domingo, 27 de dezembro de 2020


VENTOS DE OURO


 

ZÉFIRO E FLORA, WILLIAM-ADOLPHE BOUGUEREAU, 1975


VENTOS DE OURO I – 10 MAR 2020

 

Os ventos sopram nesta madrugada,

pela janela do banheiro vem corrente,

certa ameça de chuva se pressente,

mas por enquanto, não nos choveu nada.

 

Haverá vento quando da alvorada

e por acaso estarei nela presente?

Em longos sonhos é preciso que me assente

talvez um dia faça ali morada...

 

que venha o vento para me assoprar

e retirar de mim a sudorese,

que tanto me incomoda no verão...

 

que venha o vento para me ajudar

a manobrar este corpo que me pese,

ágil no sonho e na maior agitação!...

 

VENTOS DE OURO II

 

Que venha o vento para espantar tristeza

e que varra para longe a humilhação,

que venha o vento em plena oposição

à ambição que tanta gente lesa...

 

Que venha o vento, não trazer riqueza,

porém conforto para a multidão;

sempre pobres haverá em ocasião,

mas que trabalho exista com certeza...

 

Que venha o vento moléstias a espantar,

de qualquer tipo ou forma revestida,

os vírus e bactérias carregando...

 

Que venha Zéfiro nas faces me beijar

em cada fio da barba já crescida,

quem sabe os brancos todos renovando!

 

VENTOS DE OURO III

 

Porém não venha com força demais,

para arrancar da cabeça o meu boné;

com esta máscara mal se firma até,

estendo a mão para que o prenda mais...

 

Que venha o vento com dotes naturais,

não peço ouro, somente o meu café

com pão e queijo, talvez um cafuné

de quem me assiste em horas matinais...

 

Que venha o vento sem destruição:

já me arrancou a clarabóia um seu irmão

e a maioria das telhas da garagem...

 

Mas o seguro não me fez reparação,

em seu contrato uma esperta defasagem:

ninguém havia previsto um furacão!

 

VENTOS DE OURO IV

 

Derrama o vento sobre mim seus raios,

enquanto sopra o sol desde o horizonte,

o vento em torno borbulha como fonte

e o sol se tapa com o vime de balaios.

 

Cavalga o vento quais cavalos baios

e o sol se arrasta ao longo de uma ponte,

o vento escala um pontiagudo monte,

gasoso o sol a zunir relinchos gaios...

 

Meus ventos e meus sóis originais

os seus papéis alegres destrocando,

minhas presunções inteiras destroçando.

 

Só em minha janela pretenções casuais,

como se o vento soprasse para mim,

como se o sol habitasse em meu jardim...

 

HÓSPEDE DESEJADO I – 11 MAR 20

 

Quando amor chega, dizem muitas vezes

Que ocorreu-lhes grande transformação,

Que toda a vida se compara a uma canção,

Repetido seu ardor por muitos meses,

Mas olha bem que o argumento leses,

Que na constante e veraz repetição

Talvez se instale o aborrecimento vão,

Substituindo a maravilha que assim preses...

 

Amor é muito mais que uma canção

Que se ponha a repetir no gravador,

No aparelho de som, rádio ou tevê;

É uma constância que atravessa geração,

Que o tédio possa encarar sem destemor,

Mirando o olhar que nossos olhos vê...

 

HÓSPEDE DESEJADO II

 

Amor, de certo modo, é mimetismo.

Alguma coisa a copiar do ser amado,

Mesmo inconsciente, sem ser desejado

O mecanismo de tal companheirismo,

Mesmo que amor jamais é um mecanismo,

Mas um dom para ser compartilhado,

Algo se dá e também algo nos é dado,

Mas sem nisso existir comercialismo.

 

Amor é um hóspede que goza de favor,

Que convidamos para a casa se mudar,

Porque despesa nenhuma causará,

Amor não come e de beber não tem pendor,

Não lava as roupas e seu único lugar

Imponderável entre o casal construirá.

 

HÓSPEDE DESEJADO III

 

Amor assim é esse efeito imponderável,

Tão intangível como a luz do sol,

Muito mais imaterial que seu farol,

Bem mais que o vento a lamber-nos favorável...

Mas hospedar o vento é inaceitável

Ou luz solar capturar cada arrebol:

Posso plantar no jardim um girassol

Ou ligar ventilador bastante amável...

 

Já amor será mais fácil se agarrar,

Se do casal houver igual constância,

Os dois a segurar pontas da corda,

Na qual amor, inconsequente, vem pular,

Sempre disseram que Amor era criança,

Brincar querendo a cada vez que nos aborda...

 

EM LEVE AMOR I -- 12 MAR 2020

 

amor não deves levar demais a sério,

não é um bem que se possa armazenar,

oscila sempre, entre nós em adejar,

de vez em quanto comete um despautério...

 

ou então deseja de ti um refrigério,

talvez espere um sorvetinho a lambiscar

ou algum suquinho para ali bebericar:

só não lhe sirvas um pratinho de adultério!

 

sendo criança, tudo nele é brincadeira,

algo de lúdico em teu maior desgosto,

foge de ti para sentar em colo alheio...

 

mas que não te desaponte a sua maneira,

talvez retorne mesmo antes do sol posto,

talvez num vento, banhado em pleno asseio...

EM LEVE AMOR II

 

quando retorna, talvez queira se deitar,

talvez ainda da pilha tenha assanho,

cheirando mal, talvez precise banho,

cansadinho, talvez só queira te abraçar...

 

esse amor leve de puro acariciar,

igual a amor de mãe no teu antanho,

igual a amor de pai com mais acanho:

recebe-o logo, que te irá recompensar...

 

mas como é raro amor assim tratar,

algumas vezes é encadeado num ciúme,

em outras vezes o pretendes castigar...

 

que tanta gente quer amor de possessão,

quando em retorno lhes cospe em azedume

e então se muda para um outro coração!...

 

EM LEVE AMOR III

 

teu amor,  porém, mais do que tudo,

eu desejo, essa delícia compassada

em vara de condão, teu dom de fada,

bulício leve de teus dedos de veludo...

 

eu quero a tua delícia e não me iludo

que eterna venha a ser ou conservada

mais que em momento de sonho revelada,

mais que no abraço meigo em que me escudo.

 

quero teu corpo ao meu enovelado,

numa paina de luz, leve contato,

mas recebendo sem qualquer reserva;

 

que seja o teu amor um consagrado

fulgor perene, em tal perfeito fato

que a glória desse amor a nós conserva.

 

PREGOS BRILHANTES I – 13 MAR 20

IGUAL JOSÉ EU FIZ-ME CARPINTEIRO

POREM SEM EMPREGAR ENXÓ E PLAINA

É COM OUTRA FERRAMENTA QUE SE AMAINA

O MOBILIÁRIO QUE MODELO EM MEU TERREIRO

E CADA PEÇA ENTÃO LIXO POR INTEIRO

MACIA SEJA QUAL TRANSITÓRIA PAINA

FINAL PRODUTO DE CUIDADOSA FAINA

ANTES QUE O LANCE FORA DO ESTALEIRO

PORQUE O PRETENDO LANÇAR DE FATO AO MAR

GASOSO E INSÓLITO EM SEU DESTILAR

QUE POSSA A OUTREM LEVAR RESPIRAÇÃO

CADA MÓVEL EM LINHAS A PLASMAR

MADEIRA FEITA DA LEI DO CORAÇÃO

SUA COLA O SANGUE A ME CORRER DA MÃO

 

PREGOS BRILHANTES II

DE ESPUMA DE ALMA EU FIZ ESSES POEMAS

DE LUZ E DE SALIVA E DE SANGRIA

DE SUORES DERRAMADOS E CERA FRIA

SENDO A LINFA DAS FERIDAS DIADEMAS

RASPÕES DA PELE A REFAZER EM AÇUCENAS

SERRAGEM EM PRANTO QUE DO OLHAR CORRIA

OU MESMO DA CORIZA QUE ESCONDIA

JÁ TRANSFORMADA EM DOCES ALFAZEMAS

QUAL LÁGRIMA IRRITANDO O NERVO ÓTICO

TÊM O MESMO SABOR AMNIÓTICO

DA MARESIA EM ARRECIFE SOBERANO

AO SE ESPALHAREM ASSIM EM TANTOS FLUXOS

DERRAMADOS POR VÊNUS, MEUS REFLUXOS

DE ADRENALINA E LÍQUIDO RAQUIANO

 

PREGOS BRILHANTES III

USO CADA ELEMENTO COMO UM PREGO

QUE NÃO SE PARTE ASSIM TÃO FACILMENTE

MAS QUE POR DÉCADAS SEJA SUBJACENTE

AOS SENTIMENTOS MEUS QUE HOJE TE LEGO

E NÃO TE ROGO QUE OS ACEITES COMO UM CEGO

MAS AO CONTRÁRIO QUE PONDERES A SEMENTE

NA PALMA DE TUA MÃO TRANQUILO ASSENTE

O SEU PESO E SE DESEJAS SEU APEGO

PORQUE AFINAL SÃO APENAS UM PRESENTE

NADA TE COBRO SENÃO A TUA ATENÇÃO

E DELA PEÇO APENAS UM MOMENTO

E QUE DECIDAS PONDERADAMENTE

SE LHE ABRIRÁS LUGAR NO CORAÇÃO

OU DESCARTÁ-LO EM TOTAL DESPREENDIMENTO

 

DESLITURGIA I – 14 MAR 20

 

À catedral acorre mais a fantasia

ou o desejo de expor as vestimentas,

em trajo domingueiro o corpo assentas,

a maquiagem melhor que se podia...

 

Durante a missa, então cochicho se faria

com a tua amiga e às palavras bentas

bem pouco ou nada a atenção atentas:

mas não é mais em latim que se dizia!

 

João Vinte e Três, no século passado,

determinou que no vernáculo se reze,

mas em vernáculo também corre o falatório

 

e o sinal da cruz assim é conspurcado

pela vaidade que tanta gente prese,

bem mais que o dom contido no ostensório...

 

DESLITURGIA II

 

No sexo, a oração é mais honesta,

pois quando dois numa só carne se amam,

tanta ilusão que a gratidão contesta

se afasta no fervor com que proclamam

 

um estado que graça e santidade atesta,

em que o gozo sincero se reclamam,

de singular propósito, em que essa festa

austera traz um sabor em que se irmanam,

 

que se encontrara raramente numa prece,

quando o temor dos outros desfalece

e se reveste apenas de confiança;

 

que a carne, nessa carne renascente,

real e firme, em incenso redolente,

rebrota em mil fagulhas de esperança.

 

DESLITURGIA III

 

Que a maioria só encara a religião

com desconfiança e até com ironia;

como se crer de fato na heresia

de a tantos santos render adoração?

 

Bem mais sincero no passado esse pagão,

reverenciando os deuses em que cria,

um holocausto em lugar da liturgia,

com trepidante temor no coração.

 

Talvez o deus que se estava convocando

percebesse uma qualquer desatenção

e então o punisse com doença ou maldição?

 

Ou pensamento vagabundo lhe acenando

Lhe atendesse... mais como punição,

As consequências austero lhe ocultando!

Nenhum comentário:

Postar um comentário