sexta-feira, 11 de dezembro de 2020


 

 

terror televisivo I – 1º JAN 2020

 

há muitas décadas que assisto noticiários,

mesmo bem antes de haver televisão,

na rádio antiga e nos jornais, que são

das más notícias constantes tributários;

mui raramente mancheteiam os diários

quaisquer notícias de alegrar o coração;

são as catástrofes e tragédias que ali estão,

de seu espaço os latifundiários...

 

segundo o ponto de vista de editores,

as boas notícias atenção não chamam:

o que o público aprecia é o alheio mal,

para esquecer seus próprio dissabores

e em rotogravura os jornais proclamam

as coisas tétricas em manchete garrafal!

 

terror televisivo II

 

o rádio é grátis, aparentemente,

mais claro modo que o da televisão,

porém os comerciais tem fome urgente

de teus tímpanos manter em percussão;

nos intervalos dessa martelação,

dão notícias ou aviso indiferente,

aborrecido em sua repetição,

mais um jingle, como diziam antigamente. (*)

 

mas quando morre alguém bem conhecido,

desaba um prédio na rua principal,

tumulto ocorre durante o carnaval

ou um desastre em que há alguém ferido,

logo interrompem sua programação,

a noticiá-lo na maior satisfação!...

(*) Pequeno comercial musicado.

 

terror televisivo III

 

mas a tevê hodierna é bem pior:

mostra as imagens em tempo real,

glutoneria em formato digital,

corpos mortos empilhados em horror,

a fome e as guerras em todo o seu pavor,

qualquer escândalo no ambiente palacial,

rumores vazam com ardor sensacional

e depois culpam somente o iniciador...

 

e realmente, possui grande poder,

pois em teu lar entra diretamente,

sexo e droga comentando abertamente:

não noticiam – fazem acontecer

e só me resta transcrever soneto antigo,

em quais metáforas resumir tal mal consigo.

 

terror televisivo IV

 

zumbem zumbis e zombam lobisomens,

em carícia mordaz que não se acaba;

vampiros vampirizam rubra paga:

o sangue rubro de rubicundos homens;

a múmia muge em seculares fomes,

o trasgo invade a sepultura e baba,

a lâmia suga e energia inteira apaga:

que tu, razão, as bestas-feras domes!...

 

esses fantasmas de tanto malefício

eram fruto do terror das lamparinas,

que a luz elétrica nos trouxe nova sorte...

são outros os terrores, puro vício,

arrebanhados do fundo das latrinas,

que a tevê mostra, igual que fora esporte!

 

PAREDES SEM REBOCO I – 2 jan 20

 

Surgiu há pouco nova e tola moda

de eliminar revestimento de paredes,

para mostrar dos tijolos longas redes,

granuladas e ásperas em tal poda.

 

Fico pensando por que tanto te incomoda

esse reboco liso, quando a pedreiro pedes

que o estilhace ou então tu mesma cedes

a esse impulso de polvadeira em roda.

 

Nesses tijolos expostos abrem fácil

as suas moradas múltiplos insetos

e se desmancham depressa na umidade

e sua textura nada tem de grácil,

tuas blusas rasgam em breves desafetos:

qual a vantagem que há nisso, na verdade?

 

PAREDES SEM REBOCO II

 

Decerto temem que tal reboco guarde

as impressões dos dias do passado,

cada sombra ou lampejo conservado,

que ali se entranham sem fazer alarde...

 

E quando vai se amortalhando a tarde,

talvez percebam qualquer rosto emaciado,

ou um ato de amor desmesurado,

alguma briga, qualquer ato covarde...

 

que ali se encontra, mesmo desbotado,

alguma coisa de que não quer lembrar,

ou então que não quer saber sequer...

melhor que seja o reboco esmigalhado,

tristes fantasmas não se podem conservar

e nem nas fendas dos tijolos se esconder...

 

PAREDES SEM REBOCO III

 

Que tudo se contempla, na esquivança,

as imagens que fogem, os olhares,

inseridos em cortinas, lupanares,

gravados pelos templos da esperança...

 

Esses olhares distantes da bonança,

o que as paredes roubaram aos cantares,

o que os assoalhos furtaram dos andares

e tanto mais, que até narrar me cansa...

 

Olhares que se vão e não retornam,

os dedos ressecados, sem anéis:

tu mesma, um dia, ficarás ausente...

Só guardarei em mim visões que amornam:

lembranças de meus olhos, tão fiéis,

em que tua imagem guardarei presente.

 

CONSELHAMENTO I – 3 JAN 20

 

Nada existe dentro em mim que, com razão

possas recear – teu bem somente espero;

ver os teus olhos a reluzir apenas quero,

bater suave te auscultar o coração...

 

Não há motivo de qualquer trepidação,

que o amor que por ti nutro nunca altero,

salvo quando o multiplico e inda mais gero:

sempre em meus braços terás aceitação.

 

Se for buscar nas brumas do passado

os teus fantasmas, terrores, tuas quimeras,

irei o mofo retirar de tuas ameias,

 

cada torreão de teu castelo renovado,

encadenadas firmemente as feras,

serão rugidos de amor em tuas cocleias... (*)

(*) Setores do cérebro reservados à audição.

 

CONSELHAMENTO II

 

Terás de mim parelho amor simétrico,

sem passo atrás, na mais perfeita entrega,

um coração que ao teu somente apega,

teu rosto transformado em ideal estético.

 

E afastarei de ti quanto for tétrico,

qualquer imperfeição que o olhar te cega,

doce minha lágrima que teu peito rega,

amor puro e natural, nada sintético.

 

E se te prometer uma guirlanda

das frescas flores de meu sentimento,

tecê-la-ei com o orvalho que o céu manda.

 

E se te prometer formoso anel,

será forjado de meu pensamento,

que minha mão transportará como um batel.

 

CONSELHAMENTO III

 

Se te banhar nas sombras dos arco-íris,

no demoníaco lacrimejar da vida,

dos olhos marejados, sem guarida,

eu lavarei as ardências que sentires...

 

Hei de escolher para suave ouvires

o som antigo da ocarina já esquecida;

tal qual aedo, a melodia tangida

pela minha lira, quando me pedires...

 

Eu guardarei o Sol dentro da boca

e cada canto meu te aquecerá,

porém, no coração, trarei a Lua;

 

e quanto esse calor te deixar louca,

é o plenilúnio que te consolará,

cantando junto a mim, na noite nua...

 

SAIBRO I  --  4 JAN 2020

 

Segundo nos ensinam Escrituras,

do pó da terra Deus formou a Adão;

em suas narinas lhe soprou respiração,

mais que zéfiro tendo essências puras;

e depois que o homem, sem agruras,

percorreu o seu jardim em exultação,

a cada animal deu a denominação

e a cada planta que te possa trazer curas.

 

Consoante ainda o que escreveu Moisés,

foi Adão submetido a anestesia

e o Senhor dele tirou uma costela;

alegoria das mais antigas fés,

da qual sua esposa Eva cresceria,

de tantas fêmeas por certo a ser mais bela...

 

SAIBRO II

 

E nada disso a ciência contradiz,

já que a costela a sua medula conservava

e desse modo, a esposa que gerava

de seu deeneá tinha cheia a sua cerviz;

foi a serpente Lilith que não quis,

pois desse modo, Adão a desprezava

e de Eva a semente amaldiçoava,

saboroso sendo o fruto, então lhe diz...

 

Porém herdamos todos essa argila,

vinda do solo do primeiro paraíso:

de todos nós o Senhor é o santo oleiro;

igual que a ovelha criamos para a esquila,

não cabe ao vaso reclamar de seu juízo,

cada um de nós tendo certo paradeiro.

 

SAIBRO III

 

Ainda se encontra, entre nós, o antigo Oleiro:

esta é uma imagem demasiado antiga,

que há mais de dois milênios se prossiga,

cuja metáfora desgastou-se por inteiro.

Sou apenas mais um, nem o primeiro

e nem o último a entoar essa cantiga,

igual que comparar o Sol a auriga, (*)

igual que a Morte ao sono derradeiro...

(*) Condutor do carro solar.

 

Perante o obreiro antigo, somos barro,

pois nos moldou da terra, desde o pó

e pretende que cumpramos Sua vontade.

Posso insurgir-me, mas de fato, amarro

meus versos numa corda e cada nó

me cerceará mais um pouco a liberdade.

 

SAIBRO IV

 

Porém julgo também possa ser oleiro:

gólen feito de barro, mas consciente,

o meu destino tramando diferente,

sem querer entregar-me por inteiro...

Que cada ato seja o derradeiro

protesto contra o fado persistente:

com meu caminho sempre descontente,

procuro ser autêntico e guerreiro.

 

Mas quem me diz que já não seja essa

a vontade do pé que gira o torno?

Que me rebele contra a forma desse giro

talvez seja, afinal, a minha promessa:

minha golilha na garganta é adorno,

nesse combate em que a mim mesmo firo.

 

ARCAS ABERTAS I – 5 JAN 20

 

Que desejas que te dê, como uma prova

de meu amor em sua plena intensidade?

Não que me instigue a demonstrar bondade,

que seja o próprio ato de dar que me comova;

se a receberes, quando a boca tua me louva,

essa é a mercê que aqui se encontra na verdade,

tua recepção de tranquila majestade,

que minha própria humildade afete e mova...

Mas te darei tão somente o que pedires,

sabendo então que se algo der-te por demais,

ao invés de amor, provocará irritação,

sentindo inútil o que nas mãos me vires,

tal como um dote sob termos contratuais,

qual se julgasse poder pagar pela tua mão.

 

ARCAS ABERTAS II

 

Assim, só te darei músicas belas

até o ponto em que as mandes apagar,

a ninguém mais permitindo interpretar

tais partituras, caso não possas lê-las;

nem te darei, para que possas tê-las,

cem esculturas do mais fino fabricar,

quadros a óleo para que os possas contemplar,

nem mais poemas, que afinal, são só balelas,

porque terei de ir buscar inspiração

em mil metáforas de um pleno lenocínio,

a persistir na oferta dessas musas;

talvez prefiras as que mais estranhas são

e que só possas entrever no plenilúnio,

ao som vivaz e sideral das cornamusas.

 

ARCAS ABERTAS III

 

Pois te darei luvas feitas de alevins

e onde irás tocar, brotarão seres,

de espécies várias, quais menos esperes,

entremeados a alíneas e outrossins...

Das palavras brotarão frutos afins

e folhas dos suspiros que tiveres:

flores por todos os obstantes que disseres,

qual brota a vida dos lombos e dos rins.

Onde tocares, a aridez do estio

será lavada em sangue permanente

e os grãos de areia em divinal semente,

teus dedos renovando o antigo cio,

para que ventres se abram, em ternura

e a vida brote qual fonte de água pura.

 


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