
vaidade que tanta gente prese,
bem
mais que o dom contido no ostensório...
DESLITURGIA
II
No
sexo, a oração é mais honesta,
pois
quando dois numa só carne se amam,
tanta
ilusão que a gratidão contesta
se
afasta no fervor com que proclamam
um
estado que graça e santidade atesta,
em
que o gozo sincero se reclamam,
de
singular propósito, em que essa festa
austera
traz um sabor em que se irmanam,
que
se encontrara raramente numa prece,
quando
o temor dos outros desfalece
e
se reveste apenas de confiança;
que
a carne, nessa carne renascente,
real
e firme, em incenso redolente,
rebrota
em mil fagulhas de esperança.
DESLITURGIA
III
Que
a maioria só encara a religião
com
desconfiança e até com ironia;
como
se crer de fato na heresia
de
a tantos santos render adoração?
Bem
mais sincero no passado esse pagão,
reverenciando
os deuses em que cria,
um
holocausto em lugar da liturgia,
com
trepidante temor no coração.
Talvez
o deus que se estava convocando
percebesse
uma qualquer desatenção
e
então o punisse com doença ou maldição?
Ou
pensamento vagabundo lhe acenando
Lhe
atendesse... mais como punição,
As
consequências austero lhe ocultando!
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