CHÁ DE SANGUE I (2008)
Minhas sandálias se gastam no caminho.
As solas remendei com a mesma pele
que cortei de meu rosto. A face expele
corrimentos de linfa sem carinho...
Mas precisava da pele de meu rosto
como reforço para as solas rotas:
não me sobrou dinheiro para botas
e largos furos tinha a rota nelas posto.
Minhas sandálias de sangue, não de couro
são trançadas nas canelas com mil veias.
Com os fios de minha barba fiz cadeias
e prossegui na senda desse agouro.
Já gasto o sangue e até do rosto a pele,
tornei meus intestinos em correias.
E se não gostas de tais imagens feias,
transformei em botinas meus pulmões!
Porém segui em frente, enquanto impele
a coragem que no peito me incendeias,
oh teimosia, de ínclitas cadeias,
a transformar a raiva em corações!...
CHÁ DE SANGUE II
Porque é assim que me sinto: enraivecido
perante os fados e sua dura brincadeira.
Mas já era de esperar sua zombeteira
atitude, tal que me havia antes ferido.
Pois as Nornas são assim: primeiro dão
exatamente o quanto lhes pediste,
sem advertir-te a consequência triste
desse desejo tão falaz do coração...
Quero o brocardo do Romano repetir:
moscas nas mãos de meninos malvados
somos nós perante os deuses já cansados:
eles nos matam para se divertir!...
Porém eu não me entrego e não suplico.
Se querem supliciar, então que o façam!
Verão a dor que minhas vistas embaçam,
mas não verão o medo em meu olhar.
Querem me ver de joelhos, vão quebrar
tíbia e perônio, que a força me desgraçam,
mas nem assim na escravizadão me abraçam,
pois nem os deuses podem me dobrar!...
CHÁ DE SANGUE III (8 AGO 2011)
Não importa quanto rales os teus dedos:
é a insistência que vale. Sem ofensa,
só repetindo a petição intensa,
sem demonstrar sequer sombra de medos.
Neste fato, coexistem dois segredos:
não basta que nos queiram, mas que imensa
seja a necessidade. E que a presença
seja constante em todos os enredos...
E até consta das Sagradas Escrituras:
se não te atendem por que amigos são,
atenderão pela tua importunação,
altivas preces de esperanças puras.
Mesmo que escorra sangue de tuas mãos
e que quebres os dentes contra arame,
ou que desgastes contra laje até as unhas,
sempre há maneira de furtar-se à cela.
Inda que esforços te pareçam vãos,
insiste em renovar o teu reclame,
tuas cordas vocais serão tuas cunhas,
enquanto fulge a chama de tua vela!...
CHÁ DE SANGUE IV (1º FEV 21)
Há muita gente que só faz por escrever
para chamar sobre si mais atenção.
Não são alvos da real inspiração,
mas apenas da vaidade do viver.
Há muita gente que se esforça por mover
os céus e a terra para ter publicação
e já calculam seus gastos de antemão:
quantos amigos irão aborrecer!...
Venda forçada, sem dúvida, será,
adquirida por questão de cortesia,
mas os livros que destarte venderia,
após o autógrafo, ninguém mais abrirá.
Porém tu, que tens nalma o pergaminho
e escreves versos de real sofrer,
ou expandes no papel o teu prazer,
não te atrevas a tomar esse caminho!...
Porque a poesia precisa de carinho,
na frágil chama de seu permanecer,
sem que a água suja a faça fenecer,
ardendo de teu peito no escaninho!
CHÁ DE SANGUE V
Deves verter dos dedos, gota a gota,
esse teu sangue de emoção pingado,
tingir o chá que tomas de encarnado,
até cumprida da tarefa a inteira quota.
Uma colher de osso então adota
a remexer os teus erros do passado,
sobre os quais foi teu sangue respingado,
nas ilusões mais dignas de nota.
Porque a ilusão tem mais verdade
em sua quimera que te envolve a boca,
em vasta bruma que te cobre em touca
que a corrupção da própria realidade.
Recorda firme que os inovadores
sempre foram de soslaio contemplados,
pelos medíocres são prejudicados,
tanto melhores sejam seus ardores.
Portanto, não esfries teus calores,
sempre é possível que sejam revelados
pelas redes eletrônicas lançados,
sem que os poemas morram sem leitores.
CHÁ DE SANGUE VI
Pois não importa de teu nome a fama,
que a poesia possui vida e entidade,
se te beijou em laboriosidade,
algum talento sempre em ti derrama.
O que importa é a mensagem que proclama,
o canto feito em secretividade,
que cedo ou tarde explode na verdade,
mesmo depois que a morte te reclama.
Os sicofantas são sempre os mais louvados,
uns pelos outros no apoio da invirtude,
muito se investe em tal palavra rude,
todos aplaudem sua dança de pecados.
Esses que fazem da poesia um instrumento,
na promoção de uma certa ideologia,
num louvor da religião sem fantasia,
puros capachos do social sem sentimento.
Assim sabem aproveitar o seu momento,
que a força do partido permitia,
abastardando qualquer pura elegia
pela busca material do movimento.
CHÁ DE SANGUE VII – 2 fev 2021
Também alcançam fácil o sucesso
os que do alheio fazem-se senhores,
a grande massa dos aproveitadores,
os criminosos de pendor confesso.
Aos quais se erguem estátuas só de gesso,
quebradas fácil por espoliadors,
essa alegre multidão dos plagiadores,
tão grande número que nem sequer eu meço.
Ninguém os lembra no perpassar do tempo,
é perigoso alcançar-se a fama em vida,
já na próxima geração está perdida,
a desmembrar-se em puro contratempo.
Sempre encontraram o veio comercial,
colocam letras sobre antigas notas,
multidão de papagaios e cocotas,
que aprendem fácil o ritmo social.
Porque tudo haviam copiado natural
e só repetem cem palavras rotas,
os pingos decorados de outras gotas,
no mesmo anêmico percutir virtual.
CHÁ DE SANGUE VIII
Eu nunca fui assim. Sei
que não o és,
amigo ou amiga que me leste até agora,
perceptível ao fragor que se assenhora
dos que partilham de minhas pobres fés.
Nao te assemelhas à massa dos josés,
nem ao coro das marias sem outrora,
fator diverso dentro em ti aflora
e és capaz de recriar velhos atés.
Mas sem sofrer não há qualquer poesia,
só a fala fria da da vasta insensatez,
somente escreverás o que antes lês,
ardor não encontrarás na fantasia.
Não que me agrade falar em sofrimento,
mas foi a dor que ensinou o meu tanger,
seja físico ou imaginário padecer,
ambos rebrotam em arrebatamento.
Apenas quem enfrentou padecimento
lástima de ontem transforma no planger,
sempre a recordação de algum sofrer
reverdecer irá em futuro sentimento.
CHÁ DE SANGUE IX
Seja a poesia a gama das estrelas,
o palpitar das flores em buquês,
os vagalumes que de noite vês,
a brisa fresca tocando-te as costelas.
Que seja o verso de esperanças belas,
da carícia solar sobre tua tês,
do teu barro que se molda em pura grês
ou da água fria que explode nas procelas,
em tuas tigelas lavarás o rosto,
o desgaste a descer em lantejoulas
teus lábios a piar quais pombas-rolas,
de tuas narinas a fugir todo o desgosto.
Sobre a bacia teu rosto se reflete,
imagem plena por mais seja invertida
e te balança, meio amortecida,
conforme o embalo que nela se intromete.
Porém no insuflar do vento o flete
ou se tua mão apenas é inserida,
a imagem de tua face refletida,
já se esfarela como longa prece!
CHÁ DE SANGUE X – 3 fev 2021
Sempre que quis tornar mais permanente
essa escultura que a água fez de mim,
a corrompi com gotas carmesim,
coaguladas da forma mais plangente,
como o leite ao açúcar lhe consente
mais consistência e duração assim,
meu sangue faz-se pedra de fortim,
caleidoscópio de téssera mais quente.
Pois cada gota que pinga de tua alma,
tua face rota bem mais firme torna,
a superfície de sangue já mais morna,
cada traço de teu rosto ali se embalma.
Com cada pingo se compõe mosaico
e minhas faces me contemplam distorcidas,
talvez semblantes usados noutras vidas,
talvez centelhas tão só de arco voltaico.
Ali então leio o meu destino em aramaico
na penumbra dessas letras inseridas,
nas rugas de meu rosto falecidas,
meu próprio sangue a se tornar arcaico.
CHÁ DE SANGUE XI
Talvez seja outra taça necessária,
ampla o bastante como igual não há,
uma chávena coagulada de quiçá
ou vasto cálice de pompa funerária,
talvez seja só a presença solidária
de um só pires e colher que ali está
para compor a presença de meu chá,
com sangue negro a respingar de pária.
Só o excluído que um dia o mundo rói
que pela vida foi sempre perseguido,
mas conservou-se sobre os pés erguido,
sabe a que ponto sua ferida dói.
Pois transforma saudade em condimento,
faz do ciúme sagrada ladainha,
a inveja toda com desdém ele amesquinha,
toda a tristeza a reforçar o seu alento,
quem faz da cólera o ímpio juramento
e da traição uma bênção pequeninha
e quando a morte lenta se avizinha
em suas cantigas destoa o pensamento.
CHÁ DE SANGUE XII
Mas não esperes que caia no teu colo
o dote desses deuses sem memória,
ou a louvação que te preiteie a escória,
qualquer prêmio conferido em puro dolo,
porque a faca na garganta então amolo
para a palavra jorrar peremptória
e a esperança mostrar-se conclusória
como um papiro de emurchecido rolo.
Que após a morte então a glória chega,
és descoberta assim com grave espanto,
és lastimada em falaz público pranto,
rançosa a sorte exposta qual manteiga!
Meu coração não me envergonha expô-lo,
mas que seja divergente e digital,
pois o concreto é mais individual
e não espero ver nele meu consolo,
era meu sonho longo e nem soube onde pô-lo,
era tão grande que acabou sendo mortal
e tão pequeno que perdeu-se no afinal,
nesse álgido esplendor do desconsolo!...
DESENLACES I – 4 FEV 2021
VEIO OUTRA, AFINAL, E NÃO AQUELA
QUE EU ESPERARA TANTO.
SEUS CABELOS
RELUZIAM TAMBÉM EM MIL DESVELOS,
RENDI-ME INTEIRO, VENDO QUE ERA BELA,
POIS NA VERDADE, QUEM AMA UMA DONZELA,
SEMPRE A ACHA BONITA E SÓ DE VÊ-LOS
OS SEUS OLHOS REBRILHAM E SÓ DE TÊ-LOS
OS SEUS BEIJOS O DERROTAM QUAL PROCELA!
QUE ALGUNS HOMENS SÃO ASSIM, TÃO FACILMENTE
UM CORAÇÃO QUE SEJA MEIGO É CONQUISTADO
E NÃO CONSEGUE JAMAIS DIZER QUE NÃO
E É POR ISSO QUE OCORREM TÃO FREQUENTE
OS DESENLACES NESTE MUNDO EIVADO
DE TANTO AMOR QUE NÃO CHEGA AO CORAÇÃO!
DESENLACES Ii
E QUANDO A OUTRA CHEGOU, FUI CONQUISTADO,
QUE ERA JOVEM, SUAVE E FRESCA, TÃO FORMOSA
QUE SE ENRAIZOU GENTIL COMO UMA ROSA,
PELO AMOR QUE OFERECEU EU FUI DOMADO
E MUITOS ANOS CONSERVOU-ME AO LADO,
DIA APÓS DIA, MESMO SENDO CAPRICHOSA,
POIS QUASE SEMPRE MOSTROU-SE DADIVOSA,
TECENDO A TEIA NA QUAL FUI CAPTURADO.
NESSA CERTEZA DE SER POR ELA AMADO,
DE QUE EU A AMASSE A CERTEZA NÃO GANHEI,
ENQUANTO A TIVE, AMOR PURO DEMONSTREI,
MAS POR DESGRAÇA TAL AMOR SENDO ANULADO
A CADA VEZ QUE DA OUTRA ME LEMBREI,
SEM QUE JAMAIS A TIVESSE RECOBRADO.
DESENLACES III
CONTUDO AS CARTAS VÃO SENDO EMBARALHADAS
E DE REPENTE TÊM AS VAZAS MUTAÇÕES
E DE REPENTE SE ESMAECEM ILUSÕES,
POR MAIS AS DÁDIVAS DE AMOR SENDO TROCADAS,
AS SUAS HASTES TÊM DE SER ENRAIZADAS
A DESPEITO DE QUAISQUER CONTRADIÇÕES,
MAS TÃO COMUM É SÓ SE AMAR AS EMOÇÕES
QUE SE ENTRECRUZAM EM ALMAS PERTURBADAS.
E POR AMAR SEM AMOR, UM DIA A DEIXEI,
QUANDO AMOR MAIS VERDADEIRO RELUZIU
E NEM AO MENOS O DE QUEM ANTES QUISERA...
TANTO REMORSO NO PEITO AINDA GUARDEI,
MAS FOI A FORÇA DESSE AMOR QUE ME SURGIU
INELUTÁVEL A SOPITAR O AMOR-QUIMERA!..
A ILUSTRAÇÃO IDENTIFICADA COMO A FAMOSA ATRIZ HOLLYWOODIANA DEBORAH KERR
Nenhum comentário:
Postar um comentário