segunda-feira, 27 de setembro de 2021


 

 

ESTRANHA PRIMAVERA I – 23 SET 21

(Cyd Charisse, da era de ouro de Hollywood)

 

Irei agora contrariar o que escrevi,

porque recordo de suspeita delirante,

em novel comparação levar avante,

sem afirmar que seja algo em que cri.

Há quem afirme – em certo ponto eu li,

que nos plantaram qual horta gigante

para alimento atender fome constante

de um deus ou deuses que não conheci.

 

Por isso é que morremos.  Vêm buscar

nessa horta verduras ou em pomar,

para suas vastas refeições os condimentos;

o pecado original é não brotar,

ou antes da colheita se murchar,

deixando assim de cumprir seus mandamentos.

 

ESTRANHA PRIMAVERA II

 

Rudyard Kipling, em poema mencionava

os Deuses de Lata, que faziam festa,

enquanto Zeus ressonava numa sesta

e só então a sua maldade prosperava;

porém no mesmo poema, ele falava,

mal calculada sendo a extensão desta,

Zeus se acordava e punia a cada besta,

lançando ao Tártaro quantas capturava!

 

Outra versão é bem menos violenta:

somos flores de um jardim, a perfumar

as narinas de uma deusa milenar,

que se contenta com a floração mais lenta,

jamais chegando suas flores a colher,

mas que tampouco lhes impede o fenecer.

 

ESTRANHA PRIMAVERA III

 

Se fosse assim, deixaríamos sementes,

logo a seguir voltando a rebrotar,

a geração deixando outra em seu lugar,

contra o próprio murchar sendo impotentes;

reencarnações quiçá ali subjacentes,

cada flor a se poder multiplicar

e as abelhas nosso néctar a buscar

angélicos seres para nós benevolentes...

 

E de repente, das glicínias me recordo:

não lhes deram descanso as tempestades,

bem esgarçado seu tapete sobre o solo...

Com a criação por essa Flora até concordo,

que nos cheirasse e colhesse sem maldades,

qual ramalhete de flores no seu colo!...

 

ESTRANHA VIAGEM I – 24 SET 2021

 

SEI ME PERDI DESSE BARCO

QUE DEVERIA ESCOLHER,

MAS QUE A FORÇA DO VIVER

ME LANÇOU EM ALHEIO MARCO,

PASSAGEIRO DESSE NARCO-

TRÁFICO, PORÉM SEM ME TOLHER,

ESSA NAVE É UMA COLHER,

COM QUE O MAR INTEIRO ABARCO.

 

TRAFICANTE DE TORPEZAS,

ESSA BARCA ME CONDUZ

PARA LONGE DESTA LUZ,

EU ME TOLHO DE INCERTEZAS,

NA VELA DAS ASPEREZAS,

SOB ESSES MASTROS EM CRUZ.

 

ESTRANHA VIAGEM Ii

 

TALVEZ AINDA PERMANEÇA SOBRE O CAIS,

SÓ ATRASADO CHEGUEI PARA O NAVIO;

SOB AS LUFADAS QUE ASSOVIOU-ME VENTO FRIO

QUE A MARESIA ME ASSOPRA SEMPRE MAIS;

TALVEZ SÓ PENSE, EM ENGANOS NATURAIS,

QUE OUTRA NAU TOMEI EM DESAFIO,

SABENDO EMBORA, COM VASTO CALAFRIO

LEVAR ESCRAVOS NO PORÃO COMO ANIMAIS.

 

TALVEZ DE FATO, NEM SEQUER À PRAIA

TENHA DESCIDO, MAS FICADO PARA TRÁS,

OUVINDO O BARCO EMITIR ÚLTIMO APITO,

SEM DO ALTO MONTE TER CRUZADO A RAIA,

NESSA INDOLÊNCIA QUE DE MIM PERFAZ

A MUDA SOLIDÃO DE UM MUDO GRITO.

 

ESTRANHA VIAGEM III

 

MAS MESMO SEM TER BARCO, ESSA VIAGEM

PARA TODO PASSAGEIRO É OBRIGATÓRIA,

QUEM SABE A TERRA SE MOVA, MERENCÓREA,

SOB MEUS PÉS AO LONGO DA PAISAGEM

EM NADA OBSTA A FALTA DE CORAGEM

PARA ENFRENTAR DESTINAÇÃO INGLÓRIA;

TAL COMO OCORRE SEMPRE, PEREMPTÓRIA,

LEVA-ME A VIDA SEM ME PEDIR PASSAGEM.

 

TALVEZ O PORTO SE ACHE NA MONTANHA,

TALVEZ O BARCO SE ATOLE NO DESERTO,

TALVEZ SEJA UM LAGO AZUL ATRAVANCADO

DE NENÚFARES, EM PROFUSÃO TAMANHA,

ALGUM LÓTUS A MOSTRAR CÁLICE ABERTO,

O MEU PORVIR ALI SENDO ANCORADO.

 

VELEIRO ESTRANHO I – 25 SET 21

 

O BARCO QUE ME TRANSPORTA

AO PORTO QUE NÃO DESEJO,

ESSE BARCO QUE NÃO VEJO,

VAPOR QUE POUCO ME IMPORTA,

A BARCA DE PROA TORTA

QUE ME LEVA PARA O ENSEJO,

A JANGADA DE MEU PEJO,

ESSA NAVE DE MÃO MORTA,

 

TIMONEIRO A VELA ABORTA,

A FERROS NESSA ENXOVIA,

PÉS COBERTOS DE SALSUGEM,

A CARNE DOS DEDOS CORTA,

A PELE FEITA EM PENUGEM

NESSE BARCO DE UMA VIA.

 

VELEIRO ESTRANHO II

 

NADA PARECE QUE IMPOSSÍVEL SEJA

A ESSES BARCOS DE AREIA QUE FLUTUAM,

SÃO PINGOS DE ARENITO QUE ELES SUAM

ENQUANTO A QUILHA PELA ROCHA ESTEJA;

O CASCO SE DESLIZA E NÃO SE ALEIJA,

ABREM CAMINHO POR BASALTO E PUAM

OS MIL CRISTAIS DA NOITE QUE SE ALUAM

NO ALÚMEN ALUVIAL QUE A MÃO ME BEIJA.

 

DE UM MONTE PARA OUTRO SE TRANSPORTAM,

SEM TOCAR NA PLANÍCIE E SEM ROLDANA,

SEGUEM FIÉIS A ANTIGA CARAVANA

DAS BESTAS DO ZODÍACO E ASSIM CORTAM,

PRESOS POR CABOS DESDE A ESTRATOSFERA

QUE MEU HORÓSCOPO INDIFERENTE GERA.

 

VELEIRO ESTRANHO III

 

ASSIM AS NAVES NAVEGAM SOBRE O FOGO

E OS BARCOS EMBARCAM NAS MURALHAS,

REBATE O IATE SOBRE AS MARAVALHAS,

A NAU DESNUDA EM PLENO DESAFOGO,

A GALERA QUE GERA A ESPUMA LOGO,

O BOTE NO REBOTE DAS CANGALHAS,

O ESCALER QUE ESCALA FALDA E FALHAS,

NAVIOS DE NUVENS NO MAIS PRISTINO ROGO.

 

 

E NESSE BARCO HÁ GRILHÃO QUE TE AGRILHOA,

HÁ CORRENTE QUE DISCORRE INDEPENDENTE,

ALGEMAS CUJAS GEMAS TE SURPREENDEM,

UMA GAIOLA GAIA NA SUA PROA,

UMA POPA QUE ESPOUCA MALQUERENTE,

CEM VELAS SECAS QUE JAMAIS SE ACENDEM.

 

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