ENLEIO
I – 17 jan 2020
as
palavras me perseguem
mansamente,
loucamente
ansiosas
para sair
velozmente,
incontinenti
sem terem
real sentido
totalmente,
inutilmente
mas
todas elas pressionam
na desmesurada
mente
e
me tornam impotente
para
conter esse urgente
fluxo
doido, opalescente
de
azinhavre redolente
de
malícia inteligente
de
segredo impenitente
das
relíquias de um demente
adorando
o Sol nascente
desnudando
a Lua fremente
fecundando
estrela quente
na
maldade indiferente
destes
versos, bruscamente
lançados
neste papel
ENLEIO
II
na
desmesurada mente
busco
minha redenção
minha
própria penitência
minha
própria perdição
ansiando
por meu suplício
faço
igreja o coração
na
palma de minha mão
como
hóstia em morto pão
as
linhas da previsão
meu
futuro acertarão
cada
sulco em sua junção
de
minha longa natação
liquidez
na gestação
ali
meus dedos estão
na
umidade murcharão
todo
o meu destino vão
ali
prognosticarão
que
os quiromantes lerão
na
inspiração do momento
ENLEIO
III
e
desmesuradamente
tive
meu porvir contado
por
cigana colorida
em
sua mão já colocado
cada
troco do meu bolso
duas
vezes a ser casado
seis
filhos a ter gerado
da
vida o sulco, coitado
pelo
meu pulso é forçado
a
dobrar desesperado
por
distender meu passado
no
presente atribulado
num
futuro deslumbrado
dos
amigos a meu lado
cada
sorriso apressado
com
zombaria é formado
mas
sobrevivo cansado
quatro
amigos nesse fado
que
no antanho foi deixado
quem
então testemunhou
MARUJO I (para "Senta") – 18 jan 2020
Havia uma mulher apaixonada
pela figura de um velho marinheiro:
quando deixava o mar, vinha certeiro
a visitar sua bela namorada.
Um dia, ela lhe disse estar cansada
de ficar tão sozinha no terreiro,
enquanto ele cobria o mundo inteiro
e em cada porto tinha nova amada.
Tanto insistiu que fosse mais presente
que, por amor, desistiu do itinerário
e abandonou seu livre velejar...
E o resultado não foi nada surpreendente:
o capitão tornou-se sedentário
e hoje é ela quem passa a viajar!...
MARUJO II
Nem sempre concordar é conveniente
com os desejos que expressa a idolatrada,
pelo seu próprio instinto consternada
a proteção cobrar-nos permanente...
Não é que o abandonasse realmente,
sua perspectiva foi rápido encurtada,
reduzido a trabalhar em sua morada
em suas múltiplas tarefas persistente...
Em terra firme seu ânimo perdeu,
do mundo percorrido se esqueceu,
salvo a lembrá-lo pela televisão,
enquanto ela abandonou suas preces,
encontrou rápido novos interesses
e desprezou-o no seu coração...
MARUJO III
A antiga lenda do velho marinheiro
que navegava em seu navio fantasma
só recontempla através de seu quiasma
ótico. Até o cais raramente
é caminheiro. (*)
(*) Núcleo cerebral que administra a visão.
Mas um dia, acordou-se ela primeiro
e sem lhe dar carinho ou cataplasma,
fez uma trouxa... E o coitado pasma
ao saber de seu plano derradeiro...
Hoje é Senta que embarca num veleiro,
acompanhada por um grupo de zumbis,
enquanto Willem permanece a sós... (*)
Mui raramente ao porto vem, ligeiro,
pois seu destino roubou, tal como quis
e em troca deu-lhe seu manso fado atroz...
(*) Os protagonistas de O Holandês Voador de Wagner.
SONETO RACISTA I
(em versos brancos...) – 19 jan 2020
Eu lembro o teu
sorriso: aquela nesga
que surge entre
nuvens cor de chumbo.
Dentes de sabre
perfuram o meu peito
e mal respiro, no
estertor de pua.
Eu lembro de teus
olhos, contas verdes,
num alabastro
perdido em supercílios.
Entre os pômulos
da face bem maduros,
arfam narinas
feitas de incerteza.
Teus cabelos uma
teia de correntes:
dos brincos
pendem lóbulos ferinos
e o pescoço corre
ao vento, sem colares,
sob teus lábios
famintos de amargura...
E é desse modo
que recordo tuas feições,
como rosas de
vidro esmigalhadas...
SONETO RACISTA II
De ébano recordo
outro sorriso,
os dentes também
sendo do alabastro,
a língua a
murmurar-me alguns segredos,
por mais que
fosse tola e inexperiente,
qual inexperiente
nesse tempo eu era
e no entretanto,
como me orientou!
Pois bem outra
podia ter sido a descoberta
outro caminho
levando-me a trilhar...
e lembro bem seus
olhos ambarinos,
bem diversos dos
olhos cor de sínople
que mencionei nos
versos anteriores,
sua lã macia sob
um céu de blau,
essa mistura de
prazeres e terrores
que me causou o primeiro
espantamento.
SONETO RACISTA
III
Hoje em dia no
racismo tanto falam,
que todo branco é
racista no inconsciente,
mas o que importa
se não mostra essa tendência,
quando só existe
uma raça, que é a humana?
Muito mais vejo o
racismo bem latente
entre os negros
contra outros revoltados,
contra os mulatos
ou em rancores vastos
contra, digamos,
os eurodescendentes...
Parece efeito de
uma cruel demagogia,
fendas cravando
através da sociedade,
suas pedras
desejando estilhaçar;
mas não insistam
então em meu racismo,
já que meus
versos costumam ser rimados,
em poemas negros,
incolores ou de arco-íris!
SUCEDÂNEO I -- 20 jan 20
(para Cláudio Albano)
Nesta vida de tantos desencontros
é tão raro descobrir a quem se quer;
nos meandros e caprichos da mulher
se tumultuam mil sexuais encontros.
Em resultado assim desses confrontos,
se a solidão não se deseja conhecer,
quem procura em outro corpo se aquecer,
se contenta em melancólicos recontros.
E quanta vez aquela nos seus braços,
enviada pela vida, em seu consolo,
é tão somente a sombra de um desejo.
E quantas se aconchegam nos abraços
pelo prazer de amamentar no colo
o resultado de um gelado beijo!...
SUCEDÂNEO II
O sol me escorre ao longo do tapete,
corta a janela e vem lamber-me os pés;
se fosse inverno, lhe bendiria as sés,
mas no verão percebo que me afete
muito mais esse calor que me projete,
não gosto de seu gume no sopé
de meus calçados, tampouco em meu boné,
mas qual de um cão essa língua se intromete.
Receio tenho até de escorregar
nesse tapete solarengo e empapado;
se pisasse nos ladrilhos, certamente,
já pelo assoalho me acharia estirado,
mas nessa poeira que ilumina o ar
ainda me firmo bem confiantemente...
SUCEDÂNEO III
A mulher é como o sol que me procura,
enquanto a ela parecemos não querer;
nos traz calor que nos faça padecer,
que no rigor do inverno não perdura.
Qual sucedêneo servirá de cura
para a saudade, em lento padecer,
ou solidão em nosso peito a enlanguescer,
mas raramente por toda a vida dura.
O amor escorre ao longo do tapete,
puro e humilde ao princípio nos parece,
mas como a poeira do ar, é uma ilusão,
todo composto de serpentinas e confete,
depois é a mágoa revestida em prece
e finalmente... esse vazio no coração.
MACABRO I – 21
jan 2020
Algumas vezes
tenho horrível pesadelo,
mas não dormindo,
só em devaneio,
pois se o sonhei,
foi grande o meu receio
e lhe apaguei
toda a lembrança, só de tê-lo.
Foi sonhando
acordado, em luz de gelo,
que essa imagem
de horror à mente veio:
que me abrissem o
ataúde, noite a meio,
bando de mortas,
em tétrico desvelo;
pela saudade que
tinham de outro sexo,
que os outros
mortos já não mais podiam
satisfazer,
provocando minha ereção,
sentadas sobre
mim, horrendo nexo,
em busca de um
orgasmo, me feriam,
até meu órgão
perder-se em podridão.
MACABRO II
Essa imagem
assombrou-me algumas vezes,
em especial após
morrer alguém que amei
e cujo corpo em
vida até abracei;
que a mim por tal
assombro não desprezes
e esse conceito
que fazes de mim não leses;
são tão só esses
lampejos que apaguei
de meu
consciente, mas que não executei;
não são reais
pesadelos, é bom que os peses,
pois se o fossem
os saberia combater:
há muito tempo
sei que o sonho é meu
e que o controlo,
caso assim o desejar;
são antes lâmias
à espreita de meu ser,
em devaneio enfraquecido
e ateu,
que em tocaia
procuram me assaltar.
MACABRO III
Naturalmente,
isso faz que me desperte
e os fragmentos
que me dá a imaginação
espanto rápidos,
escada abaixo, até o portão,
de sentinela o
anjo da guarda que me alerte,
se de outra feita
o cuidado me deserte
e me interrompa
de minha sesta a confusão;
deles me rio, sem
lhes dar grande atenção:
há tanto
pensamento quase inerte
que nos penetra
pelo olhar ou ouvido,
ante a menor
ocasião de uma emboscada!
Eu tenho é pena
dessas pobres zuvembis; (*)
Não são fantasmas
que encarcerei no olvido,
mas só tristeza
por outrem descartada,
pobres lembranças
que tampouco eu quis!
(*) Feminino de
zumbis.
MACABRO IV
Por via das
dúvidas, eu quero ser cremado!
Só quero ver se
as cinzas vêm beijar-me...
Depois de morto e
desfeito sem alarme,
não mais por
súcubos poderei ser assaltado, (*)
(*) Feminino de
íncubos, demônios noturnos.
especialmente
após ser então lançado
aos quatro
ventos, inteiro a espalhar-me,
de modo tal que
outrem jamais arme
esses resquícios
de que um dia foi formado.
Porque macabro é
o apodrecimento,
seja na terra,
seja em mausoléu,
sabe-se lá o que
nos venha a devorar!
E se alma
sobrevive, não soltará lamento
ao ver essa moínha
solta ao léu,
mas tão somente
de si mesma irá cuidar!
Nenhum comentário:
Postar um comentário