domingo, 10 de janeiro de 2021


 


A PRINCESA E A ÁGUIA

Conto de fadas atribuído a siegfried heinz hammer (1890), adaptação e versão poética de william lagos, 6 maio 2020

A PRINCESA E A ÁGUIA I

 

Em certo reino nos Alpes encontrado

habitava uma belíssima princesa;

mais do que bela, porém, era orgulhosa,

que matrimônio sempre havia rejeitado,

mas pretendentes de grande nobreza

sua mão graciosa haviam pedido com presteza,

Gunilde, a princesa, a mostrar-se desdenhosa,

Cada um dos pretendentes desprezado!

 

Ela se achava ser melhor do que ninguém

e com palavras duras, humilhava

os príncipes e nobres que a buscavam...

Certo dia, do reino ao lado, veio também

Gunther, o herdeiro, que igual a cortejava;

o rei, pai de Gunilde, certamente o aprovava,

porém a cada ocasião que se encontravam,

ela o tratava pior que ao palafrém!  (*)

(*) Cavalo de raça, montaria de senhora.

 

Um dia, a corte toda ali reunida,

ela o tratou com um desprezo tal,

que o príncipe, envergonhado, retirou-se,

uma atitude pessimamente recebida

no reino de seu pai, é natural,

que em embaixada enviou o seu jogral

exigindo desculpas, senão, ameaçou-se,

fariam guerra e a nação seria invadida!

 

O próprio fato de que esse abaixador

não fosse nobre, mas só o bobo da corte,

era ofensa até maior que a anterior feita;

mesmo assim, ofendido em seu pudor,

o pai da princesa odiaria tal sorte,

mandou ao vizinho presentes de bom porte,

comunicando o castigo a que sujeita

seria sua filha, assim mantida em desfavor!

 

A PRINCESA E A ÁGUIA II

 

E em consequência, proibiu-a de sair

ou ter contato com quaisquer visitas,

restrita apenas a seu apartamento,

até que resolvesse desculpas a pedir

e que aceitasse a corte de conquistas

do nobre príncipe, de palavras tão bonitas,

mas a jovem recusou assentimento,

preferindo os movimentos restringir!

 

Não que de fato fosse horrível seu castigo,

que ela gostava de ler e de pintar

e tinha acesso a seu jardim privado,

suas numerosas aias a continuar consigo:

algumas flautas sabiam bem tocar,

o alaúde da princesa a acompanhar;

não ir aos bailes não se trazia cuidado,

bem confortável em seu amplo abrigo...

 

Passeava assim em seu jardim maravilhoso

e das cozinhas as iguarias lhe chegavam,

ainda ataviada com seus belos vestidos,

seus espelhos a lhe mostrar rosto formoso;

seus passatempos de fato lhe bastavam,

porque os livros de poesia lhe agradavam,

suas pinturas de desenho cuidadoso,

constantemente seus materiais substituídos...

 

Mas certo dia, andando a sós no seu jardim,

espantada escutou forte ruflar de asas

e uma águia viu do céu descer, imensa,

velozes voltas a descrever assim,

tão rápido a voar que logo rasas

parábolas fazia sobre as casas;

ficou a princesa em seu terror tão tensa

que nem lembrou de se escapar, enfim!

 

A PRINCESA E A ÁGUIA III

 

Assim a águia a empolgou, num sopetão,

subindo aos ares num rápido momento!

Mesmo sentindo um terror indescritível,

compreendeu bem, que para sua salvação,

seria forçada a evitar um movimento

e exercendo um sensato julgamento,

dominou-se até um ponto quase incrível

e se deixou transportar sem proteção!...

 

Depois a águia voou, rapidamente

sobre a cidade e os campos ao redor,

cruzou colinas e ribeiras arenosas

até pousar, bem no alto, finalmente,

de uma montanha de altíssimo esplendor;

largou a princesa, mas sem lhe causar dor,

entre um círculo de pedras portentosas,

lambendo as asas, bem descansadamente...

 

Mais calma já, a princesa perguntou:

“Oh, águia, por que me trouxe aqui?

Sou a Princesa Gunilde, não compreende?”

E de sua própria pergunta ela zombou:

Por que falava com essa águia ali?

Que tais aves falassem nunca vi!

Mas a voz sonora da ave a surpreendeu:

“Sei muito bem quem és!” – logo afirmou.

 

“Eu fui buscá-la por um bom motivo:

até o presente somente em ti pensaste,

sem te importares sequer com o teu pai,

para contigo generoso e sempre ativo

em te suprir o quanto desejaste

e aos demais muitas vezes humilhaste;

tua punição adiantar de nada vai,

não irás dobrar teu coração esquivo!”

 

A PRINCESA E A ÁGUIA IV

 

“Por isso agora, além de tua pessoa,

hoje vais te ocupar com alguém mais;

eu tenho fome e vais me alimentar;

tuas sapatilhas são uma coisa atoa;

trouxe tamancos de resistências naturais,

mais um cajado de firmezas materiais;

assim, na hora em que eu regressar,

dá-me alimento ou comerei tua carne boa!”

 

E sem dizer outra palavra, o voo alçou,

ficou a princesa ali desamparada,

sobre a montanha sem qualquer vegetação.

A levantar-se do chão já se obrigou,

mas a montanha por demais era escalvada,

faces erguidas de forma alcantilada;

tentou descer, mas seu esforço foi em vão

e em desespero, sobre o solo se jogou!...

 

Só se acordando com asas a ruflar:

era a águia que voltava, já o sol posto.

“Não me buscaste sequer uma porção

de alimento para mim.  Vou então te devorar!

De meu petisco vou tomar agora o gosto,

comer a carne de teu formoso rosto!...

“Tende piedade, senhora, a obrigação

é demasiada para que a possa realizar!”

 

“Não me ofendas, sou águia, mas sou macho!

Por sorte tua, não preciso alimentar

quaisquer filhotes  e uma chance te darei...”

E de seu bico deixou cair um cacho

de uvas maduras, cada pata a segurar

uma maçã.  “Será este o teu jantar,

minha sobremesa contigo assim compartilhei;

dou-te a graça de um dia, que longo mesmo acho!...”

 

A PRINCESA E A ÁGUIA V

 

“As frutas matarão tua fome e sede,

bela Gunilde, com castor me alimentei,

mas outra chance jamais de mim terás!

A piedade que há em mim hoje te cede,

Mas adiamento eu não repetirei!

Come agora essas frutas que te dei,

mas amanhã, sem falta, servirás

de refeição, que a fome assim me pede!”

 

A princesa ficou muito assustada

e até pensou não poderia comer,

mas após dar a inicial mordida,

foi pela fome logo dominada...

Mas já esfriava, e começou a tremer!

“Estás com frio, vou então te proteger;

de nada serve se ficares desnutrida,

minha refeição será assim prejudicada!”

 

“Deita-te agora, pois te irei aquecer

sob minhas asas.  Não tenhas medo agora...”

Então Gunilde se deitou, depauperada,

e a águia a seu lado se acolheu.

Nem por instante pensou mandá-la embora

e seu calor confortou-a nessa hora;

mergulhou em longo sono a desgraçada,

sob as asas que a águia lhe estendeu...

 

No outro dia, assim que o sol se abriu,

a águia a acordou sem violência:

“Vou alçar voo agora, tens até o crepúsculo;

eu voltarei...  Da montanha nasce um rio,

bem na metade da falda, com potência

e tua sede acalmará com veemência;

meu alimento, porem, não pode ser minúsculo,

ou não verás o próximo arrebol!...”

 

A PRINCESA E A ÁGUIA VI

 

Gunilde percebeu a seriedade

com que a ave estava a lhe falar

e como a sede igualmente a atormentava

então ergueu-se, com vivacidade,

extremamente achou difícil escalar,

apoiada no bastão, foi a fonte procurar;

suas sandálias o caminho arrebentava,

a escorregar, na maior dificuldade...

 

Mas finalmente, ela encontrou a fonte

e ali bebeu até a sede se aliviar...

mas era tão árdua essa ladeira!

Já estava o sol mais alto no horizonte

e foi tentando a descida conquistar;

já sem sandálias, a sentir dilacerar

seus pés macios ao contato da pedreira,

tantas quedas levou que nem se conte!

 

Até que enfim, de tudo desistiu,

com grande esforço até a fonte retornou,

braços e pernas já rubros de sangue...

Mas para seu alívio, descobriu

que a subida mais fácil se mostrou;

chegou exausta e entre as pedras se deitou:

Que eu morra agora, já me sinto exangue!

Breve no círculo de pedras já dormiu...

 

Só se acordou de novo com o ruflar...

Era a águia, que vinha devorá-la!

Mas nem ao menos pediu misericórdia,

aceitando que a fosse a ave matar!

Porém a águia ficou só a contemplá-la,

com novas frutas se pôs a alimentá-la

e percebeu no agudo olhar concórdia:

“Mais uma noite tua morte vou adiar...”

 

A PRINCESA E A ÁGUIA VII

 

“Eu deveria devorar-te, finalmente,

mas com teu sangue vou me contentar!”

Seus pés e braços começou a lamber

e a princesa surpreendeu-se totalmente,

pois suas feridas começavam a fechar,

sem o sinal sequer de um arranhar...

“Sem as tuas pernas não poderás me obedecer,

mas posso um olho te arrancar, contente!...”

 

“Por favor, Senhor Águia, não me cegues!”

A águia riu-se dela, zombeteiramente:

“Se queres pena, então beija meu bico!”

“Ai, meu senhor, farei o que me pedes!”

Deixou que a água a beijasse, docemente

e nenhum nojo sentiu, estranhamente...

“Mais uma noite a proteger-te eu fico.”

“Um segundo adiamento então me cedes?”

 

“Sem dúvida, mas será o derradeiro;

tuas sandálias de nada te serviram,

desprezaste os tamancos que te dei!

Desce amanhã o monte, bem ligeiro,

caminhos há que em torno dele esperam,

os tamancos e o bordão conforto geram,

mas este é o último perdão que te darei:

sem alimento de tua carne eu tomo o cheiro!”

 

A princesa percebeu finalidade:

seria aquele um sério julgamento

e quando a águia um novo voo alçou

ergueu-se fraca e com dificuldade,

mas dominou todo o padecimento

e com o cajado superou o impedimento,

até que ao pé da montanha se encontrou,

para a floresta a marchar com seriedade...

 

A PRINCESA E A ÁGUIA VIII

 

Mas nem sequer um pinhão ela encontrou,

nem quaisquer bagas, nem tampouco cogumelos

e foi seguindo até encontrar uma casinha...

Quem sabe aqui me ajudam... então pensou.

Estava imunda, os seus trajos belos

tão esfarrapados que dava pena vê-los!

Atendeu à sua porta uma velhinha,

que seu pedido, impaciente, lhe escutou!

 

“Eis uma história realmente interessante...

Como queres que eu vá crer em tal mentira?

Para uma águia queres levar comida?

O que eu percebo é que tens fome neste instante,

pela mata te perdeste em longa gira;

quem comer quer, um bom trabalho mira;

vais me ajudar, se queres minha guarida,

terás comido se em labor fores constante!...”

 

E desta forma, a princesa trabalhou,

igual nunca fizera antes na vida!

Colheu verduras, água foi buscar

no velho poço, pesados baldes carregou,

depois varreu o pátio, já exaurida;

passara o dia sem qualquer comida,

toda coberta pela poeira a levantar,

até que enfim a velha a dispensou!...

 

“Agora chega, trabalhaste bem,

mas não podes comer nessa sujeira:

vai buscar água até encher a tina!

Tens de lavar os teus trapos também!”

Gunilde obedeceu-a, bem ligeira,

Lavou as roupas e as pendurou, certeira,

e finalmente se assentou a menina,

tomando banho sem ajuda de ninguém!

 

A PRINCESA E A ÁGUIA IX

 

E para sua surpresa, as roupas no varal

estavam inteiras, sem qualquer rasgão!...

A velhinha um pão apenas lhe entregou,

mas tendo fome, não viu nisso qualquer mal,

só que ao momento de iniciar a refeição

surgiu-lhe um corvo, com olhar pidão!

Em um impulso, um pedaço lhe jogou

do pão dormido, num gesto natural!...

 

Mas o corvo o engoliu de uma bicada!

Cheia de pena, lhe deu mais um pedaço

e depois outro, até que descobriu

que para ela não sobrara nada!...

Então a velha chegou, deu-lhe um abraço:

“Da tua história agora aceito o traço!

Se uma faminta com o corvo repartiu,

então sua águia quer mesmo ver alimentada!”

 

E lhe entregou um pacote bem fechado;

a princesinha, sem revolta, agradeceu

e se pôs a caminho da montanha,

seu estômago a reclamar desesperado!

Com os tamancos, bem fácil ascendeu

e logo a águia fortes asas bateu:

“Tua recompensa agora será ganha!”

E engoliu todo o pacote, sem cuidado!

 

E em suas garras tomou-a novamente,

até deixá-la em seu próprio jardim

e sobre um banco de mármore ela dormiu:

ao acordar-se, percebeu estranhamente

que suas sandálias ainda calçava assim,

sem sentir fome ou qualquer sede, enfim...

Será que tudo foi um sonho?  Porém viu

a águia a pousar tranquila na sua frente...

 

A PRINCESA E A ÁGUIA X

 

Ante seus olhos, a águia transformou-se

em um príncipe garboso e bem trajado:

“Sou Gunther, teu desprezado pretendente;

Minha fada-madrinha de mim apiedou-se

E percebendo como estava amargurado,

Com ilusões conjurou o nosso fado;

perdão te peço se te fui insolente,

mas meu amor por ti mais afirmou-se!...”

 

Pois demonstraste ter meigo coração,

quando o corvo, que era eu, alimentaste

e enfrentando os desafios com coragem,

só aumentaste minha admiração...

Sem teres nojo, meu bico até beijaste

e a dormir sob minhas asas aceitaste...

A águia que era eu, estranha imagem,

nenhum mal te provocou nessa ocasião...

 

Ainda confusa, a princesa consentiu

e no seu banco deixou-se ser beijada,

das peripécias dando todo o seu perdão;

o príncipe em águia outra vez se viu:

“Vou pedir ao rei teu pai tua mão amada;

com minha corte te achas conformada?”

Gunilde esta promessa fez-lhe, e então

A águia alçou voo e pelos céus sumiu...

 

Algumas horas depois, o rei chegou,

pela guarda e por Gunther escoltado

a quem Gunilde, gentilmente, deu a mão...

Assim sua boda a seguir se celebrou

e como em conto de fadas é contada,

viveu a dupla feliz e apioxonada,

não para sempre, que “sempre” é um ilusão,

mas enquanto o destino os apoiou...

 

EPÍLOGO

 

Naturalmente, chegou a fada-madrinha,

sem de algum jeito lembrar qualquer velhinha,

mas qual mulher de beleza deslumbrante!

Sete dons concedeu ao par brilhante,

que por anos sem conta ainda viveu

e deles longa dinastia descendeu...

Entrou pela porta e saiu pela cozinha:

quem quiser outra, vá pedir à sua madrinha!


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