LUZ DE GEADA I – 12
dez 19
Orvalhado de ti,
sou incompleto,
disforme minha
visão nessa pureza,
eu não pertenço ao
mundo com clareza,
se dessa chuva me
afasto um só minuto.
Coagulado de ti,
sou resoluto,
abranjo o mundo,
constante de beleza,
em tua presença
alcanço ideal certeza,
não mais existe
qualquer fanal secreto.
Mas sem excitação,
somente o arguto
reduplicar de ti,
na aceitação
de cada laivo teu,
cada faceta,
pois quanto mais
ingênuo, mais astuto
eu me transformo,
no sereno da ilusão
de que algum dia te
entregarás completa.
LUZ DE GEADA II
Depende do que
sinto. Dia a dia,
as minhas emoções
são diferentes,
não sou estático
qual algumas gentes,
mas um
caleidoscópio é que me guia.
Não depende do qeu
sinto. A nostalgia
vem lá de dentro,
secreções plangentes
se manifestam
sempre, contundentes,
tristes, se rio;
alegres, se sofria...
E desse modo, não
me sinto responsável
pelas frases que
saem. Brotam sozinhas
e nada mais eu faço
que escrever.
Não sou poeta,
apenas condestável,
comandando estas
hostes comezinhas
e as transformando
no sonho de quem ler.
LUZ DE GEADA III
O sangue são meus
anjos e combatem
contra as forças do
mal que me assediam;
diariamente,
bactérias endemoniam
e é com esforço que
então eles as matem.
As febres são mil
flechas que as abatem,
mas há vírus e
fungos, que desfiam,
com eficiência as
fibras que avaliam,
quando as plaquetas
nova rede engatem.
Qual um aviso para
o corpo inteiro,
meus neurônios
gentis, força da alma,
demonstram como
existo, em ilusão
ou imagem mais
real. Num derradeiro
esforço terrenal,
morrem com calma,
enquanto eu vivo em
nova vibração.
LUZ DE GEADA IV
Mas sinto a vida
como sendo um faz-de-conta.
Faço de conta que
vivo, mas nem creio
que eu realmente
exista e até receio
descartar-me e
perder a pouca monta
que dou ao ato de
pensar. Somente aponta
à certeza da
existência qualquer meio
que me leve a
pensar, num devaneio,
mas não que exista,
que a vida desaponta.
Se eu fosse bem
real, mui certamente
viveria de outro
modo e habitaria
em um mundo que
pudesse governar.
Mas não sou mais
que um cálculo da mente,
que qualquer
intoxicação destruiria,
mesmo que o corpo
seguisse a caminhar...
CONTEMPLÁRIO I -- 13/12/19
Na abside da alma,
assento a mente (*)
o teto é ali mais
baixo e até me oprime,
mas então minha
autoestima se redime,
ereta na abside em
que me assente.
Cada feito desse
dia se ressente,
alguns deles é
preciso até que mime,
alguns outros que
vergaste com meu vime,
alguma ação sequer
se acha presente,
até que a busque
onde se encontra oculta,
cabisbaixa e
ressentida vem a lume;
examinada, então,
lhe aplico a multa;
mas se revolta,
altiva, porque é minha:
de mim brotaram
cólera e ciúme,
rasgadas emoções, a
alma definha...
(*) Nicho da
basílica em que se assenta um bispo.
CONTEMPLÁRIO II
Dizem que seja
crime ou então bobagem
o ciúme, que requer
seja só nosso
o quanto os olhos
veem, alado fosso,
túnel aberto no
cérebro selvagem,
camada que se
mescla, essa estiagem
de sonhos e de
fatos, tal endosso
de cantos
infelizes, fundo poço
de
tíbia sensação ou de coragem...
mal
poderia emoção tal me pertencer,
porém
os outros a contemplam, justamente
no
ambicionar de cada coisa que concebas,
na
indiferença casual do percorrer,
enquanto
eu poderia, fielmente,
em uma
jóia te engasar sem que o percebas..
CONTEMPLÁRIO III
Talvez ao invés de
uma abside, eu necessito
fazer o estudo da
alma em aduar, (*)
que não esteja
cimentado em um lugar,
que se variem os
pontos em que habito
ou quiçá em
demiurgo me concito,
o mundo inteiro sob
meu planear...
onde o ciúme
poderia se encontrar,
quando há certeza
de tudo o que foi dito?
E sendo o mundo
meu, eu só te empresto
um pedacinho
dele... e temporário,
para depois te
receber no meu sacrário,
nalgum lugar que de
antemão te apresto:
tudo de volta me
trarás, até o ciúme,
no vasto escuro a
esclarecer-se com meu lume.
(*)
Acampamento mouro ou beduíno.
em paga luminosa 1 – 14 dez
19
quem diria, afinal, que a luz da aurora
eu pudesse recolher para mim mesmo?
já recusei esse horário feito a esmo,
hoje me ergui, depressa, à sexta hora.
não quero mais meu tempo jogar fora;
cortaram a minha luz, isto fez mo-
mentos se perderem, foi grês mo-
vimentado por lampião de outrora. (*)
eu pretendia trabalhar por longo tempo,
fazer render mil versos de leveza
ideias maduras do ideal da adolescência.
mas vieram os trovões, em contratempo
e a máquina apaguei, deixando-a ilesa
dos relâmpagos em fulgir de advertência.
(*) Emprego de sinafia
em paga luminosa 2
a luz da aurora no alforje meu guardei,
costurado com meu grosso e forte couro,
tornada para mim raro tesouro,
pois do dilúculo nem sempre me agradei... (*)
mas com lençóis de espanto a captei,
enrolada em meu sono de desdouro,
atada firme por meus sonhos d’ouro
e no meu velho recipiente a maturei...
ali a vejo matizada num arco-íris,
se bem as cores um pouco embaralhadas,
faixas incertas por certo anuançadas...
se precisar, derramarei num pires,
junto a uma mecha feita de quimera,
qual lamparina a iluminar a vasta espera...
(*) crepúsculo matutino, amanhecer
em paga luminosa 3
não obstante, ainda a emprego em outro uso,
pois decifrei como essa aurora interpretar
nas poucas letras do luso abecedar,
no silabário a compor-se em vasto fuso;
e dessas sílabas igualmente abuso,
novas palavras com elas a formar
e essa aurora que alcancei capturar
conservo integralmente e sem desuso,
que diariamente seus raios me condensa
em três sonetos multicoloridos
e cada faixa outra emoção completaria,
o etimológico inteiro ali se adensa
e então percebem os dedos surpreendidos
que o velho alforje nunca se esvazia...
ESPELHOS REFLETIDOS I – 15 dez 2019
Com um impulso veloz, estendo a
mão
e plena capturo a luz do sol.
Não me fugiu, eu sei, este
arrebol,
vejo em meus dedos a sua
projeção.
Mas se dobro meus
dedos em alçapão,
para prender na mão o fio de
escol
num fecho firme, em apertado
rol,
nada mais prendo que a decepção.
Porque a luz capturada é só um
espelho,
somente o que minha pele
refletiu:
o sol não fica oculto entre meus
dedos.
E em vão é que me agacho ou que
me ajoelho,
nessa armadilha que nunca ali
existiu,
para encerrar o sol nos meus
segredos.
ESPELHOS REFLETIDOS II
Mais fácil foi-me capturar a
aurora
que ao longo do horizonte se
estendia
e já no teto do céu tremeluzia,
pintalgando de cor a fauna e a
flora.
As mãos ergui ao vácuo dessa hora,
de cada nuvem um andaime me fazia
e a atmosfera a mim suportaria,
para me dar de si a luz do
outrora.
Mas já o sol no zênite acampado,
apenas ouro no círculo encantado,
nada encontrei que pudesse captar;
só em minha carne se espelhava o
astro,
bronzeada assim minha pele de
alabastro,
as próprias veias querendo
iluminar...
ESPELHOS REFLETIDOS III
Não é de fato a luz que em mim se espelha,
o que me queima vai além do
violeta,
o que me aquece e a emoção
completa
são raios gama picantes como
abelha,
a minha carne penetrando e a
deixar velha,
nesse veneno que o próprio sol
excreta,
a vida me transmite e a morte
afeta,
mas sobre a pele não recai sequer
centelha
e então eu fecho as mãos, inutilmente,
dentro dos punhos a guardar
somente escuro,
embora a pele e os ossos me
atravessem,
não essa luz que amo
ardentemente,
mas as peçonhas de que nunca me
curo,
até que em mim espelhar-se todas
cessem.
OLARIA I -- 16 DEZ 2019
inicialmente, quando lembras de olaria,
certamente em tijolos pensarás
ou de telhas talvez te lembrarás,
o barro negro que tuas casas construía.
havia um burro ou cavalo, que vivia
andando em torno, sem olhos para trás;
porque cenoura pendurada lhe darás,
que a alimária constante seguiria;
mas sendo presa à armação do freio,
quando mais ela avança, mais se afasta,
sem perceber tal ardilosidade;
mesmo porque foi atrelada a meio
em forte poste que raro se desgasta,
seguro guarda da circularidade...
OLARIA II
o barro assim sovado se retira
e se coloca sobre mesas longas,
dois oleiros enchem formas sem delongas,
cortando o excesso com arame em tira;
cuidado impede que algum deles se fira;
um auxiliar as recolhe em tábuas congas
e as distribui ao sol, sem songa-mongas,
de vez em quando seus recrutas gira...
assim o barro perde o excesso de umidade,
antes que seja levado para o forno,
com mais barro todo o exterior se recobria
e então os queimam, com operosidade,
sem permitir que algum lado fique morno:
xirca do campo como lenha serviria...
OLARIA III
já as telhas a requerer maior cuidado,
meio cilindro de forma a recebê-las;
mãos calejadas fácil podes vê-las
a alisar o grosso barro ali aplicado.
dizem antigos que em tempos do passado
eram as coxas que iriam acolhê-las,
com arames igualmente a remexê-las,
até o formato comporem desejado.
naturalmente, essas “telhas portuguesas”,
feitas a campo, não eram bem parelhas:
“feito nas coxas” tornou-se até ditado
e nos telhados provocariam incertezas,
sem se encaixarem totalmente as telhas,
umas às outras entrecobertas com cuidado!
OLARIA IV
Mas existem olarias bem mais nobres,
em que a mão delicada gira o barro,
formando ânfora, alguidar ou jarro
e quanto mais com que tua mesa cobres;
vermelha a argila só para os mais pobres,
branco esse grês da xícara que agarro,
pratos e copos cujos cacos varro,
muitas vasilhas na baixela que recobres;
urnas contendo cinzas funerárias,
cenotáfios vazios em monumentos
e as mil garrafas para nobre adorno
ou mesmo estátuas de posturas várias,
a resultar de cuidadosos movimentos,
ao compassado circular do torno.
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