quarta-feira, 31 de março de 2021


 

DESCARTE I – 27 mar 2021

 

Eu nem devia sequer mandar mais versos:

amor se foi inteiro, só me resta a nostalgia,

integumentos de sangue, capilares de poesia

vilosidades dos gânglios, tumores reconversos,

meus pensamentos neurais em redes mil dispersos

a brotar do paladar, que o olhar não desconfia,

estão mudos meus ouvidos, abstinência fria,

longos anos de plantio em metáforas conversos.

 

Ainda assim eu temo que minhas mágoas interpretes

quais pedidos desse amor que o coração deseja,

não saem gritos de paixão da boca costurada;

nem sequer te conheço, meus versos em confetes

são hemácias de meu sangue em harpa cadenciada

enquanto minha saliva tão só o teclado beija.

 

DESCARTE II

 

Per aspera ad astra, nos quer velho ditado,

em verso tão antigo, por Romanos consagrado

já há vários milênios, que enfim foi abraçado

pelos pais fundadores de escola militar;

pela aspereza sempre podemos alcançar

as máximas alturas, estando lado a lado

com os mais bravos e fortes, assim escalonado

o abismo do estelar em sendeiro descartado.

 

Contudo, embora tendo também minhas incertezas,

eu prossegui em frente, na ardência suspirando,

mas em cada precipício eu sei que fui deixando

parte integrante e bem real de minhas certezas,

na construção das pontes contra o olvido,

até que o resto final de mim tenha perdido.

 

DESCARTE III

 

Sempre é possível recobrar um fragmento

e nele achar alguns versos escondidos,

embora ungidos por um forte linimento,

para azeitar o molinete dos vencidos,

rodando as carretilhas em algum padecimento,

para puxar a mim mesmo, em gestos comedidos,

para fora dos poços de incerto julgamento,

as metáforas tomando de sonhos já perdidos.

 

Ao emergir do poço, estou no Mar Oceano,

longe das Ilhas dos Bem-Aventurados,

em que um dia aportara São Brandão;

mas a vaga não escorre para o turbilhão,

ela me leva ao tabuleiro dos tornados

e ali restaura o que sobrou da inspiração.

 

DESCARTE IV

 

Houve tempo que escrevia as linhas percutidas

em qualquer lugar em que estivesse de passagem,

qualquer reflexo a projetar nova miragem,

qualquer momento de minhas penas repetidas,

até trazia comigo, amarfanhadas e sem vidas,

umas adagas de papel para escalpelar paisagem,

as unhas me serviam e cozinhava a beberagem

na hemoptise de ideias que dançavam incontidas.

 

Guardei tantos milhares de cigarras malferidas

no fundo de algibeiras, esperando aceitação,

pirilâmpicos pendores, sem qualquer destino certo

e só as recobro agora, sem canto, ressequidas,

na diálise do papel, nenhum dom do coração,

sangria de minha alma, a fluir do peito aberto.


Um comentário:

  1. Boa tarde. Li no e mail e relo aqui. Sonetos muito belos e sentidos. Parabéns

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