DESTINO DE EPÍLOGO I – 9 JUN 20
Nem toda copla começa pelo
início:
há muita vez que se inicia pelo
fim;
ninguém se espante de que seja
assim,
chega o final excitado num
bulício,
a murmurar nos ouvidos como um
vício
que se repete sem cessar e,
enfim,
tanta insistência se insinua em
mim
e pelos dedos se escoa sem
resquício.
E como a casa, que se ergue do
alicerce,
os tijolos das paredes
assentados,
os termos são, pouco e pouco,
cimentados,
até que ao teto esse poema verse,
bem diferente às vezes do
esperado,
porém em outras com cuidado
rebocado.
DESTINO DE EPÍLOGO II
Quando se lê, há algures
divergência,
mas as palavras se encaixaram como
Lego:
é a delícia de às regras ter
apego,
ritmo e rima presentes em
potência,
quando a cesura imprime sua
cadência;
sobe o ribeiro pelo inverso rego,
as rochas e calhaus em espanto
cego,
de Heráclito a contrariar a
adstringência.
Quando se lê, geralmente não se
pode
notar que o início veio pelo
epílogo,
esse o destino do soneto
marchetado
pelas tésseras verbais, embora
rode
contra a corrente que prediria o
prólogo,
ante a nascente finalmente
dispersado.
DESTINO DE EPÍLOGO III
Não sei se em verso livre isso é
possível,
por mais que o oposto te pareça
necessário,
não que tenha experimentado este
fadário;
em verso branco, contudo, é mais
factível.
(Dizem que os chineses, em tempo
já esquecível,
primeiro erguiam os telhados, em
contrário,
apoiados em colunas, proteção
para o operário:
caso chovesse, era a obra ainda exequível...)
Tal como ocorre, muito poema é
amargo,
conforme indica a sua conclusão,
por mais que o início pareça ter
doçura...
assim o epílogo a si toma esse
encargo
de à tristeza dar plena
expressão,
porém contida em breve toque de
ternura...
FORTUNA I – 10 JUN 20
teu beijo foi meu destino, nessa roda inesperada,
como os números da víspora, retirados de um saquinho,
bem diverso desse bingo, que hoje é tão comezinho,
em que programa digital escolhe o ponto a ser cantado.
teu beijo foi meu destino, nessa rima completada,
em qualquer ponto de sonho, na memória já mesquinho,
esquecido ao amanhecer, morto por um passarinho,
que cantava indiferente, só seu ninho bem guardado.
teu beijo foi meu destino, vi na palma desta mão
essa letra inapagável que do berço foi trazida,
(sei muito bem por tantos outros partilhada...)
teu beijo foi meu destino, gravado no coração,
porém toda a ocasião sobre a boca foi perdida,
nesse ideal quase sinistro a que chamam de ilusão!
FORTUNA II
teu beijo foi meu
destino, teu beijo que nunca tive,
foi tão somente fantasma que guardo dentro de mim,
foi nada mais que um sorriso, um relance carmesim,
como as cartas baralhadas, mera ilusão que revive.
teu beijo foi meu destino, estilete que se crive,
que o destino zombeteiro, como palma de jardim,
uma simples watsônia, rebrotada do capim,
lançou rígida no peito, sem sequer que este se esquive.
foi o beijo que não houve, foi abraço sempre adiado,
alguns instantes de encanto, longas noites de degredo,
longas cartas de magia, sonetos de amor sem par...
foram passeios à noite, sem nos tocar, lado a lado,
alguns encontros furtivos, breve sonho de segredo,
segredo afinal tão bobo... nunca houve o que ocultar!
FORTUNA III
mas mesmo que não houvesse, como ocultar eu queria
algum beijo que tivesse, um suspiro que gemesse,
qualquer carícia na face, que um dar-de-ombros esquece
ou um segredo de menina, que em pureza poderia
arquivar nesse escaninho, nessa página vazia,
que ao folhear encontrasse essa límpida benesse,
um segredo cochichado, tal qual se sussurra prece,
breve súplica, talvez, que a padroeira nos daria!...
ainda guardo essa lembrança do beijo que nunca tive,
ainda sinto o sabor da boca nas comissuras,
ainda sinto seu faro das narinas nas fissuras
desse beijo destinado a ser beijo que se esquive
e porque jamais foi tido, talvez mais será lembrado
que qualquer beijo roubado e igual ofensa descartado.
POESIA E PROFECIA I – 11 JUNHO 2020
Eu já nem faço mais questão de que me escutem:
tal qual Cassandra, pela vida a fora,
estive sempre certo e a toda a hora
os demais discordavam, no prazer com que refutem.
Pouco me importa agora que contra o certo lutem
por tanta situação que hoje à memória aflora;
provei-me sempre certo ao longo desse outrora,
mesmo que acertos tão pouco me reputem.
Somente ao concordar com outrem é que errei
e me envolvi no mesmo redemoinho;
o mais tolo fui eu, que agi errado,
só para concordar com alguma a quem amei,
nessa barganha boba por um toque de carinho
daquela que se achava sentada de meu lado.
POESIA E PROFECIA II
Dizem que poeta e profeta compartilham
de idêntica raiz, que desce a inspiração
sobre o profeta de igual e mesma mão
que aos cantores indica os versos que mais brilham.
Há versos na Escritura que a esta crença atilham
e lá também se afirma igual desilusão,
que algum profeta raro encontra aceitação,
que do poeta os versos no geral se estilham.
Porque é tão fácil para alguém se deixar influenciar,
sem a menor necessidade de pensar!
Por isso se intitulam “formadores de opinião”
os âncoras que interpretam quaisquer acontecimentos
e dessa pretensão acham plena aceitação:
no dia seguinte, mil repetem tal noção!
POESIA E PROFECIA III
Embora em política não me enfie,
sei muito bem ter versos inquietantes,
e me surpreendem mesmo alguns instantes
as opiniões que algum soneto crie.
Nem sempre crenças são de que me fie,
mas não pretendem ser beligerantes;
brotam apenas, como tanto disse antes,
letras que insistem que não mais adie.
Meus versos são poesia e nada mais,
da profecia jamais toco trombeta,
descrevo no geral o já sentido,
com algumas ideias conjecturais
sobre um destino de leigo e não profeta
mas que lamento jamais será cumprido!
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