MARESIA I – 14 SET 21
(Na ilustração, Carole Lombard,
da época de ouro do cinema).
Quando o barco se
desprende
e nos leva a seu futuro,
navegando pelo escuro,
nossa infância ao mundo
vende;
pouca coisa a gente
aprende,
não há lenha no mar duro,
gira a agulha contra o
muro
dessa bússola em que pende...
Mas sem razão para alarme,
que o barco sabe aonde
vai,
só a gente é que não sabe
quando a vela se desarme
e o mastro sobre nós cai,
nesse porvir que nos
cabe...
MARESIA II
Volta o navio para o cais,
desvaziado de sua carga,
na alfândega se embarga,
pois chegou vazio demais,
transportando apenas ais,
na salsugem mais amarga,
o tombadilho se alarga,
nem sequer flutua mais...
Como é larga a calmaria,
mortos envoltos em lona,
lançado ao mar o escravo,
rasga a mezena de esguia,
moribunda a bujarrona,
quando à âncora me travo.
MARESIA III
Atrás de mim, porém,
deixei migalhas,
na fútil esperança de
voltar;
eu não sabia então que o
regressar
era feito de ilusões e das
bem falhas!
Pois todo o bem que sobre
a terra espalhas,
mesmo que possa aos demais
beneficiar,
para ti mesmo não há de
retornar:
deste a madeira e ganhas
maravalhas!
Contudo o pão eu lanço
sobre as águas,
para que outrem o coma, se
encontrar:
somente eu o encontrarei
verde e mofado;
mas mesmo dentre as
corriqueiras mágoas,
talvez alguém deseje me
jogar
umas fatias de amor para
meu lado!...
COMPARAÇÕES I – 15 SET 2021
Toda mulher, seja mais ou menos bela,
comparada já foi a alguma rosa;
é fresca e bela a imagem olorosa
dessa metáfora que à amada sela,
que é rosa a quem contente-se de vê-la,
que é rosa a quem a ame assim formosa,
que é rosa a quem a busque por esposa
ou rosa para quem só quer colhê-la.
Mas no ato do corte, o sangue escorre
dos dedos que acarinham o ser mortal,
pois todas têm momentos mais mesquinhos;
melhor a rosa no galho que não morre
do que colher a flor, porque, afinal,
toda mulher possui também os seus espinhos!
COMPARAÇÕES II
Nesse teu vaso as flores são de plástico,
imitação
de mais bela flor de pano,
que investe a primavera a todo o ano,
que mostra um novo amor em cada dístico.
Não têm perfume, somente um cheiro cáustico,
só foram flores em um passado arcano,
os modelos se passaram nesse engano,
transformados em petróleo mais elástico.
Sabe-se lá que místicas pressões
enegreceram essas flores mortas,
arrancadas agora de um pré-sal,
misturadas a animais, negros carvões
e a humanidade escreve em linhas tortas,
criando em plástico uma flor artificial!
COMPARAÇÕES III
Algumas vezes, a feiúra mais pungente
se encontra ao fundo do que parece belo,
tal como as amuradas de um castelo
que abriga um calabouço deprimente;
em oposto, na podridão mais aparente,
pode o romance brotar por entre o zelo,
ver-se calor na cor da flor de gelo,
achar-se fé ao pé da ré descrente.
E quanta vez é romântico o bandido
que busca amor e paixão no outro sexo,
mesmo que esteja nas piores condições,
enquanto o moço belo e bem vestido
transforma o amor em sexo sem nexo,
na indiferença por alheias sensações!..
RESGATE I – 16 SET 21
Em minha cozinha, eu vejo nos balcões
mil pedras recortadas de pedreira,
“conglomerado” sua designação certeira,
que a moda escolhe para as decorações.
Quem faz ideia de quantas gerações,
quanto século, de que milênio a esteira,
quanto éon, quanta era sobranceira
foram precisos para tantas mutações?
As montanhas escorrendo pedregulho,
soprando o vento, o penhasco fez-se areia,
no vale ao lado depositada simplesmente;
esse cume que sofreu o lento esbulho,
que era altivo ante a chuva que o permeia,
para em pedra recriar-se finalmente.
RESGATE II
Nada foi simplesmente um recamar,
só a pouco e pouco a várzea foi-se enchendo,
apenas lama no início parecendo,
até a camada mais antiga se ocultar;
nem sempre em rocha chegou-se a transformar:
veio a
torrente, de vaza então enchendo
um mar distante e um tectônico inuendo
a erguendo um dia para em terra ressecar.
E foi preciso tanta coisa se empilhar,
talvez a lava jorrada de um vulcão,
talvez a rocha que trouxe um furacão
ou a poeira o sedimento em tal lugar,
até que o peso finalmente as comprimiu
e como em quadro impressionista se fundiu.
RESGATE III
Que bom seria que os mortos do passado,
depositados bem fundo ao Mar Oceano,
um certo dia, por um mistério arcano,
surgissem sobre a terra no fundo devassado!
Sobre a margem, em tal tapete decorado,
se apresentassem em seu feitio humano
e os ossos secos, qual milagre insano,
carne mostrassem no vigor seu renovado!
E então se erguessem, não como mortos-vivos,
mas plenamente, de si mesmos conscientes
e aos poucos retornassem para nós,
a terra e o mar dando seus mortos redivivos,
mas sem
quaisquer julgamentos permanentes,
só que voltassem para nós nossos avós!
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