A
PRINCESA E A ÁGUIA
Conto
de fadas atribuído a siegfried heinz hammer (1890), adaptação e versão poética
de william lagos, 6 maio 2020
A PRINCESA E A ÁGUIA I
Em certo reino nos Alpes encontrado
habitava uma belíssima princesa;
mais do que bela, porém, era orgulhosa,
que matrimônio sempre havia rejeitado,
mas pretendentes de grande nobreza
sua mão graciosa haviam pedido com presteza,
Gunilde, a princesa, a mostrar-se desdenhosa,
Cada um dos pretendentes desprezado!
Ela se achava ser melhor do que ninguém
e com palavras duras, humilhava
os príncipes e nobres que a buscavam...
Certo dia, do reino ao lado, veio também
Gunther, o herdeiro, que igual a cortejava;
o rei, pai de Gunilde, certamente o aprovava,
porém a cada ocasião que se encontravam,
ela o tratava pior que ao palafrém! (*)
(*) Cavalo de raça, montaria de senhora.
Um dia, a corte toda ali reunida,
ela o tratou com um desprezo tal,
que o príncipe, envergonhado, retirou-se,
uma atitude pessimamente recebida
no reino de seu pai, é natural,
que em embaixada enviou o seu jogral
exigindo desculpas, senão, ameaçou-se,
fariam guerra e a nação seria invadida!
O próprio fato de que esse abaixador
não fosse nobre, mas só o bobo da corte,
era ofensa até maior que a anterior feita;
mesmo assim, ofendido em seu pudor,
o pai da princesa odiaria tal sorte,
mandou ao vizinho presentes de bom porte,
comunicando o castigo a que sujeita
seria sua filha, assim mantida em desfavor!
A PRINCESA E A ÁGUIA II
E em consequência, proibiu-a de sair
ou ter contato com quaisquer visitas,
restrita apenas a seu apartamento,
até que resolvesse desculpas a pedir
e que aceitasse a corte de conquistas
do nobre príncipe, de palavras tão bonitas,
mas a jovem recusou assentimento,
preferindo os movimentos restringir!
Não que de fato fosse horrível seu castigo,
que ela gostava de ler e de pintar
e tinha acesso a seu jardim privado,
suas numerosas aias a continuar consigo:
algumas flautas sabiam bem tocar,
o alaúde da princesa a acompanhar;
não ir aos bailes não se trazia cuidado,
bem confortável em seu amplo abrigo...
Passeava assim em seu jardim maravilhoso
e das cozinhas as iguarias lhe chegavam,
ainda ataviada com seus belos vestidos,
seus espelhos a lhe mostrar rosto formoso;
seus passatempos de fato lhe bastavam,
porque os livros de poesia lhe agradavam,
suas pinturas de desenho cuidadoso,
constantemente seus materiais substituídos...
Mas certo dia, andando a sós no seu jardim,
espantada escutou forte ruflar de asas
e uma águia viu do céu descer, imensa,
velozes voltas a descrever assim,
tão rápido a voar que logo rasas
parábolas fazia sobre as casas;
ficou a princesa em seu terror tão tensa
que nem lembrou de se escapar, enfim!
A PRINCESA E A ÁGUIA III
Assim a águia a empolgou, num sopetão,
subindo aos ares num rápido momento!
Mesmo sentindo um terror indescritível,
compreendeu bem, que para sua salvação,
seria forçada a evitar um movimento
e exercendo um sensato julgamento,
dominou-se até um ponto quase incrível
e se deixou transportar sem proteção!...
Depois a águia voou, rapidamente
sobre a cidade e os campos ao redor,
cruzou colinas e ribeiras arenosas
até pousar, bem no alto, finalmente,
de uma montanha de altíssimo esplendor;
largou a princesa, mas sem lhe causar dor,
entre um círculo de pedras portentosas,
lambendo as asas, bem descansadamente...
Mais calma já, a princesa perguntou:
“Oh, águia, por que me trouxe aqui?
Sou a Princesa Gunilde, não compreende?”
E de sua própria pergunta ela zombou:
Por que falava com essa águia ali?
Que tais aves falassem nunca vi!
Mas a voz sonora da ave a surpreendeu:
“Sei muito bem quem és!” – logo afirmou.
“Eu fui buscá-la por um bom motivo:
até o presente somente em ti pensaste,
sem te importares sequer com o teu pai,
para contigo generoso e sempre ativo
em te suprir o quanto desejaste
e aos demais muitas vezes humilhaste;
tua punição adiantar de nada vai,
não irás dobrar teu coração esquivo!”
A PRINCESA E A ÁGUIA IV
“Por isso agora, além de tua pessoa,
hoje vais te ocupar com alguém mais;
eu tenho fome e vais me alimentar;
tuas sapatilhas são uma coisa atoa;
trouxe tamancos de resistências naturais,
mais um cajado de firmezas materiais;
assim, na hora em que eu regressar,
dá-me alimento ou comerei tua carne boa!”
E sem dizer outra palavra, o voo alçou,
ficou a princesa ali desamparada,
sobre a montanha sem qualquer vegetação.
A levantar-se do chão já se obrigou,
mas a montanha por demais era escalvada,
faces erguidas de forma alcantilada;
tentou descer, mas seu esforço foi em vão
e em desespero, sobre o solo se jogou!...
Só se acordando com asas a ruflar:
era a águia que voltava, já o sol posto.
“Não me buscaste sequer uma porção
de alimento para mim. Vou então te devorar!
De meu petisco vou tomar agora o gosto,
comer a carne de teu formoso rosto!...
“Tende piedade, senhora, a obrigação
é demasiada para que a possa realizar!”
“Não me ofendas, sou águia, mas sou macho!
Por sorte tua, não preciso alimentar
quaisquer filhotes
e uma chance te darei...”
E de seu bico deixou cair um cacho
de uvas maduras, cada pata a segurar
uma maçã. “Será
este o teu jantar,
minha sobremesa contigo assim compartilhei;
dou-te a graça de um dia, que longo mesmo acho!...”
A PRINCESA E A ÁGUIA V
“As frutas matarão tua fome e sede,
bela Gunilde, com castor me alimentei,
mas outra chance jamais de mim terás!
A piedade que há em mim hoje te cede,
Mas adiamento eu não repetirei!
Come agora essas frutas que te dei,
mas amanhã, sem falta, servirás
de refeição, que a fome assim me pede!”
A princesa ficou muito assustada
e até pensou não poderia comer,
mas após dar a inicial mordida,
foi pela fome logo dominada...
Mas já esfriava, e começou a tremer!
“Estás com frio, vou então te proteger;
de nada serve se ficares desnutrida,
minha refeição será assim prejudicada!”
“Deita-te agora, pois te irei aquecer
sob minhas asas.
Não tenhas medo agora...”
Então Gunilde se deitou, depauperada,
e a águia a seu lado se acolheu.
Nem por instante pensou mandá-la embora
e seu calor confortou-a nessa hora;
mergulhou em longo sono a desgraçada,
sob as asas que a águia lhe estendeu...
No outro dia, assim que o sol se abriu,
a águia a acordou sem violência:
“Vou alçar voo agora, tens até o crepúsculo;
eu voltarei... Da montanha nasce um rio,
bem na metade da falda, com potência
e tua sede acalmará com veemência;
meu alimento, porem, não pode ser minúsculo,
ou não verás o próximo arrebol!...”
A PRINCESA E A ÁGUIA VI
Gunilde percebeu a seriedade
com que a ave estava a lhe falar
e como a sede igualmente a atormentava
então ergueu-se, com vivacidade,
extremamente achou difícil escalar,
apoiada no bastão, foi a fonte procurar;
suas sandálias o caminho arrebentava,
a escorregar, na maior dificuldade...
Mas finalmente, ela encontrou a fonte
e ali bebeu até a sede se aliviar...
mas era tão árdua essa ladeira!
Já estava o sol mais alto no horizonte
e foi tentando a descida conquistar;
já sem sandálias, a sentir dilacerar
seus pés macios ao contato da pedreira,
tantas quedas levou que nem se conte!
Até que enfim, de tudo desistiu,
com grande esforço até a fonte retornou,
braços e pernas já rubros de sangue...
Mas para seu alívio, descobriu
que a subida mais fácil se mostrou;
chegou exausta e entre as pedras se deitou:
Que eu morra agora, já me sinto exangue!
Breve no círculo de pedras já dormiu...
Só se acordou de novo com o ruflar...
Era a águia, que vinha devorá-la!
Mas nem ao menos pediu misericórdia,
aceitando que a fosse a ave matar!
Porém a águia ficou só a contemplá-la,
com novas frutas se pôs a alimentá-la
e percebeu no agudo olhar concórdia:
“Mais uma noite tua morte vou adiar...”
A PRINCESA E A ÁGUIA VII
“Eu deveria devorar-te, finalmente,
mas com teu sangue vou me contentar!”
Seus pés e braços começou a lamber
e a princesa surpreendeu-se totalmente,
pois suas feridas começavam a fechar,
sem o sinal sequer de um arranhar...
“Sem as tuas pernas não poderás me obedecer,
mas posso um olho te arrancar, contente!...”
“Por favor, Senhor Águia, não me cegues!”
A águia riu-se dela, zombeteiramente:
“Se queres pena, então beija meu bico!”
“Ai, meu senhor, farei o que me pedes!”
Deixou que a água a beijasse, docemente
e nenhum nojo sentiu, estranhamente...
“Mais uma noite a proteger-te eu fico.”
“Um segundo adiamento então me cedes?”
“Sem dúvida, mas será o derradeiro;
tuas sandálias de nada te serviram,
desprezaste os tamancos que te dei!
Desce amanhã o monte, bem ligeiro,
caminhos há que em torno dele esperam,
os tamancos e o bordão conforto geram,
mas este é o último perdão que te darei:
sem alimento de tua carne eu tomo o cheiro!”
A princesa percebeu finalidade:
seria aquele um sério julgamento
e quando a águia um novo voo alçou
ergueu-se fraca e com dificuldade,
mas dominou todo o padecimento
e com o cajado superou o impedimento,
até que ao pé da montanha se encontrou,
para a floresta a marchar com seriedade...
A PRINCESA E A ÁGUIA VIII
Mas nem sequer um pinhão ela encontrou,
nem quaisquer bagas, nem tampouco cogumelos
e foi seguindo até encontrar uma casinha...
Quem sabe aqui me ajudam... então pensou.
Estava imunda, os seus trajos belos
tão esfarrapados que dava pena vê-los!
Atendeu à sua porta uma velhinha,
que seu pedido, impaciente, lhe escutou!
“Eis uma história realmente interessante...
Como queres que eu vá crer em tal mentira?
Para uma águia queres levar comida?
O que eu percebo é que tens fome neste instante,
pela mata te perdeste em longa gira;
quem comer quer, um bom trabalho mira;
vais me ajudar, se queres minha guarida,
terás comido se em labor fores constante!...”
E desta forma, a princesa trabalhou,
igual nunca fizera antes na vida!
Colheu verduras, água foi buscar
no velho poço, pesados baldes carregou,
depois varreu o pátio, já exaurida;
passara o dia sem qualquer comida,
toda coberta pela poeira a levantar,
até que enfim a velha a dispensou!...
“Agora chega, trabalhaste bem,
mas não podes comer nessa sujeira:
vai buscar água até encher a tina!
Tens de lavar os teus trapos também!”
Gunilde obedeceu-a, bem ligeira,
Lavou as roupas e as pendurou, certeira,
e finalmente se assentou a menina,
tomando banho sem ajuda de ninguém!
A PRINCESA E A ÁGUIA IX
E para sua surpresa, as roupas no varal
estavam inteiras, sem qualquer rasgão!...
A velhinha um pão apenas lhe entregou,
mas tendo fome, não viu nisso qualquer mal,
só que ao momento de iniciar a refeição
surgiu-lhe um corvo, com olhar pidão!
Em um impulso, um pedaço lhe jogou
do pão dormido, num gesto natural!...
Mas o corvo o engoliu de uma bicada!
Cheia de pena, lhe deu mais um pedaço
e depois outro, até que descobriu
que para ela não sobrara nada!...
Então a velha chegou, deu-lhe um abraço:
“Da tua história agora aceito o traço!
Se uma faminta com o corvo repartiu,
então sua águia quer mesmo ver alimentada!”
E lhe entregou um pacote bem fechado;
a princesinha, sem revolta, agradeceu
e se pôs a caminho da montanha,
seu estômago a reclamar desesperado!
Com os tamancos, bem fácil ascendeu
e logo a águia fortes asas bateu:
“Tua recompensa agora será ganha!”
E engoliu todo o pacote, sem cuidado!
E em suas garras tomou-a novamente,
até deixá-la em seu próprio jardim
e sobre um banco de mármore ela dormiu:
ao acordar-se, percebeu estranhamente
que suas sandálias ainda calçava assim,
sem sentir fome ou qualquer sede, enfim...
Será que tudo foi um sonho?
Porém viu
a águia a pousar tranquila na sua frente...
A PRINCESA E A ÁGUIA X
Ante seus olhos, a águia transformou-se
em um príncipe garboso e bem trajado:
“Sou Gunther, teu desprezado pretendente;
Minha fada-madrinha de mim apiedou-se
E percebendo como estava amargurado,
Com ilusões conjurou o nosso fado;
perdão te peço se te fui insolente,
mas meu amor por ti mais afirmou-se!...”
Pois demonstraste ter meigo coração,
quando o corvo, que era eu, alimentaste
e enfrentando os desafios com coragem,
só aumentaste minha admiração...
Sem teres nojo, meu bico até beijaste
e a dormir sob minhas asas aceitaste...
A águia que era eu, estranha imagem,
nenhum mal te provocou nessa ocasião...
Ainda confusa, a princesa consentiu
e no seu banco deixou-se ser beijada,
das peripécias dando todo o seu perdão;
o príncipe em águia outra vez se viu:
“Vou pedir ao rei teu pai tua mão amada;
com minha corte te achas conformada?”
Gunilde esta promessa fez-lhe, e então
A águia alçou voo e pelos céus sumiu...
Algumas horas depois, o rei chegou,
pela guarda e por Gunther escoltado
a quem Gunilde, gentilmente, deu a mão...
Assim sua boda a seguir se celebrou
e como em conto de fadas é contada,
viveu a dupla feliz e apioxonada,
não para sempre, que “sempre” é um ilusão,
mas enquanto o destino os apoiou...
EPÍLOGO
Naturalmente, chegou a fada-madrinha,
sem de algum jeito lembrar qualquer velhinha,
mas qual mulher de beleza deslumbrante!
Sete dons concedeu ao par brilhante,
que por anos sem conta ainda viveu
e deles longa dinastia descendeu...
Entrou pela porta e saiu pela cozinha:
quem quiser outra, vá pedir à sua madrinha!
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