terça-feira, 19 de janeiro de 2021


 

RÉSTIAS DE LUZ I – 21 JUN 2020

 

Mais de uma vez já estendi a mão

para pegar um fragmento de papel

e meus dedos não tocaram nem cordel,

mas sorrateiro rastro da iluminação,

 

que por fresta do postigo, pelo chão,

formava uma armadilha de ouropel:

nada de amargo, nem suave como o mel:

somente a poeira ali meus dedos acharão...

 

Com um sorriso nos lábios, me repreendo;

não é a primeira vez que assim me engano;

o Sol é astuto e pela menor fenda

 

agilmente penetra... Logo a seguir atendo

a meus deveres sem sofrer o menor dano

e em breve a luz se apaga de minha senda.

 

RÉSTIAS DE LUZ II

 

O mais bonito é quando o sol se enfia

por entre os ramos da vegetação,

em especial através da galhação

de uma árvore que imponente ali se erguia.

 

Não apenas pingos de luz então se via,

que efeito havia de uma cônica ilusão,

os raios cruzavam ao redor em difração

e então moeda sobre o solo aparecia...

 

Quando criança eu até me iludiria,

que algum pirata perdera ali tesouro

e meus dedos enfiaria no capim...

 

Mas ainda hoje, quantas vezes quereria

fossem os reflexos reais pingos de ouro,

moedas vindas para me brindar assim...

 

RÉSTIAS DE LUZ III

 

E quanta vez , ao longo da existência,

nós preferimos muito mais nos iludir

que amor eterno em nós possa persistir

que a doença ou qualquer mal compensa...

 

À memória a retornar com persistência

que amor são pingos de sol a reluzir,

os intervalos da tristeza a permitir

que tais moedas alimentem nossa crença...

 

E quanta vez se brinca com a esperança,

querendo crer naquilo que é impossível

e que por ser impossível,  justifica

 

Nossa certeza inefável de bonança,

já que quanto ser possível não indica

em nossa alma um acalento inexaurível...

 

TRANQUIBERNIA I – 22 JUN 20

 

Após um ano e até mais de hibernação,

meus rascunhos acordaram-se com fome:

por entre os dedos dia após dia some,

nesse esforço de dar a todos difusão!

Esse é o motivo de assim causar perturbação

entre os amigos... Cada poema sei que come

boa parcela de seu tempo e o dia consome

dos mais gentís que me dão  aceitação!...

 

Porém prometo que em breve chega a hora

em que ao teclado irei menos digitar,

chegado o tempo de estancar-se o pressionar

ou quando eu mesmo seja levado embora

para essas plagas em que só possa esperar

qualquer ouvido em que sussurre o meu outrora!

 

TRANQUIBERNIA II

 

Até lá irei agir com igual minúcia:

três séries enviarei pela manhã,

mais três à noite, com igual afã,

a cada dia mil palavras de pelúcia

ou então outras de maior argúcia,

heresias a envolver em branca lã,

malícias transmitidas como rã,

nesse coaxar criado em branda astúcia...

 

porém sem má intenção.  Sou realmente

o portavoz de tempos atrasados

e se alguns versos são mais desvergonhados,

não vão além de uma nudez luminescente,

em que o belo e o gracioso são louvados,

mas sem qualquer exposição mais indecente.

 

TRANQUIBERNIA III

 

Qual tanta vemos hoje, infelizmente,

perdida assim a atração da pudicícia,

sem esperança revolta de malícia,

ao tudo ver-se e tocar-se facilmente.

Sem que pretenda aqui censura mais valente,

que nesse agir não vejo uma nequícia,

eu só percebo é o cansaço da letícia,

quando tantos a experimentam tão frequente.

 

Mais do que imagens, palavras é que excitam,

breve desgaste a mostrar pornografia,

se margem nega para nossa fantasia;

e assim meus versos mais sensuais suscitam

qualquer quimera subconsciente que já havia,

curtas auroras que só teus olhos fitam...

 

GOTAS DE SALIVA I – 23 JUN 2020

 

Comunicar informação só deveria

a palavra, que em si mesma é santa;

mas ao contrário, a mentira se alevanta

ante o menor pretexto que a traria.

 

É então que grade se constituiria,

na falsidade que entre os dentes canta,

o teu engano a língua alheia imanta

e com a saliva então te iludiria!

 

Será que a vida diversa não seria

se não houvesse o artifício da mentira?

Talvez aos outros muito mais se ofenderia

 

se intensamente empregássemos franqueza,

tanta verdade que claramente fira

aos corações eivados de incerteza!...

 

GOTAS DE SALIVA II

 

Até o ponto em que a memória alcança,

constantemente as mentiras evitei,

mas não querendo me gabar aqui estarei:

quando não minto encontro mais bonança.

 

Com algum par a mentira sempre dança:

se hoje eu minto, amanhã mais mentirei,

a preservar a falsidade que criei,

bem cansativa é de fato tal andança!...

 

Muito melhor é falar sempre a verdade,

pelo menos até o ponto que se lembre;

tem a mentira certo grau de opacidade,

 

logo os detalhes se perdem da invenção

e é preciso que em fascículos desmembre,

até ficar longa demais essa edição!...

 

GOTAS DE SALIVA III

 

Se por acaso, pelo título, pensaste

que eu pretendia descrever o beijo,

não era minha intenção, mas há ensejo

em que ósculo qual mentira experimentaste.

 

Ou quem sabe, foste tu que o empregaste,

mais fácil artifício, um menor pejo

a causar que mentira em que me aleijo:

por um amplexo de amor já te salvaste?

 

Desmentir beijo é bem mais raro precisar;

por mais que seja uma grade de saliva,

até o fingido beijo é bem real,

 

pois já foi dado e não se o pode retomar:

sempre algo fica dessa memória esquiva,

em mentira de amor tão consensual!

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário