sábado, 12 de dezembro de 2020


 

O FIEL TROVADOR

EPISÓDIO HISTÓRICO DO SÉCULO DOZE,

ADAPTADO E VERSIFICADO POR WILLIAM LAGOS

 

O FIEL TROVADOR I

 

Certo dia, na Alemanha, um usurário,

chamado Hans Schwartz, que emprestava

o seu dinheiro com enormes juros,

ouviu dizer que o castelão e mercenário,

por estranha missão que lhe confiava,

o Imperador da Áustria, serviços nada puros,

havia recebido um bom dinheiro...

E visitá-lo foi depressa o interesseiro!

 

Embora alguns insultos escutasse

e se forçasse a dar um bom desconto,

até foi fácil receber sua dívida,

em condição de que logo se afastasse,

indo acampar em bem diverso ponto,

ordenação de imediato obedecida;

porém se retirou com desconfiança:

E se armadilha em seu trajeto o alcança?

 

De fato, Hans ficara bastante surpreendido,

por receber seu juro e o principal,

sem encontrar dificuldade em demasia...

E se o dinheiro só lhe fora devolvido

para encontrar no caminho um vasto mal:

que lhe roubassem o quanto ele trazia,

mediante ordem do falso castelão?

E se um punhal lhe atravessasse o coração?

 

Já terminara a Terceira Cruzada,

sem que fosse coroada de sucesso;

muitos guerreiros haviam retornado

da Terra Santa, sem ganharem nada,

esfarrapados, famintos, sem o preço

de uma côdea de pão sequer ganhado...

Assim muitos se tornaram salteadores,

aos viandantes roubando seus valores...

 

O FIEL TROVADOR II

 

Hans caminhava do Danúbio pela margem,

após sair de Dürnstein, o castelo

em que fora demandar o seu dinheiro;

e de repente, uma figura bem selvagem

lhe apareceu, mostrando como selo

da bandidagem a ponta de um cutelo!

Queria fugir, mas não achou saída,

logo o estranho o levava de vencida!...

 

“Meu bom senhor,” suplicou o prestamista,

”tenho filhos, por favor, poupe-me a vida!

Algum dinheiro em minha bolsa eu trago...”

Cuidadoso, só um pouco estava à vista;

A maior parte muito bem escondida

dentro da roupa, gelado o seu afago...

Mas o homem não era um salteador,

nem um mendigo a pedir o seu favor.

 

O tal cutelo só era o braço de uma lira,

pois se tratava de um honesto menestrel,

cabelos louros de longo comprimento,

bastante alto, lá de cima o mira,

com olhar meigo e doce como o mel

e o saudou com garboso cumprimento:

“Não pretendo fazer-lhe qualquer mal

e nem ao menos lhe esmolo um só real...”

 

“Tenho fome, de fato, mas não peço

sequer que compartilhe o seu farnel...

Somente espero que me dê informação:

há um castelo por aqui, de bom apreço,

em que possa cantar um menestrel,

alojamento a receber e refeição?

Sou difusor da novel Gaia Ciência,

que apresento com vasta competência...”

 

O FIEL TROVADOR III

 

“Gaia Ciência, mas que coisa é essa?”

indagou o usurário, surpreendido,

muito aliviado por não estar sendo assaltado.

“São as novas canções, que amor não cessa

de inspirar a quem tenha bom ouvido...

pelos castelos eu canto e sou louvado...”

“Pensei que fosse um desses salteadores

que em nossa terra espalham mil terrores...”

 

“Dizem que vêm daquela santa Palestina,

com uma mão na frente e outra atrás...”

comentou Hans, com superioridade.

“São uns ladrões perdidos nessa sina!...”

“Também eu venho de lá...” – disse o rapaz,

“porém sou trovador, na realidade...

Também era El-Rei Ricardo um trovador,

que pela França demonstrou ser bom cantor...”

 

“Mas por que falas assim do Rei Ricardo?”

perguntou Hans, novamente desconfiado.

“Acaso o vieste por aqui a procurar...?”

“Quem sou eu, um mendicante e pobre bardo...

O que eu procuro é ser alimentado

por uma noite e pretendo isso pagar

com minha arte, pela qual já fui louvado,

alguma fama e certo mérito alcançado...”

 

“De arte realmente eu não entendo.”

Falou-lhe o interlocutor, àsperamente.

“Mas a uma légua daqui há um castelo;

escutar as tuas canções eu não pretendo,

eu sigo adiante, que o escute aquela gente...”

lhe desejou, em hipocrisia de gelo.

O menestrel deixou que ele passasse ,

antes que sobre a grama se assentasse...

 

O FIEL TROVADOR IV

 

“Ai, meu Ricardo, meu querido rei!”

Exclamou, a suspirar desconsolado.

“Será de fato que te assassinaram?

Por toda a França eu já te procurei

e em vão te busco na Alemanha, desolado...

Mas não desisto, meus cantos te chamaram

pelas planícies e pela alta encosta,

sem jamais ouvir de ti uma resposta...”

 

O caminhante chamava-se Blondel...

Blondel de Nèsle, já então famoso;

em uma feira, em concurso concorrido,

ganhara ele o prêmio e o seu laurel;

Ricardo, o rei, foi segundo, mas bondoso,

não se importara de haver então perdido,

reconhecendo Blondel como o melhor,

grandes amigos partilhando igual pendor.

 

Juntos cantavam e canções compunham,

um no alaúde, o outro nessa lira,

que a tiracolo transportava aonde ia;

nas Cruzadas quais guerreiros se dispunham,

mas no retorno, a maré dera uma gira

e assim Blondel no sul da Itália aportaria,

mas Ricardo, em outra nau, desembarcou

só em Veneza, onde alguém o raptou...

 

Traiçoeiramente, quando o quarto arrombaram

em que dormia, numa hospedaria,

sem que o rei se pudesse defender;

para o Duque Leopoldo o transportaram,

que a Henrique Sexto a seguir conduziria,

o Imperador da Áustria, que o quis submeter,

porém Ricardo afirmou se curvaria

somente a Deus, nunca ao homem que o prendia.

 

O FIEL TROVADOR V

 

Henrique percebeu bem que uma fortuna

pedir podia pelo real resgate:

cento e cinquenta mil marcos de bom ouro,

a renda inteira que em Inglaterra se reúna,

por três anos de tributo e de açafate...

De onde buscar um tão vasto tesouro?

No seu castelo de Worms o prendeu

e sua exigência ao regente remeteu!

 

Ora, o regente era o caçula, seu irmão,

chamado João Sem-Terra, que o invejava;

Eleonor de Aquitânia, sua mãe nobre;

William, o irmão mais velho, morrera em ação;

Seu irmão Henrique o pai logo nomeava

como herdeiro do trono.  A sorte pobre

também o fez morrer nessa ocasião,

morto seu pai, herdou Ricardo a posição.

 

Mas governar Ricardo não queria:

nesses dez anos após tornar-se rei,

só seis meses conservou-se na Inglaterra,

mas nem por isso a coroa cederia

nem a sua mãe, Eleonor, consoante a lei

e pelo amor que a Ricardo mais se aferra;

ter João no trono jamais consentiria,

a sua regência nada mais que honra vazia...

 

O FIEL TROVADOR VI

 

E aconteceu que Ricardo só um filho

pôde gerar com suas muitas namoradas,

de Lady Faulconbridge, já viúva na ocasião,

que encaminhou pelo mais nobre trilho:

Phillippe de Cognac, mas não eram apreciadas

as bastardias para fins de sucessão (*)

e com sua esposa Berengária não gerara

qualquer prole que sua linhagem continuara.

(*) Nascimentos fora do matrimônio.

 

Mas descobrindo onde se achava prisioneiro,

o Duque de Nortúmbria e outros nobres,

o Conde de Longchamps, de Rosey o Marquês,

tentaram assaltar o castelo pegureiro (+),

mas seus sucessos foram bastante pobres

e finalmente, desistiram por sua vez;

após o assalto, transferiu-o o Imperador,

secretamente, a fortalezas de valor.

(+) Situado no alto de montanha.

 

Seguia o rei numa carroça de gado,

inteiramente fechada, escasso o ar,

de um castelo para outro poderoso;

pobre Ricardo, assim agrilhoado,

como mais tarde chegou mesmo a afirmar,

com tais correntes de peso tenebroso,

que nem jumento as poderia carregar

e nem cavalo as poderia rebentar!...

 

E desde então Blondel o procurara;

na Itália vendera a sua armadura

e seu inteiro equipamento militar;

as ricas roupas por comuns trocara,

nos castelos entoando com voz pura,

podendo seu pouco dinheiro conservar,

aos calabouços chegando de algum jeito,

para ver quem se achasse ali sujeito...

 

O FIEL TROVADOR VII

 

Uma canção que compusera com Ricardo

e que os dois apenas conheciam,

ele entoava, sem o menor sucesso...

Enquanto assim se esforçava o pobre bardo,

na Inglaterra ao resgate concorriam

pobres e ricos, com algum ingresso,

porém o irmão confiscava o que podia

e a vasta soma nunca se atingia!

 

E ali gemia Riccard le Quor de Lion,

como o chamavam na Occitana língua antiga

ou Coeur de Lion no vernáculo francês;

Richard Lionheart ou em lusitano tom

Ricardo Coração de Leão, em voz amiga,

durante séculos louvado por sua vez,

pois realmente foi guerreiro e foi valente,

tal apelido merecido certamente...

 

E ainda pensava em seu bom companheiro...

Seu alaúde lhe permitiram conservar,

no qual tocava, para afinar seu tom

e assim compunha, mesmo em cativeiro,

novas canções de engenho singular;

guardaram letras, mas perdeu-se o som,

como esta, em versão de um lusitano,

no alexandrino e ritmado afano:

 

“Sabei vós, ingleses, de Anjou e de Turenna,

por meu saber de que tendes peito bravo,

que pena agora me conserva a ser escravo

a quem apenas servirão trabalho e pena;

eis-me aqui, sem consolo a mim deixado,

neste castelo em que me têm cativo;

em tédio e tristeza o tempo inteiro vivo,

nionguém sabe como e onde sepultado!” (*)

(*) Adaptado de O Thesouro da Juventude.

 

O FIEL TROVADOR VIII

 

E enquanto o bom rei assim cantava,

mais que seus músculos conservando a voz,

passava o canto pela seteira estreita

e lá embaixo havia alguém que o escutava,

cansado e triste, com sua lira a sós...

Mas de onde brota esta canção perfeita?

Era Blondel que de Dürnstein se aproximava

e do que ouvia pouco ou nada acreditava...

 

Assim ao longo do fosso foi passando,

até chegar logo abaixo da seteira,

toda a dúvida aos poucos se esvaindo...

Então sua lira também rápido tocando,

a entoar de sua canção a estrofe primeira,

esperando que Ricardo, então a ouvindo,

reconhecesse para lhe dar continuação,

nestes termos de uma pobre tradução:

”Se em cabana do vale viverias,

enquanto eu fora ao monte me alojar,

qual rouxinol para mim responderias,

como ele canta em noite de luar?”

 

El-Rei Ricardo mal podia acreditar,

sentindo a voz embargada de emoção,

só conseguindo tanger seu alaúde,

para o canto ainda o tom a lhe falhar,

mas insistindo, sem hesitação,

nessa toada que a Blondel jamais ilude,

só o trovador a entendê-la totalmente,

já seu descante a soar-lhe mais potente:

“Se em cima do monte eu viveria,

enquanto fosses em tal vale morar,

cantar podia, igual que cotovia,

a copla bela para teu amor louvar!...”

 

Quase saltando, em seu contentamento,

Blondel de novo entoou a sua canção,

toda ela inteira, do começo ao fim;

e lá de dentro de seu compartimento,

a forte voz do Coração de Leão

cantou-a inteira, de igual modo assim!

Mas sem querer suspeitas despertar,

afastou-se Blondel, ainda a cantar!...

 

O FIEL TROVADOR IX

 

Partiu para a Aquitânia bem depressa,

do paradeiro informando a Eleonor,

indo a seguir dar notícia ao Chanceler,

William Longchamps, a quem confessa

toda a saga que cumprira em seu amor...

Mas do resgate se fazia mistér

e João regente até mandou oferecer

oitenta mil marcos para o rei não devolver!

 

Mas era ainda nobre o Imperador

e recusou tal dinheiro malfazejo;

com esforço, o resgate se reuniu,

vindo uma parte da Rainha Eleonor,

outra de Sancho de Navarra, benfazejo,

o sogro de Ricardo, que o remiu...

(Dizem que parte Robin Hood conseguiu

Do Sheriff de Nottingham, que o perseguiu).

 

Mesmo assim, dois anos se passaram,

até que enfim desembarcou o rei

no porto de Sandwich, às escondidas,

em que os esbirros de João não o alcançaram

e o Conselho da Coroa firmou lei

para segunda coroação, que comovidas

multidões acompanharam jubilosas,

sempre a louvar suas vitórias portentosas!

 

Mas alguns meses somente se passaram

e já Ricardo retornou para o combate:

João Sem-Terra se aliara ao rei da França,

ambos os quais os ingleses derrotaram;

nenhum percalço o coração abate

deste leão de tão grande pujança,

que assim governou mais cinco anos,

sempre em batalhas envolto nos afanos...

 

EPÍLOGO

 

Blondel, naturalmente, o acompanhava

e nas batalhas punha de lado a lira,

até que um dia ocorreu certa rebelião

e nessa luta, um virote o alvejava,

que uma balestra potente desferira (*)

e a ferida gangrenou sem remissão...

Isso ocorreu em mil cento e noventa e nove,

Blondel compondo elegia em que o louve...

(*) Pequeno arco de mola, cujos projéteis são os virotes.

 

Mas fora a seta disparada por menino,

que sem temor do feito se gabou:

“Em combate morreram meu pai e meu irmão,

vim, portanto, vingar-me do assassino!”

Comovido, El-Rei Ricardo até o perdoou,

Com cem xelins o soltou, sem punição...

Assim morreu dos reis o mais famoso,

forte leão, mas de peito generoso!...

 

Foi o menino, contudo, emboscado,

seu prêmio todo logo retirado

e pela sua vitória executado...

 

E quanto a Phillippe de Cognac, o filho

único que nos deixou o rei,

por essas voltas que a vida dá,

foi eleito para suceder ao trilho

de Henrique Sexto, conforme a antiga lei,

Sete Eleitores na época então há

e Imperador Otto Quarto se tornou,

numa eleição que o Papa até aprovou!

 


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