O FIEL TROVADOR
EPISÓDIO HISTÓRICO DO SÉCULO DOZE,
ADAPTADO E VERSIFICADO POR WILLIAM
LAGOS
O FIEL TROVADOR I
Certo dia, na Alemanha, um usurário,
chamado Hans Schwartz, que emprestava
o seu dinheiro com enormes juros,
ouviu dizer que o castelão e mercenário,
por estranha missão que lhe confiava,
o Imperador da Áustria, serviços nada puros,
havia recebido um bom dinheiro...
E visitá-lo foi depressa o interesseiro!
Embora alguns insultos escutasse
e se forçasse a dar um bom desconto,
até foi fácil receber sua dívida,
em condição de que logo se afastasse,
indo acampar em bem diverso ponto,
ordenação de imediato obedecida;
porém se retirou com desconfiança:
E se armadilha em seu trajeto o alcança?
De fato, Hans ficara bastante surpreendido,
por receber seu juro e o principal,
sem encontrar dificuldade em demasia...
E se o dinheiro só lhe fora devolvido
para encontrar no caminho um vasto mal:
que lhe roubassem o quanto ele trazia,
mediante ordem do falso castelão?
E se um punhal lhe atravessasse o coração?
Já terminara a Terceira Cruzada,
sem que fosse coroada de sucesso;
muitos guerreiros haviam retornado
da Terra Santa, sem ganharem nada,
esfarrapados, famintos, sem o preço
de uma côdea de pão sequer ganhado...
Assim muitos se tornaram salteadores,
aos viandantes roubando seus valores...
O FIEL TROVADOR II
Hans caminhava do Danúbio pela margem,
após sair de Dürnstein, o castelo
em que fora demandar o seu dinheiro;
e de repente, uma figura bem selvagem
lhe apareceu, mostrando como selo
da bandidagem a ponta de um cutelo!
Queria fugir, mas não achou saída,
logo o estranho o levava de vencida!...
“Meu bom senhor,” suplicou o prestamista,
”tenho filhos, por favor, poupe-me a vida!
Algum dinheiro em minha bolsa eu trago...”
Cuidadoso, só um pouco estava à vista;
A maior parte muito bem escondida
dentro da roupa, gelado o seu afago...
Mas o homem não era um salteador,
nem um mendigo a pedir o seu favor.
O tal cutelo só era o braço de uma lira,
pois se tratava de um honesto menestrel,
cabelos louros de longo comprimento,
bastante alto, lá de cima o mira,
com olhar meigo e doce como o mel
e o saudou com garboso cumprimento:
“Não pretendo fazer-lhe qualquer mal
e nem ao menos lhe esmolo um só real...”
“Tenho fome, de fato, mas não peço
sequer que compartilhe o seu farnel...
Somente espero que me dê informação:
há um castelo por aqui, de bom apreço,
em que possa cantar um menestrel,
alojamento a receber e refeição?
Sou difusor da novel Gaia Ciência,
que apresento com vasta competência...”
O FIEL TROVADOR III
“Gaia Ciência, mas que coisa é essa?”
indagou o usurário, surpreendido,
muito aliviado por não estar sendo assaltado.
“São as novas canções, que amor não cessa
de inspirar a quem tenha bom ouvido...
pelos castelos eu canto e sou louvado...”
“Pensei que fosse um desses salteadores
que em nossa terra espalham mil terrores...”
“Dizem que vêm daquela santa Palestina,
com uma mão na frente e outra atrás...”
comentou Hans, com superioridade.
“São uns ladrões perdidos nessa sina!...”
“Também eu venho de lá...” – disse o rapaz,
“porém sou trovador, na realidade...
Também era El-Rei Ricardo um trovador,
que pela França demonstrou ser bom cantor...”
“Mas por que falas assim do Rei Ricardo?”
perguntou Hans, novamente desconfiado.
“Acaso o vieste por aqui a procurar...?”
“Quem sou eu, um mendicante e pobre bardo...
O que eu procuro é ser alimentado
por uma noite e pretendo isso pagar
com minha arte, pela qual já fui louvado,
alguma fama e certo mérito alcançado...”
“De arte realmente eu não entendo.”
Falou-lhe o interlocutor, àsperamente.
“Mas a uma légua daqui há um castelo;
escutar as tuas canções eu não pretendo,
eu sigo adiante, que o escute aquela gente...”
lhe desejou, em hipocrisia de gelo.
O menestrel deixou que ele passasse ,
antes que sobre a grama se assentasse...
O FIEL TROVADOR IV
“Ai, meu Ricardo, meu querido rei!”
Exclamou, a suspirar desconsolado.
“Será de fato que te assassinaram?
Por toda a França eu já te procurei
e em vão te busco na Alemanha, desolado...
Mas não desisto, meus cantos te chamaram
pelas planícies e pela alta encosta,
sem jamais ouvir de ti uma resposta...”
O caminhante chamava-se Blondel...
Blondel de Nèsle, já então famoso;
em uma feira, em concurso concorrido,
ganhara ele o prêmio e o seu laurel;
Ricardo, o rei, foi segundo, mas bondoso,
não se importara de haver então perdido,
reconhecendo Blondel como o melhor,
grandes amigos partilhando igual pendor.
Juntos cantavam e canções compunham,
um no alaúde, o outro nessa lira,
que a tiracolo transportava aonde ia;
nas Cruzadas quais guerreiros se dispunham,
mas no retorno, a maré dera uma gira
e assim Blondel no sul da Itália aportaria,
mas Ricardo, em outra nau, desembarcou
só em Veneza, onde alguém o raptou...
Traiçoeiramente, quando o quarto arrombaram
em que dormia, numa hospedaria,
sem que o rei se pudesse defender;
para o Duque Leopoldo o transportaram,
que a Henrique Sexto a seguir conduziria,
o Imperador da Áustria, que o quis submeter,
porém Ricardo afirmou se curvaria
somente a Deus, nunca ao homem que o prendia.
O FIEL TROVADOR V
Henrique percebeu bem que uma fortuna
pedir podia pelo real resgate:
cento e cinquenta mil marcos de bom ouro,
a renda inteira que em Inglaterra se reúna,
por três anos de tributo e de açafate...
De onde buscar um tão vasto tesouro?
No seu castelo de Worms o prendeu
e sua exigência ao regente remeteu!
Ora, o regente era o caçula, seu irmão,
chamado João Sem-Terra, que o invejava;
Eleonor de Aquitânia, sua mãe nobre;
William, o irmão mais velho, morrera em ação;
Seu irmão Henrique o pai logo nomeava
como herdeiro do trono. A sorte pobre
também o fez morrer nessa ocasião,
morto seu pai, herdou Ricardo a posição.
Mas governar Ricardo não queria:
nesses dez anos após tornar-se rei,
só seis meses conservou-se na Inglaterra,
mas nem por isso a coroa cederia
nem a sua mãe, Eleonor, consoante a lei
e pelo amor que a Ricardo mais se aferra;
ter João no trono jamais consentiria,
a sua regência nada mais que honra vazia...
O FIEL TROVADOR VI
E aconteceu que Ricardo só um filho
pôde gerar com suas muitas namoradas,
de Lady Faulconbridge, já viúva na ocasião,
que encaminhou pelo mais nobre trilho:
Phillippe de Cognac, mas não eram apreciadas
as bastardias para fins de sucessão (*)
e com sua esposa Berengária não gerara
qualquer prole que sua linhagem continuara.
(*) Nascimentos fora do matrimônio.
Mas descobrindo onde se achava prisioneiro,
o Duque de Nortúmbria e outros nobres,
o Conde de Longchamps, de Rosey o Marquês,
tentaram assaltar o castelo pegureiro (+),
mas seus sucessos foram bastante pobres
e finalmente, desistiram por sua vez;
após o assalto, transferiu-o o Imperador,
secretamente, a fortalezas de valor.
(+) Situado no alto de montanha.
Seguia o rei numa carroça de gado,
inteiramente fechada, escasso o ar,
de um castelo para outro poderoso;
pobre Ricardo, assim agrilhoado,
como mais tarde chegou mesmo a afirmar,
com tais correntes de peso tenebroso,
que nem jumento as poderia carregar
e nem cavalo as poderia rebentar!...
E desde então Blondel o procurara;
na Itália vendera a sua armadura
e seu inteiro equipamento militar;
as ricas roupas por comuns trocara,
nos castelos entoando com voz pura,
podendo seu pouco dinheiro conservar,
aos calabouços chegando de algum jeito,
para ver quem se achasse ali sujeito...
O FIEL TROVADOR VII
Uma canção que compusera com Ricardo
e que os dois apenas conheciam,
ele entoava, sem o menor sucesso...
Enquanto assim se esforçava o pobre bardo,
na Inglaterra ao resgate concorriam
pobres e ricos, com algum ingresso,
porém o irmão confiscava o que podia
e a vasta soma nunca se atingia!
E ali gemia Riccard le Quor de Lion,
como o chamavam na Occitana língua antiga
ou Coeur de Lion no vernáculo francês;
Richard Lionheart ou em lusitano tom
Ricardo Coração de Leão, em voz amiga,
durante séculos louvado por sua vez,
pois realmente foi guerreiro e foi valente,
tal apelido merecido certamente...
E ainda pensava em seu bom companheiro...
Seu alaúde lhe permitiram conservar,
no qual tocava, para afinar seu tom
e assim compunha, mesmo em cativeiro,
novas canções de engenho singular;
guardaram letras, mas perdeu-se o som,
como esta, em versão de um lusitano,
no alexandrino e ritmado afano:
“Sabei vós, ingleses, de Anjou e de Turenna,
por meu saber de que tendes peito bravo,
que pena agora me conserva a ser escravo
a quem apenas servirão trabalho e pena;
eis-me aqui, sem consolo a mim deixado,
neste castelo em que me têm cativo;
em tédio e tristeza o tempo inteiro vivo,
nionguém sabe como e onde sepultado!” (*)
(*) Adaptado de O Thesouro da Juventude.
O FIEL TROVADOR VIII
E enquanto o bom rei assim cantava,
mais que seus músculos conservando a voz,
passava o canto pela seteira estreita
e lá embaixo havia alguém que o escutava,
cansado e triste, com sua lira a sós...
Mas de onde brota esta canção perfeita?
Era Blondel que de Dürnstein se aproximava
e do que ouvia pouco ou nada acreditava...
Assim ao longo do fosso foi passando,
até chegar logo abaixo da seteira,
toda a dúvida aos poucos se esvaindo...
Então sua lira também rápido tocando,
a entoar de sua canção a estrofe primeira,
esperando que Ricardo, então a ouvindo,
reconhecesse para lhe dar continuação,
nestes termos de uma pobre tradução:
”Se em cabana do vale viverias,
enquanto eu fora ao monte me alojar,
qual rouxinol para mim responderias,
como ele canta em noite de luar?”
El-Rei Ricardo mal podia acreditar,
sentindo a voz embargada de emoção,
só conseguindo tanger seu alaúde,
para o canto ainda o tom a lhe falhar,
mas insistindo, sem hesitação,
nessa toada que a Blondel jamais ilude,
só o trovador a entendê-la totalmente,
já seu descante a soar-lhe mais potente:
“Se em cima do monte eu viveria,
enquanto fosses em tal vale morar,
cantar podia, igual que cotovia,
a copla bela para teu amor louvar!...”
Quase saltando, em seu contentamento,
Blondel de novo entoou a sua canção,
toda ela inteira, do começo ao fim;
e lá de dentro de seu compartimento,
a forte voz do Coração de Leão
cantou-a inteira, de igual modo assim!
Mas sem querer suspeitas despertar,
afastou-se Blondel, ainda a cantar!...
O FIEL TROVADOR IX
Partiu para a Aquitânia bem depressa,
do paradeiro informando a Eleonor,
indo a seguir dar notícia ao Chanceler,
William Longchamps, a quem confessa
toda a saga que cumprira em seu amor...
Mas do resgate se fazia mistér
e João regente até mandou oferecer
oitenta mil marcos para o rei não devolver!
Mas era ainda nobre o Imperador
e recusou tal dinheiro malfazejo;
com esforço, o resgate se reuniu,
vindo uma parte da Rainha Eleonor,
outra de Sancho de Navarra, benfazejo,
o sogro de Ricardo, que o remiu...
(Dizem que parte Robin Hood conseguiu
Do Sheriff de Nottingham, que o perseguiu).
Mesmo assim, dois anos se passaram,
até que enfim desembarcou o rei
no porto de Sandwich, às escondidas,
em que os esbirros de João não o alcançaram
e o Conselho da Coroa firmou lei
para segunda coroação, que comovidas
multidões acompanharam jubilosas,
sempre a louvar suas vitórias portentosas!
Mas alguns meses somente se passaram
e já Ricardo retornou para o combate:
João Sem-Terra se aliara ao rei da França,
ambos os quais os ingleses derrotaram;
nenhum percalço o coração abate
deste leão de tão grande pujança,
que assim governou mais cinco anos,
sempre em batalhas envolto nos afanos...
EPÍLOGO
Blondel, naturalmente, o acompanhava
e nas batalhas punha de lado a lira,
até que um dia ocorreu certa rebelião
e nessa luta, um virote o alvejava,
que uma balestra potente desferira (*)
e a ferida gangrenou sem remissão...
Isso ocorreu em mil cento e noventa e nove,
Blondel compondo elegia em que o louve...
(*) Pequeno arco de mola, cujos projéteis são os
virotes.
Mas fora a seta disparada por menino,
que sem temor do feito se gabou:
“Em combate morreram meu pai e meu irmão,
vim, portanto, vingar-me do assassino!”
Comovido, El-Rei Ricardo até o perdoou,
Com cem xelins o soltou, sem punição...
Assim morreu dos reis o mais famoso,
forte leão, mas de peito generoso!...
Foi o menino, contudo, emboscado,
seu prêmio todo logo retirado
e pela sua vitória executado...
E quanto a Phillippe de Cognac, o filho
único que nos deixou o rei,
por essas voltas que a vida dá,
foi eleito para suceder ao trilho
de Henrique Sexto, conforme a antiga lei,
Sete Eleitores na época então há
e Imperador Otto Quarto se tornou,
numa eleição que o Papa até aprovou!
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