domingo, 3 de janeiro de 2021


 

EXECUÇÃO I   (31-7-79)

 

Envolta assim, num manto de vermelho,

do mesmo rubro aroma menstrual,

tua carne que se evola, por mortal,

eterna faz-se no eternal conselho.

 

Envolto eu mesmo no manto do perfume,

minha carne toda pronta e voluntário

em ti me adentro e as contas do rosário,

rubras em mim, no mesmo e rubro gume,

 

coleto sem cuidado e na certeza

de que essa antiga e triunfal vereda

é guante mais perfeito em sua beleza,

 

bainha feita espada, que arremeda

um nó de fios de aço e de impureza,

sedoso e fino como um fio de seda.

 

EXECUÇÃO II (20-5-2010)

 

Passados trinta anos, tal bainha

ainda procuro, sem o menor asco.

Mas já é tarde para ser carrasco,

o tempo passa e o sangue não se alinha

 

mais mensalmente.  A morte se avizinha,

enquanto o tempo, lentamente, masco.

Os passageiros, que vinham nesse casco,

saíram todos da fonte pequeninha.

 

Cada um por si nadou para o exterior:

foram trezentos ou mais em rubro pranto,

foram saindo, um por um, de cada vez,

 

até que o jorro da fonte, sem ardor,

foi-se extinguindo ao derradeiro canto

de luto inútil, entoado a cada mês.

 

EXECUÇÃO III

 

É outra agora a mesma exaltação:

as gotas rubras da fonte já não minam.

Depois que tudo passa, nem me ensinam,

pois bem conheço o fim de sua razão.

 

Embora haja hormonal reposição

(e é desse modo que as carnes não se afinam,

mas permanecem e ainda se aproximam)

nunca mais haverá fecundação.

 

Porém o sangue branco derramado (*)

ainda é o mesmo e vem acompanhado

por milhares de vidas em botão,

 

que se ressecam todas, pobre vinho,

sendo lavadas apenas, sem carinho,

na morte impura de impossível geração.

(*) O sangue vermelho se transforma em sêmen branco.

 

PLANTIO I – 12 ABR 2020

 

Tomei as achas na mão e as fui levar

ao lugar em que a árvore se achava;

achando achas nesse dia pensava

que uma árvore poderia restaurar...

as achas na lareira então buscava,

mesmo as queimadas pude segurar,

de rubro e negro os dedos a manchar,

com a dor sentida a todas restaurava...

e ainda tábuas do piso eu arrancava,

que dessa mesma árvore provinham;

a carroceria desmontei de um caminhão;

tudo levei à raiz que ali restava,

com fita e cola as peças se mantinham,

cada qual na mais perfeita posição.

 

PLANTIO II

 

Mas nem por isso a árvore brotava,

faltavam flores e fui buscar sementes,

fertilizando uma a uma as mais potentes,

juntei as folhas que no chão achava

e com cuidado, a cada qual colava,

nos mesmos galhos de que eram provenientes,

mas muitos ramos se perderam permanentes,

então as folhas sobre o tronco colocava

e insistia, suplicando a Flora

que nova vida nessa árvore instilasse;

sorriu-se a deusa desta minha imprudência,

mas foi gentil quando mandou-me embora:

algo faltava de necessária classe,

os meus rascunhos ressecados de impardência...

 

PLANTIO III

 

E percebi, para meu próprio malefício,

que essas folhas prensadas em cartão

faziam parte integral da brotação

e as havia corrompido com meu vício

de poeta querer ser, em lanifício

de um tecido de versos em borrão

de tinta negra ou azul da criação,

só para mim prestando um benefício...

e fui buscar os rascunhos que guardava

e mais os outros que a limpo já passei

e ainda aqueles que já havia rasgado;

fui às gavetas em que os reservava,

fui ao presente em que tantos digitei,

fui procurá-las permeio a meu passado.

 

PLANTIO IV

 

Então, resma de versos no bornal,

voltei à árvore ainda semi-restaurada,

um soneto em cada fenda ali encontrada,

uma quadrinha enrolada num jornal,

uma tríade de sonetos mal e mal

cabendo nas forquilhas, amassada,

uma quadra entre as folhas pendurada,

hexapoemas entre as raízes, afinal...

porém nem este esforço ainda bastava

e disse a deusa: “Faz um sacrifício!”

rasguei os pulsos que rasgavam versos

e quando o sangue por ali jorrava,

numa cascata de rubro precipício,

vi brotar ramos de sangue ali dispersos.

 

BIDIMENSIONAIS I – 13 ABR 20

 

QUANDO SE ESCREVE NUMA FOLHA DE PAPEL

SURGEM OS TRAÇOS DE FINA DIMENSÃO,

A CONSERVAR AS PALAVRAS DA VERSÃO,

MUITO MAIS FINOS QUE O MAIS FINO MEL;

ENTÃO OS ABSORVE, COMO UM GEL

E NAS FIBRAS SE ENTRANHAM EM QUE ESTÃO;

MONODIMENSIONAL SE TORNA CADA AÇÃO

ANTES DESCRITA EM GUIRLANDA E OUROPEL;

ASSIM OS VERSOS QUE SÓLIDOS QUISERA

CONSERVAM-SE NA SOLIDEZ DO MATERIAL,

MAIS FINOS MESMO QUE UMA FOLHA DE PAPIRO

E EM VÃO PROCURO SOLUÇÃO NA ESPERA,

TOCO NAS LETRAS SEM PROJEÇÃO REAL,

GASTO AS PAPILAS NA SENDA DESSE GIRO.

 

BIDIMENSIONAIS II

 

ENTÃO EU BUSCO UM NOVO FORO ACHAR

E OS DIGITO COM O MÁXIMO CUIDADO;

MAS SOBRE A TELA EU VEJO, DESOLADO,

NENHUM RELEVO QUE POSSA ALI TOCAR;

E SE ACASO OS MANDO ENCAMINHAR,

PARA AS MALHAS DA REDE, VEJO CONTRARIADO,

NEM AO MENOS NO ARQUIVO DESTINADO,

QUE NENHUMA DIMENSÃO HEI DE ENCONTRAR;

E SE IMPRIMO O ARQUIVO, INSATISFEITO,

MESMO QUE SEJA COM VELOZ JATO DE TINTA,

SUA MONODIMENSIONALIDADE PERMANECE;

LOGO O POEMA SE DISTRIBUI DA FOLHA AO EITO,

MENOS NAS MARGENS EM QUE NADA SE PINTA

E NENHUMA NOVA DIMENSÃO LHE DESCE.

 

BIDIMENSIONAIS III

 

PORÉM PERCEBO QUE ESTÃO EM LINHA RETA

E QUE OS VERSOS GUARDAM ENTRE SI DISTÂNCIA;

  UM RASGO VERTICAL DE DISCORDÂNCIA:

DIGAMOS QUE UMA ALTURA ATÉ SE AFETA!

E QUANDO CADA LINHA SE COMPLETA,

SURGE NOVA DIMENSÃO, COM ELEGÂNCIA,

NESSE RASGO HORIZONTAL DE CONCORDÂNCIA:

DIGAMOS QUE A LARGURA SE CONCRETA!

POIS SÃO DE FATO BIDIMENSIONAIS,

MEU CRITÉRIO ANTERIOR ERA ENGANOSO...

E QUE ACONTECE AO ENCONTRAREM A VISÃO

DE TEUS OLHOS? SÃO TRIDIMENSIONAIS!

E ENCONTRADO CORAÇÃO QUE SEJA DADIVOSO,

NA ALMA OCUPAM UMA QUARTA DIMENSÃO!

 

CALLEJUELAS I – 14 ABRIL 20

(Ruazinhas Estreitas)

 

Na parte antiga da cidade as ruas

são bem estreitas; e moro bem aqui.

As janelas da frente, quando abri

abrem passagem às vizinhas como puas.

 

Sem os postigos, talvez mulheres nuas

eu avistasse e de fato, as entrevi,

mesmo que nunca de propósito assisti,

nem todas são delgadas como gruas...

 

mas quem costuma ver intimidades

são as pedras velhas deste calçamento,

salvo se usem bermudas a contento;

as calçadas igualmente e sem maldades

entre as saias vão espiar com alegria

ou sob a batina de um padre, que heresia!...

 

CALLEJUELAS II

 

Aqui passavam enterros, comumente

e apenas casinholas existiam;

seus tijolos com barro se prendiam,

sem desabarem muito facilmente.

 

Mas as ruas se estreitavam quando a gente

os ataúdes braço a braço conduziam,

que os mortos espreitar não pretendiam,

sua passagem a diminuir de modo urgente.

 

Só depois que a viver aqui passei,

em uma casa bastante reformada,

com meus olhos as calçadas afastei

e a rua vai, aos poucos, se ampliando,

enquanto eu mesmo a miro da sacada,

com o canto de meus lábios se alegrando.

 

CALLEJUELAS III

 

Mesmo porque construíram as capelas

noutra rua, à esquerda de quem desce

e nelas o capelão faz a sua prece,

ali abençoa a imobilidade das costelas...

 

e deste modo, as minhas callejuelas

não mais recebem essa dor que tece

cada féretro que o olhar das pedras mece,

somente os vivos tropeçam sobre elas...

 

mesmo o portão antigo que se avista,

que antes marcava tétrico essa entrada,

está fechado de forma permanente;

para a direita eu olho desta pista,

duas quadras mais além na madrugada

e ainda avisto os fantasmas dessa gente...

 


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