VIÁTICO I
– 15 JUN 2020
São
lânguidos olhares, à guisa de alimento,
com que
me estendes oco o pano de um farnel:
se algo
busco nele, somente encontro um gel,
que me
lambuza os dedos, no crime de um momento.
E insisto
em procurar, em magro julgamento,
em meio
aos favos secos, vazios de todo o mel,
caserna
abandonada, que um dia foi quartel,
qualquer
sucesso espúrio, permeio a impedimento.
Viático
bem pobre ganhei para o caminho,
que é
estreita e dura a senda até teu coração,
buscando
fruto à margem, senão, morro faminto.
Embora eu
só quisesse ganhar o teu carinho
e fique a
dedilhar as cordas da ilusão,
sabendo
quanto é inútil mostrar-te o amor que sinto.
VIÁTICO
II
Não
obstante insisto e busco estar contigo;
és sempre
delicada, porém nada concedes;
apresto-me
a fazer favores que me pedes,
continuamente
acolho teu coração no abrigo
do meu,
em vão descuido do perigo,
mas se
busco entrar no teu, não cedes;
a
negativa é firme: embora quedes
sempre a
meu lado, teu beijo não consigo.
E não
entendo a razão de ter o teu carinho,
mas não
teu beijo, que estimava tanto.
É como se
estivesse à margem do caminho
e o invés
de percorrê-lo com meu firme passo,
visse a
estrada deslizar, em estranho canto,
do qual
reger não posso o mínimo compasso.
VIÁTICO
III
Porém nesse
caminho, que lentamente afasta
as minhas
esperanças de me dessedentar,
nada
encontro, de fato, para me alimentar:
contudo a
sua passagem de certo modo basta.
Estranho te
sentir nessa impureza casta,
pois te
moves sempre além, sem nunca te afastar
e quando
grãos de areia de amor quero buscar
a sombra
de meus dedos na poeira se desgasta.
E continuo
esperando, nem sei por que razão,
quiçá porque
no antanho o incauto julgamento
abriu
vazio altar bem fundo ao coração
e ali te
colocou, porém não a verdadeira,
tão só
essa miragem que ergui no pensamento,
enquanto
corres sempre no fluido sendeiro.
LUPANAR 1 – 16
jun 20
Alguns há que
reprovam ligações perigosas
Que dizem estou
tendo, tão só por malefício;
Eu cá, bem
quereria ciranda de bulício
Me circundasse
agora em voltas tão fogosas
Que pudera
esquecer os anos sem malícia,
Que tive em
ligações somente cuidadosas...
Meus anos
pervertidos, supinamente rosas
De puro trescalar,
estéril pudicícia!...
Que as
ligações de agora talvez me tragam vida!...
Que todo o meu
desgosto levara de vencida
E o tédio me
afastassem, em gosto de romã,
De cidra e
tamarindo, damasco e rosmaninho:
Que nestes
olhos loucos fremira do carinho
Que só se pode
achar no amor da barregã!...
LUPANAR 2
De mim esperam, certo, total fidelidade,
Que a vida transparente se mostre a cada
dia
Que apenas realize o que se permitia,
Meu tempo desgarrado em vã opacidade.
Não é por ter respeito, é bem mais por
maldade:
Que não possa eu beijar feliz a quem queria,
Porque não têm igual na sua desvalia
E assim pretendem sua maligna amizade.
Mas vejo em seu olhar o cintilar da inveja
A cada vez que notam alguém a dar-me amor,
Não que eu frequente jamais um lupanar...
São eles que ali vão, quando ocasião se
enseja,
Enquanto em olhos puros encontro meu calor,
Em tal amor compacto que nunca irão achar!
LUPANAR 3
Contudo, ainda reparo uma inveja diferente,
Porque posso escrever o que eles jamais
podem,
Mesmo quando num labor intenso se demodem,
Nada conseguem obter do esforço ingente;
Nada mais do que frases vazias de semente,
Enquanto para mim tão fácil versos rodem;
Que sobra para eles exceto que me apodem
E algum pretexto busquem no escuro de sua
mente.
Que mais que carne e sangue eu vejo nas
amantes
Esse corisco de paixão que me desperta o
verso!
Que importam, realmente, os orgasmos
cintilantes,
Se os raios sobrenadam ao longo destas
linhas
E vejo num soneto qualquer trovão converso:
Que é este o lupanar de quantas foram
minhas!
GEOMETRIA
DO VERSO I – 17 JUN 20
Redigir
longas linhas para mim é fácil:
Olha-se o
mundo com condescendência,
Ouve-se o
mundo com muchochos de paciência
E vê-se
até no podre um elemento grácil;
Porque palavras
são memória físsil,
Ansiosas de
explodir, circunferência
Inserida num
quadrado, onipotência
Do triângulo
redondo mais difícil;
Já encontrar
bons ouvidos é diverso,
Os olhos
se conservam interditos
E até as
narinas só respiram sonho
E nestes
versos de espelho me disperso,
As linhas
mortas traço em sons malditos,
Que empunho
a lupa e a ampliar me ponho.
GEOMETRIA
DO VERSO II
Eu não
pretendo atender ao telefone
Por mais
que toque hoje, pois não quero
Ouvir as
vozes que nem mais espero,
Metálicas
a soar no microfone;
Eu não
desejo ser o final do cone,
Eu não
quero escutar o desespero
De vozes
a fios presas, ou o severo
Manifestar
de um i-pod que se entone;
Não quero
um celular trazer comigo,
Nessa loucura
coletiva de mil vozes
Falando pelos
cantos de cem ruas;
O que eu
desejo é ouvir o som amigo
De tua
voz junto a mim, e que me esposes
Tua boca
ao meu ouvido com palavras nuas.
GEOMETRIA
DO VERSO III
Nenhum quadrado
pode ser aberto:
Faltando um
lado, um triângulo se forma;
Às paralelas
terceira linha deforma:
Com mais
de duas seu destino é incerto.
Três dimensões
nos versos eu acerto;
Tem essa
da palavra que reforma
As frases
tolas e num cartão conforma
Essa tua
ausência como estando perto.
A segunda
dimensão é o meu tocar,
Que pelas
teclas se perde sem parar
Quando dígito
após digito é completo;
Já a
terceira dimensão é o teu olhar,
Que do
papel os tira com afeto,
Para o
triângulo amoroso completar!...
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