terça-feira, 15 de dezembro de 2020


 

 

ENLEIO I – 17 jan 2020

 

as palavras me perseguem

mansamente, loucamente

ansiosas para sair

velozmente, incontinenti

sem terem real sentido

totalmente, inutilmente

mas todas elas pressionam

na desmesurada mente

e me tornam impotente

para conter esse urgente

fluxo doido, opalescente

de azinhavre redolente

de malícia inteligente

de segredo impenitente

das relíquias de um demente

adorando o Sol nascente

desnudando a Lua fremente

fecundando estrela quente

na maldade indiferente

destes versos, bruscamente

lançados neste papel

 

ENLEIO II

 

na desmesurada mente

busco minha redenção

minha própria penitência

minha própria perdição

ansiando por meu suplício

faço igreja o coração

na palma de minha mão

como hóstia em morto pão

as linhas da previsão

meu futuro acertarão

cada sulco em sua junção

de minha longa natação

liquidez na gestação

ali meus dedos estão

na umidade murcharão

todo o meu destino vão

ali prognosticarão

que os quiromantes lerão

na inspiração do momento

 

ENLEIO III

 

e desmesuradamente

tive meu porvir contado

por cigana colorida

em sua mão já colocado

cada troco do meu bolso

duas vezes a ser casado

seis filhos a ter gerado

da vida o sulco, coitado

pelo meu pulso é forçado

a dobrar desesperado

por distender meu passado

no presente atribulado

num futuro deslumbrado

dos amigos a meu lado

cada sorriso apressado

com zombaria é formado

mas sobrevivo cansado

quatro amigos nesse fado

que no antanho foi deixado

quem então testemunhou

 

 MARUJO I (para "Senta") – 18 jan 2020

 

Havia uma mulher apaixonada

pela figura de um velho marinheiro:

quando deixava o mar, vinha certeiro

a visitar sua bela namorada.

 

Um dia, ela lhe disse estar cansada

de ficar tão sozinha no terreiro,

enquanto ele cobria o mundo inteiro

e em cada porto tinha nova amada.

 

Tanto insistiu que fosse mais presente

que, por amor, desistiu do itinerário

e abandonou seu livre velejar...

 

E o resultado não foi nada surpreendente:

o capitão tornou-se sedentário

e hoje é ela quem passa a viajar!...

 

MARUJO II

 

Nem sempre concordar é conveniente

com os desejos que expressa a idolatrada,

pelo seu próprio instinto consternada

a proteção cobrar-nos permanente...

 

Não é que o abandonasse realmente,

sua perspectiva foi rápido encurtada,

reduzido a trabalhar em sua morada

em suas múltiplas tarefas persistente...

 

Em terra firme seu ânimo perdeu,

do mundo percorrido se esqueceu,

salvo a lembrá-lo pela televisão,

 

enquanto ela abandonou suas preces,

encontrou rápido novos interesses

e desprezou-o no seu coração...

 

MARUJO III

 

A antiga lenda do velho marinheiro

que navegava em seu navio fantasma

só recontempla através de seu quiasma

ótico.  Até o cais raramente é caminheiro. (*)

(*) Núcleo cerebral que administra a visão.

 

Mas um dia, acordou-se ela primeiro

e sem lhe dar carinho ou cataplasma,

fez uma trouxa... E o coitado pasma

ao saber de seu plano derradeiro...

 

Hoje é Senta que embarca num veleiro,

acompanhada por um grupo de zumbis,

enquanto Willem permanece a sós... (*)

 

Mui raramente ao porto vem, ligeiro,

pois seu destino roubou, tal como quis

e em troca deu-lhe seu manso fado atroz...

(*) Os protagonistas de O Holandês Voador de Wagner.

 

SONETO RACISTA I (em versos brancos...) – 19 jan 2020

 

Eu lembro o teu sorriso: aquela nesga

que surge entre nuvens cor de chumbo.

Dentes de sabre perfuram o meu peito

e mal respiro, no estertor de pua.

 

Eu lembro de teus olhos, contas verdes,

num alabastro perdido em supercílios.

Entre os pômulos da face bem maduros,

arfam narinas feitas de incerteza.

 

Teus cabelos uma teia de correntes:

dos brincos pendem lóbulos ferinos

e o pescoço corre ao vento, sem colares,

 

sob teus lábios famintos de amargura...

E é desse modo que recordo tuas feições,

como rosas de vidro esmigalhadas... 

 

SONETO RACISTA II

 

De ébano recordo outro sorriso,

os dentes também sendo do alabastro,

a língua a murmurar-me alguns segredos,

por mais que fosse tola e inexperiente,

 

qual inexperiente nesse tempo eu era

e no entretanto, como me orientou!

Pois bem outra podia ter sido a descoberta

outro caminho levando-me a trilhar...

 

e lembro bem seus olhos ambarinos,

bem diversos dos olhos cor de sínople

que mencionei nos versos anteriores,

 

sua lã macia sob um céu de blau,

essa mistura de prazeres e terrores

que me causou o primeiro espantamento.

 

SONETO RACISTA III

 

Hoje em dia no racismo tanto falam,

que todo branco é racista no inconsciente,

mas o que importa se não mostra essa tendência,

quando só existe uma raça, que é a humana?

 

Muito mais vejo o racismo bem latente

entre os negros contra outros revoltados,

contra os mulatos ou em rancores vastos

contra, digamos, os eurodescendentes...

 

Parece efeito de uma cruel demagogia,

fendas cravando através da sociedade,

suas pedras desejando estilhaçar;

 

mas não insistam então em meu racismo,

já que meus versos costumam ser rimados,

em poemas negros, incolores ou de arco-íris!

 

SUCEDÂNEO I  -- 20 jan 20

(para Cláudio Albano)

 

Nesta vida de tantos desencontros

é tão raro descobrir a quem se quer;

nos meandros e caprichos da mulher

se tumultuam mil sexuais encontros.

 

Em resultado assim desses confrontos,

se a solidão não se deseja conhecer,

quem procura em outro corpo se aquecer,

se contenta em melancólicos recontros.

 

E quanta vez aquela nos seus braços,

enviada pela vida, em seu consolo,

é tão somente a sombra de um desejo.

 

E quantas se aconchegam nos abraços

pelo prazer de amamentar no colo

o resultado de um gelado beijo!...

 

SUCEDÂNEO II

 

O sol me escorre ao longo do tapete,

corta a janela e vem lamber-me os pés;

se fosse inverno, lhe bendiria as sés,

mas no verão percebo que me afete

 

muito mais esse calor que me projete,

não gosto de seu gume no sopé

de meus calçados, tampouco em meu boné,

mas qual de um cão essa língua se intromete.

 

Receio tenho até de escorregar

nesse tapete solarengo e empapado;

se pisasse nos ladrilhos, certamente,

 

já pelo assoalho me acharia estirado,

mas nessa poeira que ilumina o ar

ainda me firmo bem confiantemente...

 

SUCEDÂNEO III

 

A mulher é como o sol que me procura,

enquanto a ela parecemos não querer;

nos traz calor que nos faça padecer,

que no rigor do inverno não perdura.

 

Qual sucedêneo servirá de cura

para a saudade, em lento padecer,

ou solidão em nosso peito a enlanguescer,

mas raramente por toda a vida dura.

 

O amor escorre ao longo do tapete,

puro e humilde ao princípio nos parece,

mas como a poeira do ar, é uma ilusão,

 

todo composto de serpentinas e confete,

depois é a mágoa revestida em prece

e finalmente... esse vazio no coração.

 

MACABRO I – 21 jan 2020

 

Algumas vezes tenho horrível pesadelo,

mas não dormindo, só em devaneio,

pois se o sonhei, foi grande o meu receio

e lhe apaguei toda a lembrança, só de tê-lo.

 

Foi sonhando acordado, em luz de gelo,

que essa imagem de horror à mente veio:

que me abrissem o ataúde, noite a meio,

bando de mortas, em tétrico desvelo;

 

pela saudade que tinham de outro sexo,

que os outros mortos já não mais podiam

satisfazer, provocando minha ereção,

 

sentadas sobre mim, horrendo nexo,

em busca de um orgasmo, me feriam,

até meu órgão perder-se em podridão.

 

MACABRO II

 

Essa imagem assombrou-me algumas vezes,

em especial após morrer alguém que amei

e cujo corpo em vida até abracei;

que a mim por tal assombro não desprezes

 

e esse conceito que fazes de mim não leses;

são tão só esses lampejos que apaguei

de meu consciente, mas que não executei;

não são reais pesadelos, é bom que os peses,

 

pois se o fossem os saberia combater:

há muito tempo sei que o sonho é meu

e que o controlo, caso assim o desejar;

 

são antes lâmias à espreita de meu ser,

em devaneio enfraquecido e ateu,

que em tocaia procuram me assaltar.

 

MACABRO III

 

Naturalmente, isso faz que me desperte

e os fragmentos que me dá a imaginação

espanto rápidos, escada abaixo, até o portão,

de sentinela o anjo da guarda que me alerte,

 

se de outra feita o cuidado me deserte

e me interrompa de minha sesta a confusão;

deles me rio, sem lhes dar grande atenção:

há tanto pensamento quase inerte

 

que nos penetra pelo olhar ou ouvido,

ante a menor ocasião de uma emboscada!

Eu tenho é pena dessas pobres zuvembis; (*)

 

Não são fantasmas que encarcerei no olvido,

mas só tristeza por outrem descartada,

pobres lembranças que tampouco eu quis!

(*) Feminino de zumbis.

 

MACABRO IV

 

Por via das dúvidas, eu quero ser cremado!

Só quero ver se as cinzas vêm beijar-me...

Depois de morto e desfeito sem alarme,

não mais por súcubos poderei ser assaltado, (*)

(*) Feminino de íncubos, demônios noturnos.

 

especialmente após ser então lançado

aos quatro ventos, inteiro a espalhar-me,

de modo tal que outrem jamais arme

esses resquícios de que um dia foi formado.

 

Porque macabro é o apodrecimento,

seja na terra, seja em mausoléu,

sabe-se lá o que nos venha a devorar!

 

E se alma sobrevive, não soltará lamento

ao ver essa moínha solta ao léu,

mas tão somente de si mesma irá cuidar!

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