quinta-feira, 24 de dezembro de 2020


 

 

      ARGÔNIO I – 24 FEV 2020 

 

        entre os gases que respiro, está o argônio,

        um desses gases que apelidaram nobres;

        entre as flores que vejo, dos mais pobres

        são os corimbos do humilde pelargônio.

 

        serão seis, hélio, argônio, kriptônio,

        se por acaso os outros seis me cobres,

        em tua premência exigindo até que dobres,

        serão neônio, radônio e enfim xenônio...

 

        dependendo do lugar ou do momento:

        chamam também de gerânio e de malvão,

        mas o gerânio me desperta sentimento

 

        por seu perfume humilde e meio agreste

        e pelas flores desfolhadas com que despe

        o veludo de suas pétalas ao vento...

 

      ARGÔNIO II

 

        por “kriptônio” entende-se “escondido”,

        do grego kryptos, que ainda “falso” pode ser;

        a língua helênica pretendia ter poder

        de o nome dar a quanto é conhecido...

 

        e certas vezes, foi o nome produzido

        para indicar, antes até de conhecer,

        categoria ou sentimento que se quer

        dominar por esse nome que é atribuído...

 

        mas quem já leu revistas em quadrinhos

        conhece o Super-Homem e sua fraqueza,

        essa pedra que chamaram kryptonita,

 

       de seu planeta, Krypton, os pedacinhos,

       a lhe roubarem os poderes que ele preza,

       sua Lois Lane deixando toda aflita!...

 

      ARGÔNIO III

 

       naturalmente, o antigo roteirista,

       por acaso, ouviu falar em kriptônio,

       mas conhecendo somente o gás neônio

       para o nome de seu planeta teve a pista...

 

        pois tantos comerciais a gente avista,

        das ruas da cidade o patrimônio,

        em cores de néon, porém não de argônio,

        de outros tantos tem o flúor a conquista...

 

       de fato, o argônio é bem mais abundante,

       quase um por cento da gasosa atmosfera,

       muito empregado também para soldagem;

 

       mas tambem o pelargônio é bem constante

       e respirando argônio não se altera,

       humildes cores mostrando com vantagem...

  

AMORES VELHOS I – 25 FEV 20

se às vezes falo dos amores velhos,

cujas faces até somem da memória,

não julgues que me porto como a escória

que tem prazer em olhar-se nos espelhos.

 

não o meu rosto, recordo seus artelhos,

em doce suavidade persuasória,

da gentileza talvez mais merencória

do contorno curvilíneo de seus joelhos...

 

não se trata de gabar-me de quem tive;

bem ao contrário, sinto é gratidão:

que, por instantes, o seu coração

 

compartilhassem comigo quando estive

gozando a dádiva quase incompreensivel:

que me quisessem nesse instante incrível!

 

AMORES VELHOS II

 

pois guardarei, enquanto a mente vive

cada momento dessa obscura glória

e se me olho, busco na memória

de quem o traço que na face sobrevive,

 

sei cada amor do passado em mim revive

uma marca no rosto de sua história,

alguma marca talvez peremptória,

alguma marca que talvez se esquive,

 

mas todas me marcaram de algum modo,

nunca se fica incólume ao amor,

quer seja amargurado ou então feliz,

 

e nesse espelho já marcado pelo lodo,

encontro aqui beijo leve e sem ardor

e noutro ponto esse beijo que mais quis.

 

AMORES VELHOS III

 

será que também nelas deixei marca

e se as buscam ainda com temor

ou na esperança de conservar calor

daquele instante que só o antanho abarca?

 

será que encontram pingente de uma parca

memória ardente destituída de favor,

memória pálida de apenas amador

que não as soube amar em tal fuzarca?

 

adolescente apenas nesse instante,

tal quais adolescentes também eram,

uma ou outra qualquer mais experiente,

 

será que buscam na derme do semblante

qualquer ciúme ou rancor do que fizeram

para deixar-me e depois seguir em frente?

 

DEUSES VELHOS I – 26 FEV 2020

 

Versos estranhos até a meus próprios olhos

São estes que te escrevo e não te mando,

Na ladainha de salmos, o mais nefando

Dos sacrifícios jogados aos escolhos...

Mas se ao menos te enviasse estes meus fólios!

Porém não saberás por onde ando,

Nem a quem posso estar meus versos dando:

Meu coração não quer tesouros nem espólios,

Aos quais não busco, pois sequer ainda espero

Ou jamais pombas imolo à idolatria,

Que os mortos deuses meu sonho satisfaçam;

Tão somente te escrevo e nada gero,

Nem ao menos que num passe de magia

Essas lembranças de teus beijos se refaçam.

 

DEUSES VELHOS II

 

Não construí para mim um ziggurath.

Como Nimrod, os céus a desafiar;

Com pedras brutas nunca ergui altar

Que aos sacrilégios servisse como engate;

Meu logros todos guardei num açafate,

Feito de vime, em que os possa perscrutar;

De quando em vez, algum fracasso vou buscar,

Seus arames a entortar com alicate...

Talvez acerte assim a forma certa

Que aceitariam os deuses dos sumérios,

Ou me levasse a cruzar ponte dos germanos,

Essa Bifrost para mim jamais aberta,

Não sou herói com tantos despautérios,

Brunhilde busca só guerreiros soberanos.

 

DEUSES VELHOS III

 

Mesmos aos quetônicos deuses mais antigos (*)

Não ergo preces, qual no passado não ergui,

De uma deusa só o amor pedi

E só a ela ofereci meus dons mendigos;

Nem flores deporei nesses jazigos

Dos deuses novos que não reconheci:

Nenhum dos santos ou madonas escolhi,

Somente os deuses da Trindade meus amigos...

Mandei a ela um puro amor de idolatria,

Em tola súplica por beijos e carinho,

Essa que um dia tripudiou no meu caminho

E nestes versos mostro plena minha heresia,

Pois com rascunhos ergui minha catedral:

Frases de pedra muito além do bem e mal.

(*) Deuses ctônicos, de Cthon, a Profundeza da Terra.

 

SONHO VELHO I – 27 FEV 20

 

Vivem os sonhos no interior de minha cabeça,

São inacessíveis e não podem se tocar;

Mas com um sonho consigo conversar,

Com seus sorrisos a responder não cessa;

Desde que te encontrei, não mais se engessa

Sonho de ouro em argamassa a transformar;

És sonho vivo e contigo posso andar

E tua opinião escutar sempre que a peça...

Sei que é provável que julguem ser bisonho

Este colóquio meu com sonho antigo,

Que descobri na gaveta de escaninho;

Que ninguém mais dialogar possa com sonho,

Porém este a que na mente dei abrigo

Mantém diálogo entre a razão e o seu carinho.

 

SONHO VELHO II

 

O fato é que este sonho é quase antigo

Quanto sou eu – é um sonho adolescente,

Amassado contra o fundo permanente

Desse escaninho, não cresceu comigo.

Ficou sozinho, realmente num jazigo,

Porém sem morto ser e nem vivente,

Memória apenas de um ideal luminescente...

Mas encontrado, demonstrou-se ser amigo

E conversamos sobre décadas passadas,

De fato, em outro século inseridas,

Que eu, realmente, nasci na maior guerra,

Nasceu o sonho entre as Coréias deflagradas,

Por soldadinhos de chumbo repetidas,

Nesses desfiles que minha infância encerra.

 

SONHO VELHO III

 

Contudo, nem eu, nem ele percebemos

Que fora essa prisão que o conservou

No fundo do escaninho ele se achou,

Não fez-se múmia quando nos perdemos,

Em hibernares permaneceu pequenos

E desse modo mais velho não ficou:

À sua maneira, também ele sonhou,

Sonhos de sonho em oníricos acenos...

Pois quando veio à luz, compartilhou

E em tal confabular dialogamos,

A adolescência qual tapete me estendeu...

Mas cada dia de minha vida retornou

E ao lhe contar, enfim, meus desenganos,

O pobre sonho, pouco a pouco, envelheceu...

DIMENSÕES DO SORRISO I – 28 fev 20

 

Há muitas formas de se mostrar sorriso,

na maior parte, em dimensões sociais,

sorrindo a gente por motivos materiais,

alguma vez um arreganho até de aviso,

 

que se demonstra claramente nesse inciso,

mas carrancas contravenções serão fatais,

quer seja um olhar escuro por demais,

enquanto os lábios falseiam esse riso.

 

Existe um de tal modo incisivo,

os lábios ao redor arreganhados,

é mais um meio de exibir a dentadura,

 

nele o orgulho plenamente ativo,

vaidade e falsidade revelados,

bem ao contrário de mostrar sua formosura.

 

DIMENSÕES DO SORRISO II

 

Não é o sorriso um costume universal,

algumas vezes até sugere uma ameaça

mostrar-se os dentes, tal como a fera espaça

nos intervalos entre rugido mais formal...

 

já muito explorador sofreu tal mal,

por ter sorrido para tribo por que passa:

há uma surpresa e talvez, por sua desgraça,

logo uma lança se brande triunfal.

 

É bem difícil esse mal se diluir,

mal-entendidos mesmo entre nós surgem,

por um sorriso a falsidade introduzir,

 

igual que o beijo mais hollywoodiano,

contra o qual as convenções se insurgem

e só o cinema o difundiu sem maior dano...

 

DIMENSÕES DO SORRISO III

 

A gente pode sorrir por simpatia,

ao contemplar as travessuras de criança;

para uma flor sorriso igual se alcança,

para o sol posto que ao horizonte se irradia,

 

para um livro em que frase se leria,

para música suave de esperança...

e algum sorriso existe sem bonança,

ao se saber que desafeto algo sofria...

 

Existe mesmo sorriso até de medo,

que se mostra contra quem nos assedia,

ou um sorriso de irônico segredo,

 

ante a tolice que um amigo cometia

ou o sorriso lunar em seu albedo

quando da Terra um sorriso pressentia..

 

DIMENSÕES DO SORRISO IV

 

Mas nem todo sorriso é desonesto,

nem tampouco ante o espelho praticado;

com dimensões outras é empregado,

para um estranho um sorriso mais modesto,

 

para um amigo um sorriso bem mais lesto,

para um amor um sorriso apaixonado,

para um filho um sorriso deliciado,

para os irmãos, geralmente, sendo honesto.

 

Mas entre todos os sorrisos vejo o teu,

até mesmo se ante o espelho me debruço

e se meu rosto um tanto desagrada,

 

mostro ao reflexo um sorriso meu,

para o teu rosto maior sorriso aguço,

que só se pode mostrar à bem-amada...

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