quinta-feira, 16 de setembro de 2021


 

 

MARESIA I – 14 SET 21

(Na ilustração, Carole Lombard, 

da época de ouro do cinema).


Quando o barco se desprende

e nos leva a seu futuro,

navegando pelo escuro,

nossa infância ao mundo vende;

pouca coisa a gente aprende,

não há lenha no mar duro,

gira a agulha contra o muro

dessa bússola em que pende...

Mas sem razão para alarme,

que o barco sabe aonde vai,

só a gente é que não sabe

quando a vela se desarme

e o mastro sobre nós cai,

nesse porvir que nos cabe...

 

MARESIA II

Volta o navio para o cais,

desvaziado de sua carga,

na alfândega se embarga,

pois chegou vazio demais,

transportando apenas ais,

na salsugem mais amarga,

o tombadilho se alarga,

nem sequer flutua mais...

Como é larga a calmaria,

mortos envoltos em lona,

lançado ao mar o escravo,

rasga a mezena de esguia,

moribunda a bujarrona,

quando à âncora me travo.

 

MARESIA III

Atrás de mim, porém, deixei migalhas,

na fútil esperança de voltar;

eu não sabia então que o regressar

era feito de ilusões e das bem falhas!

Pois todo o bem que sobre a terra espalhas,

mesmo que possa aos demais beneficiar,

para ti mesmo não há de retornar:

deste a madeira e ganhas maravalhas!

Contudo o pão eu lanço sobre as águas,

para que outrem o coma, se encontrar:

somente eu o encontrarei verde e mofado;

mas mesmo dentre as corriqueiras mágoas,

talvez alguém deseje me jogar

umas fatias de amor para meu lado!...

 

COMPARAÇÕES I – 15 SET 2021

Toda mulher, seja mais ou menos bela,

comparada já foi a alguma rosa;

é fresca e bela a imagem olorosa

dessa metáfora que à amada sela,

que é rosa a quem contente-se de vê-la,

que é rosa a quem a ame assim formosa,

que é rosa a quem a busque por esposa

ou rosa para quem só quer colhê-la.

Mas no ato do corte, o sangue escorre

dos dedos que acarinham o ser mortal,

pois todas têm momentos mais mesquinhos;

melhor a rosa no galho que não morre

do que colher a flor, porque, afinal,

toda mulher possui também os seus espinhos!

 

COMPARAÇÕES II

Nesse teu vaso as flores são de plástico,

 imitação de mais bela flor de pano,

que investe a primavera a todo o ano,

que mostra um novo amor em cada dístico.

Não têm perfume, somente um cheiro cáustico,

só foram flores em um passado arcano,

os modelos se passaram nesse engano,

transformados em petróleo mais elástico.

Sabe-se lá que místicas pressões

enegreceram essas flores mortas,

arrancadas agora de um pré-sal,

misturadas a animais, negros carvões

e a humanidade escreve em linhas tortas,

criando em plástico uma flor artificial!

 

COMPARAÇÕES III

Algumas vezes, a feiúra mais pungente

se encontra ao fundo do que parece belo,

tal como as amuradas de um castelo

que abriga um calabouço deprimente;

em oposto, na podridão mais aparente,

pode o romance brotar por entre o zelo,

ver-se calor na cor da flor de gelo,

achar-se fé ao pé da ré descrente.

E quanta vez é romântico o bandido

que busca amor e paixão no outro sexo,

mesmo que esteja nas piores condições,

enquanto o moço belo e bem vestido

transforma o amor em sexo sem nexo,

na indiferença por alheias sensações!..

 

RESGATE I – 16 SET 21

Em minha cozinha, eu vejo nos balcões

mil pedras recortadas de pedreira,

“conglomerado” sua designação certeira,

que a moda escolhe para as decorações.

Quem faz ideia de quantas gerações,

quanto século, de que milênio a esteira,

quanto éon, quanta era sobranceira

foram precisos para tantas mutações?

As montanhas escorrendo pedregulho,

soprando o vento, o penhasco fez-se areia,

no vale ao lado depositada simplesmente;

esse cume que sofreu o lento esbulho,

que era altivo ante a chuva que o permeia,

para em pedra recriar-se finalmente.

 

RESGATE II

Nada foi simplesmente um recamar,

só a pouco e pouco a várzea foi-se enchendo,

apenas lama no início parecendo,

até a camada mais antiga se ocultar;

nem sempre em rocha chegou-se a transformar:

veio  a torrente, de vaza então enchendo

um mar distante e um tectônico inuendo

a erguendo um dia para em terra ressecar.

E foi preciso tanta coisa se empilhar,

talvez a lava jorrada de um vulcão,

talvez a rocha que trouxe um furacão

ou a poeira o sedimento em tal lugar,

até que o peso finalmente as comprimiu

e como em quadro impressionista se fundiu.

 

RESGATE III

Que bom seria que os mortos do passado,

depositados bem fundo ao Mar Oceano,

um certo dia, por um mistério arcano,

surgissem sobre a terra no fundo devassado!

Sobre a margem, em tal tapete decorado,

se apresentassem em seu feitio humano

e os ossos secos, qual milagre insano,

carne mostrassem no vigor seu renovado!

E então se erguessem, não como mortos-vivos,

mas plenamente, de si mesmos conscientes

e aos poucos retornassem para nós,

a terra e o mar dando seus mortos redivivos,

mas  sem quaisquer julgamentos permanentes,

só que voltassem para nós nossos avós!

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