domingo, 17 de janeiro de 2021


 

 

DESTINO DE EPÍLOGO I – 9 JUN 20

 

Nem toda copla começa pelo início:

há muita vez que se inicia pelo fim;

ninguém se espante de que seja assim,

chega o final excitado num bulício,

a murmurar nos ouvidos como um vício

que se repete sem cessar e, enfim,

tanta insistência se insinua em mim

e pelos dedos se escoa sem resquício.

 

E como a casa, que se ergue do alicerce,

os tijolos das paredes assentados,

os termos são, pouco e pouco, cimentados,

até que ao teto esse poema verse,

bem diferente às vezes do esperado,

porém em outras com cuidado rebocado.

 

DESTINO DE EPÍLOGO II

 

Quando se lê, há algures divergência,

mas as palavras se encaixaram como Lego:

é a delícia de às regras ter apego,

ritmo e rima presentes em potência,

quando a cesura imprime sua cadência;

sobe o ribeiro pelo inverso rego,

as rochas e calhaus em espanto cego,

de Heráclito a contrariar a adstringência.

 

Quando se lê, geralmente não se pode

notar que o início veio pelo epílogo,

esse o destino do soneto marchetado

pelas tésseras verbais, embora rode

contra a corrente que prediria o prólogo,

ante a nascente finalmente dispersado.

 

DESTINO DE EPÍLOGO III

 

Não sei se em verso livre isso é possível,

por mais que o oposto te pareça necessário,

não que tenha experimentado este fadário;

em verso branco, contudo, é mais factível.

(Dizem que os chineses, em tempo já esquecível,

primeiro erguiam os telhados, em contrário,

apoiados em colunas, proteção para o operário:

caso chovesse, era a obra ainda exequível...)

 

Tal como ocorre, muito poema é amargo,

conforme indica a sua conclusão,

por mais que o início pareça ter doçura...

assim o epílogo a si toma esse encargo

de à tristeza dar plena expressão,

porém contida em breve toque de ternura...

 

FORTUNA I – 10 JUN 20

 

teu beijo foi meu destino, nessa roda inesperada,

como os números da víspora, retirados de um saquinho,

bem diverso desse bingo, que hoje é tão comezinho,

em que programa digital escolhe o ponto a ser cantado.

teu beijo foi meu destino, nessa rima completada,

em qualquer ponto de sonho, na memória já mesquinho,

esquecido ao amanhecer, morto por um passarinho,

que cantava indiferente, só seu ninho bem guardado.

 

teu beijo foi meu destino, vi na palma desta mão

essa letra inapagável que do berço foi trazida,

(sei muito bem por tantos outros partilhada...)

teu beijo foi meu destino, gravado no coração,

porém toda a ocasião sobre a boca foi perdida,

nesse ideal quase sinistro a que chamam de ilusão!

 

FORTUNA II

 

 teu beijo foi meu destino, teu beijo que nunca tive,

foi tão somente fantasma que guardo dentro de mim,

foi nada mais que um sorriso, um relance carmesim,

como as cartas baralhadas, mera ilusão que revive.

teu beijo foi meu destino, estilete que se crive,

que o destino zombeteiro, como palma de jardim,

uma simples watsônia, rebrotada do capim,

lançou rígida no peito, sem sequer que este se esquive.

 

foi o beijo que não houve, foi abraço sempre adiado,

alguns instantes de encanto, longas noites de degredo,

longas cartas de magia, sonetos de amor sem par...

foram passeios à noite, sem nos tocar, lado a lado,

alguns encontros furtivos, breve sonho de segredo,

segredo afinal tão bobo... nunca houve o que ocultar!

 

FORTUNA III

 

mas mesmo que não houvesse, como ocultar eu queria

algum beijo que tivesse, um suspiro que gemesse,

qualquer carícia na face, que um dar-de-ombros esquece

ou um segredo de menina, que em pureza poderia

arquivar nesse escaninho, nessa página vazia,

que ao folhear encontrasse essa límpida benesse,

um segredo cochichado, tal qual se sussurra prece,

breve súplica, talvez, que a padroeira nos daria!...

 

ainda guardo essa lembrança do beijo que nunca tive,

ainda sinto o sabor da boca nas comissuras,

ainda sinto seu faro das narinas nas fissuras

desse beijo destinado a ser beijo que se esquive

e porque jamais foi tido, talvez mais será lembrado

que qualquer beijo roubado e igual ofensa descartado.

 

POESIA E PROFECIA I – 11 JUNHO 2020

 

Eu já nem faço mais questão de que me escutem:

tal qual Cassandra, pela vida a fora,

estive sempre certo e a toda a hora

os demais discordavam, no prazer com que refutem.

 

Pouco me importa agora que contra o certo lutem

por tanta situação que hoje à memória aflora;

provei-me sempre certo ao longo desse outrora,

mesmo que acertos tão pouco me reputem.

 

Somente ao concordar com outrem é que errei

e me envolvi no mesmo redemoinho;

o mais tolo fui eu, que agi errado,

 

só para concordar com alguma a quem amei,

nessa barganha boba por um toque de carinho

daquela que se achava sentada de meu lado.

 

POESIA E PROFECIA II

 

Dizem que poeta e profeta compartilham

de idêntica raiz, que desce a inspiração

sobre o profeta de igual e mesma mão

que aos cantores indica os versos que mais brilham.

 

Há versos na Escritura que a esta crença atilham

e lá também se afirma igual desilusão,

que algum profeta raro encontra aceitação,

que do poeta os versos no geral se estilham.

 

Porque é tão fácil para alguém se deixar influenciar,

sem a menor necessidade de pensar!

Por isso se intitulam “formadores de opinião”

 

os âncoras que interpretam quaisquer acontecimentos

e dessa pretensão acham plena aceitação:

no dia seguinte, mil repetem tal noção!

 

POESIA E PROFECIA III

 

Embora em política não me enfie,

sei muito bem ter versos inquietantes,

e me surpreendem mesmo alguns instantes

as opiniões que algum soneto crie.

 

Nem sempre crenças são de que me fie,

mas não pretendem ser beligerantes;

brotam apenas, como tanto disse antes,

letras que insistem que não mais adie.

 

Meus versos são poesia e nada mais,

da profecia jamais toco trombeta,

descrevo no geral o já sentido,

 

com algumas ideias conjecturais

sobre um destino de leigo e não profeta

mas que lamento jamais será cumprido!


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