CRISTAL
DE BEIJOS I – 7 JULHO 2020
Fui
em tua vida só um vento de passagem,
um
zéfiro de leve, que tua fronte
apenas
refrescou, calmo desponte
de
quem tocou de leve e sem coragem;
as
faces te beijei qual fiel aragem,
que
revigora e a dor que te pesponte
alivia
por vezes, sem que conte
mais
que na chuva o momento da estiagem.
Eu
não permaneci – só estive perto,
teus
lábios aflorei, mas não com os meus,
foram
teus ossos malares que beijaram,
enquanto
os meus apenas se encostaram
nas
maçãs de teu rosto,
em toque incerto,
sem
que meus lábios se fizessem teus...
CRISTAL
DE BEIJOS II
E
sendo em tua vida apenas vento,
talvez
sopro de sombra amarfanhada
ou
inaudível som de luz airada,
sussurrado
em ouvido desatento;
e
sendo apenas um cultor de teu alento,
a
respirar, faminto e inconfessado,
tal
qual adulto de um peito relembrado
que
não pode mais sugar com beijo bento,
eu
reduzi-me à champanha de tua taça,
ou
como dizem na Argentina, eu fui “champá”,
para
mim mesmo pregando essa pirraça;
contudo
creio que amor maior não há
que
esse que não pede e só perpassa,
muito
de leve, o rubor que encontra lá...
CRISTAL
DE BEIJOS III
Pois
não fui mais que beijos de cristal,
como
esses que nos doa cada taça,
num
reflexo de luz cheia de graça
ou
o mais leve pendor de um festival;
a
taça aflora os lábios em total
despreendimento
do que te congraça;
teu
fôlego só responde-lhe com jaça,
sua
superfície embaciada e sem fanal.
Mas
se o calor ainda pode incomodar,
pões
da taça a beirada no malar:
conserva
ainda do gelo e seu frescor,
de
modo igual que foi todo o meu tocar,
teu
mais gentil e amigo protetor,
sem
nem ao menos te falar de amor...
REENCARNAÇÃO
I – 8 JULHO 2020
Quando
volveste para mim dos mortos,
depois
de tantos anos de abandono,
depois
desse mergulho, em cujo sono
todos
se vão para ignotos portos,
do
teu espírito o meu tornou-se dono,
depois
de amores tontos e de abortos,
depois
de estranhas sendas, sonhos rotos,
no
inesperado esplendor de tal abono.
Mas
ainda nos vigiamos, circulamos
e
é como se essa alma no teu corpo
me
encarasse com um ar de acusação,
que
apenas de soslaio suspeitamos,
qual
se esperar ainda devesse e incorpo-
rada
tivesse junto a mim mais que ilusão!
REENCARNAÇÃO
II
A
obrigação feminina de ser bela
para
uma bemaventurada servidão,
que
desde o berço exige formação,
quão
velozmente na vida se cancela!
Mil
artifícios ensinam à donzela,
que
possa se afirmar em situação,
na
qual dela descendentes brotarão
e
até afirmam que nasceu de uma costela
e
portanto ainda faz parte integrante
de
algum homem a quem se submeter,
o
seu destino a transmissão da raça,
por
mais que haja revolta nela impante,
a
ânsia oculta de querer mais ser
que
apenas vinho dentro de uma taça!
REENCARNAÇÃO
III
Os
pitagóricos antigos afirmavam
que
a alma humana, após desencarnar,
por
mil anos habitava algum lugar
que
claramente jamais delimitavam;
e
após mil anos se purificavam,
indo
os espíritos no Rio Lethe mergulhar,
para
toda a lembrança se apagar
e
totalmente renovados retornar...
Assim
eu julgo que tua alma retornou,
sem
que da minha devesse recordar,
mas
algo lhe restou, bem lá no fundo
e
quando vejo esse olhar que desconfiou,
queria
fosse bem mais que um suspeitar
que
algo restou de um amor que foi profundo!
AGIOTA
I – 9 JUL 20
A
vida apenas recebemos por empréstimo:
a
deusa Biota a todos nos controla,
muitos
cordéis retorce numa bola,
e
nos força uns aos outros gerar préstimo;
mas
antes de nascer, firme contrato
faz
todos assinar,
com fluido universal,
em
garantia da obediência individual,
que
não pode ser quebrado em desacato.
E
deste modo, se nossa alma revestida
quer
estender sua permanência anos a fora,
atender
suas cláusulas pétreas nos devemos
e
continuamos aqui, contudo a vida
constantemente
cobra seus juros de mora
e
por isso a pouco e pouco envelhecemos...
AGIOTA
II
Cada contrato assinado com a
Biota
irá nos conceder número certo
de anos a enfrentar neste
deserto,
em que a carne sobre nós poder
denota;
mas a deusa certamente é boa
agiota,
pelo empréstimo quer juro claro e
aberto;
algo se paga em troca desse
acerto,
tal qual da alma se vendesse
quota...
Que a deusa então colocaria a
render,
outros espíritos sutilmente a
seduzir
à permanência neste mundo
material...
Masoquistas, talvez, querendo
aqui sofrer,
quiça alguma culpa pensando
dirimir,
por corrupção ou por falha
espiritual...
AGIOTA
III
Não sei de onde me proveio a
ideia,
mas uma vida prolongada sai mais
cara
e suicídio é solução tão só
ignara,
paga-se o juro sem o gozo da
epopeia...
Ou tudo isso é só um canto de
sereia,
que os artifícios a descantar não
para,
em sedução agridoce ou dulcemara,
nos compassos de sua longa
melopeia...
Por enquanto, envelheço
devagar...
Talvez bons termos eu tenha
negociado
e aqui esteja mais ou menos descansado,
até que a deusa se decida a me
buscar,
ou a seu irmão, Thanatos, me
entregar, (*)
um vasto juro a ser então
determinado...
(*) O deus grego da morte é masculino, como o
nórdico.
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