ESTRANHA PRIMAVERA I
– 23 SET 21
(Cyd Charisse, da era de ouro de Hollywood)
Irei agora
contrariar o que escrevi,
porque recordo de
suspeita delirante,
em novel comparação
levar avante,
sem afirmar que seja
algo em que cri.
Há quem afirme – em
certo ponto eu li,
que nos plantaram
qual horta gigante
para alimento
atender fome constante
de um deus ou deuses
que não conheci.
Por isso é que
morremos. Vêm buscar
nessa horta verduras
ou em pomar,
para suas vastas
refeições os condimentos;
o pecado original é
não brotar,
ou antes da colheita
se murchar,
deixando assim de
cumprir seus mandamentos.
ESTRANHA PRIMAVERA
II
Rudyard Kipling, em
poema mencionava
os Deuses de Lata,
que faziam festa,
enquanto Zeus
ressonava numa sesta
e só então a sua
maldade prosperava;
porém no mesmo
poema, ele falava,
mal calculada sendo
a extensão desta,
Zeus se acordava e
punia a cada besta,
lançando ao Tártaro
quantas capturava!
Outra versão é bem
menos violenta:
somos flores de um
jardim, a perfumar
as narinas de uma
deusa milenar,
que se contenta com
a floração mais lenta,
jamais chegando suas
flores a colher,
mas que tampouco
lhes impede o fenecer.
ESTRANHA PRIMAVERA
III
Se fosse assim,
deixaríamos sementes,
logo a seguir
voltando a rebrotar,
a geração deixando
outra em seu lugar,
contra o próprio
murchar sendo impotentes;
reencarnações quiçá
ali subjacentes,
cada flor a se poder
multiplicar
e as abelhas nosso
néctar a buscar
angélicos seres para
nós benevolentes...
E de repente, das
glicínias me recordo:
não lhes deram
descanso as tempestades,
bem esgarçado seu
tapete sobre o solo...
Com a criação por
essa Flora até concordo,
que nos cheirasse e
colhesse sem maldades,
qual ramalhete de
flores no seu colo!...
ESTRANHA VIAGEM I – 24 SET 2021
SEI ME PERDI DESSE BARCO
QUE DEVERIA ESCOLHER,
MAS QUE A FORÇA DO VIVER
ME LANÇOU EM ALHEIO MARCO,
PASSAGEIRO DESSE NARCO-
TRÁFICO, PORÉM SEM ME TOLHER,
ESSA NAVE É UMA COLHER,
COM QUE O MAR INTEIRO ABARCO.
TRAFICANTE DE TORPEZAS,
ESSA BARCA ME CONDUZ
PARA LONGE DESTA LUZ,
EU ME TOLHO DE INCERTEZAS,
NA VELA DAS ASPEREZAS,
SOB ESSES MASTROS EM CRUZ.
ESTRANHA VIAGEM Ii
TALVEZ AINDA PERMANEÇA SOBRE O CAIS,
SÓ ATRASADO CHEGUEI PARA O NAVIO;
SOB AS LUFADAS QUE ASSOVIOU-ME VENTO FRIO
QUE A MARESIA ME ASSOPRA SEMPRE MAIS;
TALVEZ SÓ PENSE, EM ENGANOS NATURAIS,
QUE OUTRA NAU TOMEI EM DESAFIO,
SABENDO EMBORA, COM VASTO CALAFRIO
LEVAR ESCRAVOS NO PORÃO COMO ANIMAIS.
TALVEZ DE FATO, NEM SEQUER À PRAIA
TENHA DESCIDO, MAS FICADO PARA TRÁS,
OUVINDO O BARCO EMITIR ÚLTIMO APITO,
SEM DO ALTO MONTE TER CRUZADO A RAIA,
NESSA INDOLÊNCIA QUE DE MIM PERFAZ
A MUDA SOLIDÃO DE UM MUDO GRITO.
ESTRANHA VIAGEM III
MAS MESMO SEM TER BARCO, ESSA VIAGEM
PARA TODO PASSAGEIRO É OBRIGATÓRIA,
QUEM SABE A TERRA SE MOVA, MERENCÓREA,
SOB MEUS PÉS AO LONGO DA PAISAGEM
EM NADA OBSTA A FALTA DE CORAGEM
PARA ENFRENTAR DESTINAÇÃO INGLÓRIA;
TAL COMO OCORRE SEMPRE, PEREMPTÓRIA,
LEVA-ME A VIDA SEM ME PEDIR PASSAGEM.
TALVEZ O PORTO SE ACHE NA MONTANHA,
TALVEZ O BARCO SE ATOLE NO DESERTO,
TALVEZ SEJA UM LAGO AZUL ATRAVANCADO
DE NENÚFARES, EM PROFUSÃO TAMANHA,
ALGUM LÓTUS A MOSTRAR CÁLICE ABERTO,
O MEU PORVIR ALI SENDO ANCORADO.
VELEIRO ESTRANHO I – 25 SET 21
O BARCO QUE ME TRANSPORTA
AO PORTO QUE NÃO DESEJO,
ESSE BARCO QUE NÃO VEJO,
VAPOR QUE POUCO ME IMPORTA,
A BARCA DE PROA TORTA
QUE ME LEVA PARA O ENSEJO,
A JANGADA DE MEU PEJO,
ESSA NAVE DE MÃO MORTA,
TIMONEIRO A VELA ABORTA,
A FERROS NESSA ENXOVIA,
PÉS COBERTOS DE SALSUGEM,
A CARNE DOS DEDOS CORTA,
A PELE FEITA EM PENUGEM
NESSE BARCO DE UMA VIA.
VELEIRO ESTRANHO II
NADA PARECE QUE IMPOSSÍVEL SEJA
A ESSES BARCOS DE AREIA QUE FLUTUAM,
SÃO PINGOS DE ARENITO QUE ELES SUAM
ENQUANTO A QUILHA PELA ROCHA ESTEJA;
O CASCO SE DESLIZA E NÃO SE ALEIJA,
ABREM CAMINHO POR BASALTO E PUAM
OS MIL CRISTAIS DA NOITE QUE SE ALUAM
NO ALÚMEN ALUVIAL QUE A MÃO ME BEIJA.
DE UM MONTE PARA OUTRO SE TRANSPORTAM,
SEM TOCAR NA PLANÍCIE E SEM ROLDANA,
SEGUEM FIÉIS A ANTIGA CARAVANA
DAS BESTAS DO ZODÍACO E ASSIM CORTAM,
PRESOS POR CABOS DESDE A ESTRATOSFERA
QUE MEU HORÓSCOPO INDIFERENTE GERA.
VELEIRO ESTRANHO III
ASSIM AS NAVES NAVEGAM SOBRE O FOGO
E OS BARCOS EMBARCAM NAS MURALHAS,
REBATE O IATE SOBRE AS MARAVALHAS,
A NAU DESNUDA EM PLENO DESAFOGO,
A GALERA QUE GERA A ESPUMA LOGO,
O BOTE NO REBOTE DAS CANGALHAS,
O ESCALER QUE ESCALA FALDA E FALHAS,
NAVIOS DE NUVENS NO MAIS PRISTINO ROGO.
E NESSE BARCO HÁ GRILHÃO QUE TE AGRILHOA,
HÁ CORRENTE QUE DISCORRE INDEPENDENTE,
ALGEMAS CUJAS GEMAS TE SURPREENDEM,
UMA GAIOLA GAIA NA SUA PROA,
UMA POPA QUE ESPOUCA MALQUERENTE,
CEM VELAS SECAS QUE JAMAIS SE ACENDEM.
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