segunda-feira, 8 de março de 2021


 

 

PÉTALAS DE MAGOA I – 21 FEV 21

 

Antes que esse galo cante, três vezes me negarei,

já me traí a mim mesmo ao longo desses anos,

decerto traí outros no correr dos desenganos,

mas por trair a mim mesmo eu nunca me perdoei.

Mil vezes mordi os lábios, mil vezes me desviei,

a minhalma amortalhei no flébil verdor dos panos,

meu sarcófago está cheio de lesmas e de enganos,

fiz-me poeira adormecida nesses ossos que cremei.

Através da longa vida, dormi pouco e só sonhei

o quanto podia ter sido, quantos brilhos reneguei,

só espero cante o galo para me mentir de novo,

afirmando o que não quero, negando o que mais desejo,

desistido da esperança, mãos abertas de teu beijo,

só espero cante o galo para mentir-lhe o quanto aprovo.

 

PÉTALAS DE MAGOA II

 

Se São Pedro negou Cristo por haver sentido medo,

eu reneguei a mim mesmo por ter sentido preguiça,

na mais plena descrença de existir qualquer justiça,

pelo puro desfastio de conservar-me em segredo;

mas o gosto das traições no palato sobra azedo

e o gosto da preguiça demora mais que uma missa,

mas ante o medo, ainda afirmo, que não recuei nessa liça,

foi apenas desalento e em desprezar meu degredo;

e falando francamente, nem sequer quando ocorreu

essa tríplice traição que hoje à mente me chegou:

não traí a mim apenas, mas traí a quantos mais?

Será que existe algum de nós que a si nunca ofendeu?

Existe algum de nós que a si nunca ludibriou?

Sempre é à soma de traições que nos tornam imortais.

 

PÉTALAS DE MAGOA III

 

As mil traições se acumulam tais quais pétalas de flor,

em certo dia aceitamos o conselho de um amigo

que certamente nos leva a evitar algum perigo,

mas vai mastigando em nós a instância de um valor;

e de outra vez despetalamos a alma inteira por amor

ou deixamos de fazer algo que traria consigo

uma rede de incômodos e talvez mesmo o jazigo,

caminho fácil antes do galo cantar a própria dor.

O que nunca traímos na verdade é a nossa mágoa,

ela perdura firme e aos poucos murcha e despetala

o quanto existe em nós de mais nobre e de mais puro,

num aqueduto constante de zombar que não se cala,

afogando em seu fluir as mil mágoas de um perjuro.

 

PÉTALAS DE MAGOA IV

 

Mas só canto nos meus versos o que outros não cantaram,

pelo menos é o que tento, sem julgar-me original

e tão frequente eu desconfio sem apenas um canal

por onde escorre a mágoa desses outros que falharam,

mas quiçá seja ilusão, quando então jamais falaram

tais espectros por mim, só enovelei-me no fatal

redemoinho de palavras revolvidas num caudal,

atropelado na boca, nesses sons que estilhaçaram.

Tanta vez eu nem consigo escrever rapidamente

esse baraço de vida ou de morte justamente

em turbilhão de sangue, num coágulo gelado;

não há tempo e tais ideias já se traem de repente,

umas rasgando as outras, catavento intermitente,

meus anseios a trair sobre o rosto atribulado.

 

SOMENTE EU MESMO? I – 22 FEV 2021

 

Talvez no fundo ninguém me inspire nada

e eu tenha apenas a vaidade da humildade,

porém se em ser humilde é ter vaidade,

minha atitude na vida é até descontrolada.

 

Eu realmente me surpreendo, na verdade

de que tanta coisa de mim possa ser gerada,

nesse simples teor de minha mente desconfiada;

de onde brota a fonte de tanta variedade?

 

Eu a tenho atribuído às Nove Musas ou a Apollo

euando qualquer temática me esforço em descrever

e a Dionysos quando me vem naturalmente

ou a poetas já de há muito dormindo sob o solo,

seu pranto ou riso com frequência a receber,

a voz do Espírito em avatares tão potente!...

 

SOMENTE EU MESMO? II

 

Será vaidade que me leva a denegar

qualquer mérito cunhado em tais poemas?

Que eu me limite ao brandir das penas,

quando outrem reconheço a me inspirar?

 

Será vaidade que eu não queira publicar

e me limite a digitar tais cenas

de longos textos, sem esperar apenas

um comentário que me possa entusiasmar?

 

Será vaidade que dê toda a liberdade

a quem quiser me copiar texto qualquer,

sem me importar com direitos autorais?

Será no fundo uma vã ardilosidade,

por que me julgue tão bom nesse mistér,

que facilmente possa criar cem versos mais?

 

SOMENTE EU MESMO? III

 

Sem a menor dúvida, eis um ponto a discutir,

mas se os for expor com total sinceridade,

é que de fato eu aprecie a qualidade

de tantos versos que me ponha a produzir.

 

E dessa forma, nem pretendo me iludir,

mas realmente sem notar necessidade

de meu nome ganhar qualquer notoriedade

e nem sequer sobremaneira vou nutrir

 

qualquer esperança de um reconhecimento,

porque esses versos importam muito mais

e é por seu mérito que os busco transmitir,

porque acredito, em meu pobre julgamento

que cada canto provém de meus fanais

e sou forçado a suas mensagens difundir.

 

SOMENTE EU MESMO? IV

 

Se alguma vaidade eu tenho, é receber

essas mil sombras que escorrem pelo ar,

que a carne e os dedos permito atravessar,

por tantas vezes a cumprir o meu dever.

 

Por tantas vezes já cansado de dizer

que os versos não são meus, sou só altar,

palavras santas que vou sacrificar,

nada por mim sozinho a aparecer!...

 

Assim eu tenho orgulho da humildade

ou sou humilde por de nada me orgulhar?

Eu sinto orgulho de ter sido escolhido

ou só o aceito com longanimidade?

Ou me limito a tais tarefas realizar,

com o orgulho vago de um martelo percutido?

 

AS FILHAS DE NETUNO I – 23 FEV 2021

Demarca o tempo a dança dessas horas,

que dizem todas de Netuno filhas ser,

acotoveladas no incauto seu correr,

pois és faminto, Chronos, que as devoras!

Cada hora fugitiva que tu adoras

quando te trouxe momentos de prazer,

quis Posêidon com o tridente proteger

e enviá-la para a casa em que tu moras.

 

Mas horas passam, só ficam os afetos

que partilhas com tantas gerações;

como é bizarro ler-se as emoções

desses poetas antigos mais diletos,

feitos em pó mas em tais palavras vivos,

a cada vez que percorras os seus crivos!

 

AS FILHAS DE NETUNO II

 

Infelizmente, apenas hoje os eruditos

de tais poetas têm um real conhecimento;

mesmo eu que na poesia tomo alento,

poucas vezes li seus textos tão aflitos

ou as descrições, em versos tão bonitos,

que ainda triunfam em seu julgamento,

quaisquer paisagens ou qualquer portento,

seus sentimentos permanecem infinitos...

 

Por que os homens passam sem memória,

cidades morrem, impérios desmoronam,

jazem os povos em tumbas já esquecidas,

mas lá, escondido em papiro sem história,

surgem poemas que os tempos não destronam

e sentimentos que jamais serão perdidos!

 

AS FILHAS DE NETUNO III

 

Mas no passado eles foram sendo lidos,

sempre houve quem os quisesse propalar;

em escolas mesmo obrigados a estudar

aqueles poucos nos currículos contidos;

talvez nem mesmo os melhores escolhidos,

tanto a hierarquia querendo censurar,

tantos outros com o tempo a se calar,

seus paradeiras ainda estão desconhecidos.

 

Porém de súbito, tal qual por acidente,

como uma jóia preciosa irás topar,

que poderia ter sido escrita no presente;

se por acaso fosse eu que a pude achar,

teria inveja e admiração premente

por tudo quanto já escrevi antecipar!...

 

TEURGIA I – 24 FEV 2021

 

Eu nunca vou pedir – nunca pedi

os beijos que ganhei – foi que me deram;

não pedirei teus lábios – me disseram

que a esperança de possuí-los já perdi;

eu nunca vou sofrer – nunca sofri,

pois somente a minha ânsia maltrataram,

meus pulmões que jamais dessedentaram,

que ao respirar – eu respirei sem ti.

 

E a cada breve encontro intempestivo,

meu coração agitou-se sem motivo,

só porque já me esquecera de teu rosto,

qual semana de chuva e tempestade,

a ventania e as nuvens negras à vontade,

denegassem a existência do sol posto!

 

TEURGIA II

 

Magia branca se chama Teurgia,

magia negra denomina-se Goética,

estranho tendo igual final que Ética

essa que apenas o mal nos proveria;

contudo, à sua maneira, julgaria

tal praticante dessa alheia Estética,

que perante a Moral criava a Cética,

ter direito a qualquer objeto que queria.

 

Por exemplo, ressuscitar da morte

algum amor há muito tempo falecido,

mas que jamais teria sido sepultado,

pelas alturas a vaguear em triste sorte,

breve sombra de sombra, esse gemido,

para trazê-lo ao caldeirão de algum pecado!

 

TEURGIA III

 

Não empreguei goética, porém em teurgia

poderia ter tido objetivos semelhantes;

a algum amor adormecido por instantes

trazer de volta a meus braços quereria;

assim tal beijo, que a ti nunca pediria,

talvez pudesse, qual o tivera dantes,

revisitar outra vez, quais dois amantes

podem em si ressuscitar igual magia!...

 

Ou, pelo menos, no espelho da alvorada,

de teu rosto a visão restauraria

e qual fora o teu semblante eu saberia,

ainda que rasgue a memória sem ver nada,

só nos recônditos do antanho encontraria

essa tua face que foi um dia tanto amada!

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