quinta-feira, 18 de março de 2021


 

 

A PELE ADQUIRIDA I – 16 MAR 21

 

O que mais conta é a maciez da pele

Contra a polpa dos dedos, o veludo,

O terciopelo morno, o manso escudo

Que protege sua derme e que ainda expele

A redolência doce e que martele

Minhas pupilas, a lhes impor, em tudo,

A identidade alheia em que me iludo

Nessa santa exploração que a carne vele.

 

As linhas de minha mão trazem destino,

Que é esse de encaixar-se às curvas dela,

Em tal massagem, que percebo enfim que sou;

Ela me tange, eu sou badalo e sino,

Minha garganta se fecha ao pensar nela:

Santa a epiderme com que me consagrou.

 

A PELE ADQUIRIDA II

 

Se fôssemos vampiros em um só caixão,

Abraçados por uma breve eternidade,

Apartados do comum da humanidade

E enrodilhados numa só paixão;

E se com o tempo viesse a podridão

Da madeira da tampa, e em realidade,

Por pouco mais do que casualidade,

Fosse extinguida a nossa proteção

 

E finalmente se rachasse esse suporte

E a luz do sol, para nosso malefício,

Nos penetrasse a tétrica guarida,

Te cobriria, porque sou mais forte

E não me importaria o sacrifício,

Se com minha morte te ganhasse a vida.

 

A PELE ADQUIRIDA III

 

Não é somente epidérmico este amor,

Pois se encontra entranhado na garganta,

Nos brônquios e no esôfago descanta,

Percorre a carne em todo o seu fulgor.

É um impulso de endógino calor

Que brota de meus dedos e te espanta;

Não há amor maior, nem se alevanta

Que a energia que no sangue tem valor.

 

Não mais te sinto assim ser carne alheia,

Por cissiparidade, retornou-se a união,

Por divisão, houve o encontro da harmonia

E eu te darei minha força quando és fria,

E no sistêmico esplendor desta alegria,

Te abraçarei em diastólica paixão.

 

A MORTE ADQUIRIDA I – 17 MAR 2021

 

Pois já me vacinei.  E logo com a chinesa,

Das que se acham por aí a menos eficaz,

Mas é preciso aceitar o que o governo traz,

Muito em especial nestes tempos de incerteza!

Pois até me vacinei!  No próprio dia treze,

Não que acredite de fato que haja azar,

Com seus efeitos já me soube acostumar,

Não é pior que outros dias que se preze!...

 

Fiquei no meio de uma turma de velhos,

Todos parados bem no olho do sol

E a longa fila não andava, realmente!

Por solidariedade, que nem escaravelhos,

Os da frente se embolaram em caracol,

Mandando a fila às favas, simplesmente!...

 

A MORTE ADQUIRIDA II

 

É até possível que nessa sindicância

Muitos de nós a morte adquirissem,

Que uns aos outros em suspiros transmitissem,

Recamados de suor, sem elegância...

Só imagino, nesta presente instância

Por que razão autoridades permitissem

Que os grupos de risco então se vissem

Acolherados em tão sinistra circunstância!

 

Já fazem dias e este pacato sedizente

De vítima possível... ainda aqui respira,

Sem a luz do sol e sem a espera o abalar...

Mas seu coração permanece ainda fremente:

Quando outra dose pela cidade gira,

Em nova fila decerto o hão de colocar!

 

A MORTE ADQUIRIDA III

 

Nem todo o céu azul nos dá alegria,

O sol queima a pupila em seu ardor

E nos estufa de ciano o seu calor,

Cujos efeitos o anil em nada esfria!...

Nem todo o sol assim nos traz poesia,

Somente o vento ameniza o seu fervor;

Se não há nuvem, nos arde a própria cor

E o azul se esgota no marinho que assobia...

 

Há no crepúsculo bem maior beleza,

Pois se percebem os tons da carnação

Nessas riscas de um ocaso multicor

E sob um céu meio grisáceo, com certeza,

A bela escala de cinza em variação

Nos invade muito mais em seu palor...

 

A MORTE ADQUIRIDA IV

 

Será que quando segunda dose receber,

Seja sem luz ou sob luz brilhante,

Cargas de vírus mortos nesse instante,

Vai meu sistema imunológico sofrer?

A oportunidade irá de novo me acorrer,

Não de cura, mas de morte triunfante,

Depois virá final ainda inquietante:

Alguma doença após a morte posso ter?

 

Não acredito ganhar mais raios de sol,

Nem das gotas da chuva o seu frescor,

Não que me assombre a ideia de morrer,

Quer haja ou não do outro lado algum farol,

Mas tampouco a buscarei como um favor,

Mesmo de graça do governo a receber!...


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