sábado, 6 de março de 2021


 

 

MUDEZ ELÉTRICA I   (2008)

 

Que pensa o pão, quando ele é devorado?

Que pensa a água, quando ela é deglutida?

Que pensa a besta, na hora em que é abatida?

Que pensa o trigo, mo minuto em que é ceifado?

 

Que pensa a chama, quando é extinguida?

Que pensa o ar, quando se vê aspirado?

Que pensa o solo, quando é pisoteado?

Que pensa a chuva, quando é corrompida?

 

Que pensa o inseto, sempre que esmagado?

Que pensa a luz que gastamos ao olhar?

Que pensa o som que acabamos de escutar?

 

Que pensas tu, ao seres explorado?

Que pensas tu, no momento de pagar?

Que pensas tu, se te executam devagar?

 

MUDEZ ELÉTRICA II  (11/12/2009)

 

Como é fácil alguém achar-se nobre,

quando discorda do que quer a maioria!...

Quanta vaidade em tal certeza fria,

quanto desprezo por aquilo que é mais pobre!

 

Como é fácil afirmar que se recobre

uma amplidão maior no dia a dia,

quando se pensa saber que mais se cria

que a mente alheia conseguir descobre!

 

Eu cá sei muito bem não ser melhor

do que os demais.  Percebo-me escolhido

por um poder maior que assim me guia.

 

Qual seja esse poder, eu sou menor,

não mais que carpinteiro tenho sido,

juntando as peças e a martelar poesia.

 

MUDEZ ELÉTRICA III

 

Desespero, companheiro de minha vida,

suave tantas vezes... mais intenso

em tal suavidade; e hipertenso

nesse momento em que assisto a despedida

 

de mais uma ilusão, outra acolhida

a que alimentei, vesti, mostrei-lhe a crença

por onde andar devia, caso sua imensa

exaltação quisesse retribuída,

 

pelo que tinha a dar.  Porém é ingrata

cada ilusão.   Fiel é o desespero:

elas se vão, uma a uma, sem me olhar.

 

Só permanece comigo quem me mata;

da zombaria meu alegre companheiro,

que ao sepulcro irá flores me levar...

 

MUDEZ ELÉTRICA IV – 9 fevereiro 2021

 

Perguntou a romãzeira à jardineira:

"Por que rosas não tens em teu jardim?"

"Tenho petúnias, hortênsias, de jasmim

mais de uma qualidade, romãzeira..."

 

E retornou a romãzeira, a quem cuidava

desse jardim, em que se erguia esguia:

"Mas rosas eu não vejo, noite e dia,

será que a rosa tão depressa espetalava...?"

 

E respondeu-lhe a dama do canteiro:

"Não quero rosas, porque têm espinho

e seu perfume é muito enganador...

 

Prefiro as flores cujo odor eu cheiro,

sabendo que amanhã darão carinho,

enquanto a rosa emurchece no calor..."

 

MUDEZ ELÉTRICA V

 

Tenho certeza de que a certeza apenas

é uma incerteza...   De tudo duvidar

me serve de consolo, em meu andar,

pois não preciso acreditar nas penas

 

por que passei e passo, por centenas,

que me fizeram a alma estilhaçar.

Se duvidas das penas, lamentar

não mais precisas...  São somente as cenas

 

de uma peça mal posta no cenário,

que foi boa de assistir, mas não durou,

depois que do teatro me afastei...

 

E assim amor, o dote multifário,

em que não creio, nunca me magoou,

nas vezes em que outrora o experimentei.

 

MUDEZ ELÉTRICA VI

 

Amor é um dote qual pão consagrado;

amor é o líquido de qualquer aguada;

amor é a besta por faca desventrada;

amor é o trigo no coração ceifado;

 

amor é a chama por nós sendo assoprada;

amor é o ar do céu por nós furtado;

amor é o solo sob o pé do ser amado;

amor é a chuva nas costas ensopada;

 

amor é o inseto por nós desprezado;

amor é a luz que permite o enxergar;

amor é o som melódico a escutar;

 

amor é o corpo por nós sendo explorado;

amor é o ventre quando penetrado;

amor é o órgão desse penetrar...

 

MUDEZ ELÉTRICA VII – 10 fev 2021

 

É o pão do amor que nos tem devorado

quando pensamos tomá-lo para nós;

amor é o pão que nos amarra em nós,

quando pensamos tê-lo desatado;

 

amor é o pão supérfluo do pecado,

quando o notamos, já estamos sós;

amor é o esmagamento de mil mós

em que esse pão do amor é esfarinhado;

 

amor é a água contida na saliva,

que mais que qualquer outra dessedenta,

nesse perigo do beijo irresistível;

 

amor é a água contida em boca esquiva,

nesse momento feito de tormenta,

mais do que qualquer outro perecível...

 

MUDEZ ELÉTRICA VIII

 

Amor é a carne semi-decepada

nesse momento em que termina o beijo;

amor é a alma de suspenso adejo,

nesse momento em que de outra foi cortada;

 

amor é a lástima da chispa condenada,

final momento de saudade e pejo;

amor é o sentimento em que me aleijo,

quando minha espera é reduzida a nada;

 

amor é o tempo terrível de um momento

em que a alma inteira explode num botão,

suas pétalas a reluzir em sacramento;

 

amor é a arritmia dentro ao coração,

essa falta de ar cheia de alento,

que reverdesce dentro do pulmão...

 

MUDEZ ELÉTRICA IX

 

Amor é a peculiar exultação

do poema suspirado na mudez;

amor é só palavra de prenhez,

emaranhada em vinhas de emoção;

 

amor é essa nudez da aceitação

que descorrompe o ato que se fez,

o choque elétrico da primeira vez,

transmutado em gentil eletrocução;

 

amor destarte é a tal mudez elétrica,

em que somos percorridos como fios,

a luz azul que dança nos mamilos;

 

a fé perfeita de uma vida cética,

postos de lado os valores mais sombrios,

o pão trazido de escondidos silos...

 

MUDEZ ELÉTRICA X – 11 fev 21

 

Amor é a punhalada mais profunda,

esse grito pungente da mudez,

elétrico arrepio ante a nudez,

lança de mim em tal lagoa funda,

 

que nos afaga de emoção jocunda,

que nos enterra em indolente grês,

que a vida matou e logo após refez,

louca emoção sistêmica e corcunda;

 

amor é retilínea e franca nitidez,

melíflua e sorrateira como gata,

em seu disfarce de quem nada quer,

 

no destemor de qualquer desfaçatez,

que todo o resto do mundo desacata,

pena do homem e anseio da mulher!...

 

MUDEZ ELÉTRICA XI

 

É nesse amor que a alma nos recobre,

que se reveste de vestes de nobreza,

que nos disfarça as nuances da vileza,

amor egoísta de um tesoureiro pobre;

 

correspondido, é como um sino em dobre

a quem ao lado não tem igual certeza:

dois são felizes em jóia de pureza,

gozada inteiramente, sem que sobre

 

ao menos para outro igual ventura,

mas amor correspondido tem um preço

que não é pago pelos dois amantes,

 

mas que nalma de terceiros se pendura,

ao invés de ouro, um coração de gesso,

nesse terceiro ponteiro dos instantes...

 

MUDEZ ELÉTRICA XII

 

Caso esta série, amiga, te chocou,

não há nada de espantar: amor é choque,

na elétrica mudez do ausente toque

desses lábios que somente outrem beijou;

 

mas mesmo quando desilusão se achou,

ainda é belo o amor em tal enfoque,

nesse desdém escarlate de remoque,

brilha o rubi de quem sabe que amou;

 

mudez elétrica de quem não confessou

a intensidade de sua palpitação,

que lhe traria, talvez, felicidade...

 

Mas que no choque da mudez ficou,

tendo o consolo tão só dessa ilusão

a que costumam apelidar “saudade”!...

 

A SOLIDÃO PATERNA 1 – 12 FEV 21

 

Às vezes penso que o velho Pai Adão,

Que os nomes deu a tantos animais,

Denominando igualmente os vegetais,

Se ressentia por não ter irmão!...

 

Narra uma lenda que Deus criou Lilith,

Anteriormente que surgisse Eva;

Que foi Adão pai de monstros não se atreva

Qualquer gaiato falar que a troça incite;

Mas essa lenda tem também outra versão:

Que Lilith concebeu monstros de fato

E que então vivia com Adão nesse boato,

O que me deixa com certa inquietação!

 

O Pentateuco não menciona, é bem verdade,

Essa Lilith desprezada por Adão,

Registra apenas a primeira geração

Dos ancestrais de nossa humanidade;

Mas depois que Adão foi operado,

Dele saiu sua legítima mulher

E os filhos que ela teve a gente quer

Terem saído igualmente de seu lado!...

 

A SOLIDÃO PATERNA 2

 

Desse modo, o Pai Adão foi mãe e pai,

Essa costela de seu ventre fazia parte,

Mas de tais comentários não se farte

A tropa humana que pelo mundo vai!...

 

E sempre existe a confusão do umbigo:

Teria sido moldado nesse barro

Essa marca que marcou o nosso jarro,

Que cada um de nós porta consigo?

Ou Adão só ostentava um ventre liso,

Por jamais ter cordado o umbilical?

Teria Deus por motivos de ritual,

Posto Seu dedo em tal lugar preciso?

 

Só assim Adão nasceria com tal marca,

Sendo de Deus à semelhança e imagem;

Teria Deus feito então a perfuragem

Que até Seu corpo divinal abarca?

Ou o Pai Adão seria desprovido

Desse sinal a indicar mortalidade:

Todo o que nasce perece em certa idade,

Também o Gólem que por Jeová foi esculpido?

 

A SOLIDÃO PATERNA 3

 

Em parte alguma encontrei informação

De que sendo ele criado por Judeus,

Um umbigo lhe pusessem esses seus

Criadores ao lhe darem formação!...

 

Porque o Gólem é de barro igual Adão,

Do pó da terra, segundo as Escrituras;

Sendo criado por mãos divinas puras,

Qual foi o líquido acrescentado na ocasião?

É bem provável que os rabinos do Talmude

Já tenham esclarecido esta questão;

Desconhecidos para mim contudo são,

Só sei das letras que o protegem de olhar rude!

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