sábado, 27 de março de 2021


 

 

A NESGA DO SEMBLANTE I – 23 MAR 2021

 

Uma nesga de céu apenas, na vidraça,

totalmente estriado o firmamento,

faixas plúmbeas e rosas num momento,

a malva em creme de entremeio passa;

aos poucos, essas faixas com que abraça

o céu em roda nas nuvens sem alento,

vai-se esgotando ao fim do julgamento,

o dia morre, o negrume vem e grassa.

 

Não vou dizer que a vida passa igual,

quantos disseram o mesmo lá no antanho?

Apenas digo que os meus dias se alongaram

e ao invés de escurecer, esse final

ainda mostra furtacores de arreganho

qual desafio às horas que passaram.

 

A NESGA DO SEMBLANTE II

 

A mesma nesga de luz pela janela

ainda permanece.  O mais estranho

é que entre o cobalto e fios de estanho,

tremula a faixa rósea em triste vela;

não é branca a nuance que traz nela,

é carmesim que em cinza toma banho,

na renitência de guardar último ganho,

antes que a cor se esfaça toda dela.

 

Comigo será assim. Minha esperança,

infundada que seja, eu levarei ao fim:

entre o negrume não empalidecerei,

mas guardarei rubor que a vida alcança

até o ofego derradeiro e assim

só no último suspiro apagarei.

 

A NESGA DO SEMBLANTE III

 

Nós constituímos o Povo da Mudança:

nenhum animal deste modo se transforma;

talvez sim, por sob o pelo que o adorna,

mas nada que se veja igual alcança

o rosto humano, que de mudar não cansa;

durante a infância, a alma toma forma

e se revela do rosto na bigorna

com que recebe os golpes dessa dança.

 

Então por certas décadas, apenas

é o mesmo rosto para a maioria,

desde que evitem o sol e muito vento;

comigo conservou-se mais dezenas,

só no último lustro me pungia

a constante expressão do sentimento.

 

A NESGA DO SEMBLANTE IV

 

Ainda é o rosto que anteriormente tinha,

os mesmos olhos, a boca, igual nariz,

a mesma barba que conservar eu quis,

mesmo aos poucos colorida de farinha;

mas há rugas onde era pequeninha

a leve marca das coisas que já fiz;

meu rosto foi da vida o almofariz,

sua expressão aos poucos se abespinha.

 

Aquela nesga de luz pela janela

luta teimosa até chegar a noite,

pois sabe que amanhã retornará;

enquanto a nesga que o semblante me revela

aos poucos muda em paulatino afoite

e igual à antiga jamais se mostrará.


A ILUSTRAÇÃO APENAS IDENTIFICADA

COMO VINTAGE 1900.


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