terror televisivo I – 1º JAN 2020
há muitas décadas que assisto noticiários,
mesmo bem antes de haver televisão,
na rádio antiga e nos jornais, que são
das más notícias constantes tributários;
mui raramente mancheteiam os diários
quaisquer notícias de alegrar o coração;
são as catástrofes e tragédias que ali estão,
de seu espaço os latifundiários...
segundo o ponto de vista de editores,
as boas notícias atenção não chamam:
o que o público aprecia é o alheio mal,
para esquecer seus próprio dissabores
e em rotogravura os jornais proclamam
as coisas tétricas em manchete garrafal!
terror televisivo II
o rádio é grátis, aparentemente,
mais claro modo que o da televisão,
porém os comerciais tem fome urgente
de teus tímpanos manter em percussão;
nos intervalos dessa martelação,
dão notícias ou aviso indiferente,
aborrecido em sua repetição,
mais um jingle, como
diziam antigamente. (*)
mas quando morre alguém bem conhecido,
desaba um prédio na rua principal,
tumulto ocorre durante o carnaval
ou um desastre em que há alguém ferido,
logo interrompem sua programação,
a noticiá-lo na maior satisfação!...
(*) Pequeno comercial musicado.
terror televisivo III
mas a tevê hodierna é bem pior:
mostra as imagens em tempo real,
glutoneria em formato digital,
corpos mortos empilhados em horror,
a fome e as guerras em todo o seu pavor,
qualquer escândalo no ambiente palacial,
rumores vazam com ardor sensacional
e depois culpam somente o iniciador...
e realmente, possui grande poder,
pois em teu lar entra diretamente,
sexo e droga comentando abertamente:
não noticiam – fazem acontecer
e só me resta transcrever soneto antigo,
em quais metáforas resumir tal mal consigo.
terror televisivo IV
zumbem zumbis e zombam lobisomens,
em carícia mordaz que não se acaba;
vampiros vampirizam rubra paga:
o sangue rubro de rubicundos homens;
a múmia muge em seculares fomes,
o trasgo invade a sepultura e baba,
a lâmia suga e energia inteira apaga:
que tu, razão, as bestas-feras domes!...
esses fantasmas de tanto malefício
eram fruto do terror das lamparinas,
que a luz elétrica nos trouxe nova sorte...
são outros os terrores, puro vício,
arrebanhados do fundo das latrinas,
que a tevê mostra, igual que fora esporte!
PAREDES SEM REBOCO I – 2 jan 20
Surgiu há pouco nova e tola moda
de eliminar revestimento de paredes,
para mostrar dos tijolos longas
redes,
granuladas e ásperas em tal poda.
Fico pensando por que tanto te
incomoda
esse reboco liso, quando a pedreiro
pedes
que o estilhace ou então tu mesma
cedes
a esse impulso de polvadeira em roda.
Nesses tijolos expostos abrem fácil
as suas moradas múltiplos insetos
e se desmancham depressa na umidade
e sua textura nada tem de grácil,
tuas blusas rasgam em breves
desafetos:
qual a vantagem que há nisso, na
verdade?
PAREDES SEM REBOCO II
Decerto temem que tal reboco guarde
as impressões dos dias do passado,
cada sombra ou lampejo conservado,
que ali se entranham sem fazer
alarde...
E quando vai se amortalhando a tarde,
talvez percebam qualquer rosto
emaciado,
ou um ato de amor desmesurado,
alguma briga, qualquer ato covarde...
que ali se encontra, mesmo desbotado,
alguma coisa de que não quer lembrar,
ou então que não quer saber sequer...
melhor que seja o reboco esmigalhado,
tristes fantasmas não se podem
conservar
e nem nas fendas dos tijolos se
esconder...
PAREDES SEM REBOCO III
Que tudo se contempla, na esquivança,
as imagens que fogem, os olhares,
inseridos em cortinas, lupanares,
gravados pelos templos da
esperança...
Esses olhares distantes da bonança,
o que as paredes roubaram aos
cantares,
o que os assoalhos furtaram dos
andares
e tanto mais, que até narrar me
cansa...
Olhares que se vão e não retornam,
os dedos ressecados, sem anéis:
tu mesma, um dia, ficarás ausente...
Só guardarei em mim visões que amornam:
lembranças de meus olhos, tão fiéis,
em que tua imagem guardarei presente.
CONSELHAMENTO I – 3 JAN 20
Nada existe dentro em mim que, com
razão
possas recear – teu bem somente
espero;
ver os teus olhos a reluzir apenas
quero,
bater suave te auscultar o coração...
Não há motivo de qualquer trepidação,
que o amor que por ti nutro nunca
altero,
salvo quando o multiplico e inda mais
gero:
sempre em meus braços terás
aceitação.
Se for buscar nas brumas do passado
os teus fantasmas, terrores, tuas quimeras,
irei o mofo retirar de tuas ameias,
cada torreão de teu castelo renovado,
encadenadas firmemente as feras,
serão rugidos de amor em tuas
cocleias... (*)
(*) Setores do cérebro reservados à
audição.
CONSELHAMENTO II
Terás de mim parelho amor simétrico,
sem passo atrás, na mais perfeita
entrega,
um coração que ao teu somente apega,
teu rosto transformado em ideal
estético.
E afastarei de ti quanto for tétrico,
qualquer imperfeição que o olhar te
cega,
doce minha lágrima que teu peito
rega,
amor puro e natural, nada sintético.
E se te prometer uma guirlanda
das frescas flores de meu sentimento,
tecê-la-ei com o orvalho que o céu
manda.
E se te prometer formoso anel,
será forjado de meu pensamento,
que minha mão transportará como um
batel.
CONSELHAMENTO III
Se te banhar nas sombras dos
arco-íris,
no demoníaco lacrimejar da vida,
dos olhos marejados, sem guarida,
eu lavarei as ardências que
sentires...
Hei de escolher para suave ouvires
o som antigo da ocarina já esquecida;
tal qual aedo, a melodia tangida
pela minha lira, quando me pedires...
Eu guardarei o Sol dentro da boca
e cada canto meu te aquecerá,
porém, no coração, trarei a Lua;
e quanto esse calor te deixar louca,
é o plenilúnio que te consolará,
cantando junto a mim, na
noite nua...
SAIBRO I -- 4
JAN 2020
Segundo nos ensinam Escrituras,
do pó da terra Deus formou a
Adão;
em suas narinas lhe soprou
respiração,
mais que zéfiro tendo essências
puras;
e depois que o homem, sem
agruras,
percorreu o seu jardim em
exultação,
a cada animal deu a denominação
e a cada planta que te possa
trazer curas.
Consoante ainda o que escreveu
Moisés,
foi Adão submetido a anestesia
e o Senhor dele tirou uma
costela;
alegoria das mais antigas fés,
da qual sua esposa Eva
cresceria,
de tantas fêmeas por certo a
ser mais bela...
SAIBRO II
E nada disso a ciência
contradiz,
já que a costela a sua medula
conservava
e desse modo, a esposa que
gerava
de seu deeneá tinha cheia a sua
cerviz;
foi a serpente Lilith que não
quis,
pois desse modo, Adão a
desprezava
e de Eva a semente amaldiçoava,
saboroso sendo o fruto, então
lhe diz...
Porém herdamos todos essa
argila,
vinda do solo do primeiro
paraíso:
de todos nós o Senhor é o santo
oleiro;
igual que a ovelha criamos para
a esquila,
não cabe ao vaso reclamar de
seu juízo,
cada um de nós tendo certo
paradeiro.
SAIBRO III
Ainda se encontra, entre nós, o
antigo Oleiro:
esta é uma imagem demasiado
antiga,
que há mais de dois milênios se
prossiga,
cuja metáfora desgastou-se por
inteiro.
Sou apenas mais um, nem o
primeiro
e nem o último a entoar essa
cantiga,
igual que comparar o Sol a
auriga, (*)
igual que a Morte ao sono
derradeiro...
(*) Condutor do carro solar.
Perante o obreiro antigo, somos
barro,
pois nos moldou da terra, desde o
pó
e pretende que cumpramos Sua
vontade.
Posso insurgir-me, mas de fato,
amarro
meus versos numa corda e cada nó
me cerceará mais um pouco a
liberdade.
SAIBRO IV
Porém julgo também possa ser
oleiro:
gólen feito de barro, mas
consciente,
o meu destino tramando
diferente,
sem querer entregar-me por
inteiro...
Que cada ato seja o derradeiro
protesto contra o fado
persistente:
com meu caminho sempre
descontente,
procuro ser autêntico e
guerreiro.
Mas quem me diz que já não seja
essa
a vontade do pé que gira o
torno?
Que me rebele contra a forma
desse giro
talvez seja, afinal, a minha
promessa:
minha golilha na garganta é
adorno,
nesse combate em que a mim
mesmo firo.
ARCAS ABERTAS I – 5 JAN 20
Que desejas que te dê, como uma prova
de meu amor em sua plena intensidade?
Não que me instigue a demonstrar
bondade,
que seja o próprio ato de dar que me
comova;
se a receberes, quando a boca tua me
louva,
essa é a mercê que aqui se encontra
na verdade,
tua recepção de tranquila majestade,
que minha própria humildade afete e
mova...
Mas te darei tão somente o que
pedires,
sabendo então que se algo der-te por
demais,
ao invés de amor, provocará
irritação,
sentindo inútil o que nas mãos me
vires,
tal como um dote sob termos
contratuais,
qual se julgasse poder pagar pela tua
mão.
ARCAS ABERTAS II
Assim, só te darei músicas belas
até o ponto em que as mandes apagar,
a ninguém mais permitindo interpretar
tais partituras, caso não possas
lê-las;
nem te darei, para que possas tê-las,
cem esculturas do mais fino fabricar,
quadros a óleo para que os possas
contemplar,
nem mais poemas, que afinal, são só
balelas,
porque terei de ir buscar inspiração
em mil metáforas de um pleno
lenocínio,
a persistir na oferta dessas musas;
talvez prefiras as que mais estranhas
são
e que só possas entrever no plenilúnio,
ao som vivaz e sideral das
cornamusas.
ARCAS ABERTAS III
Pois te darei luvas feitas de alevins
e onde irás tocar, brotarão seres,
de espécies várias, quais menos
esperes,
entremeados a alíneas e outrossins...
Das palavras brotarão frutos afins
e folhas dos suspiros que tiveres:
flores por todos os obstantes que
disseres,
qual brota a vida dos lombos e dos
rins.
Onde tocares, a aridez do estio
será lavada em sangue permanente
e os grãos de areia em divinal
semente,
teus dedos renovando o antigo cio,
para que ventres se abram, em ternura
e a vida brote qual fonte de
água pura.
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