PINGOS DE GELO I --
12 JUN 20
Nos caminhos da Praça da Estação
Piso as folhas dos bordos e tropeço
(que aqui chamam de plátanos) e peço
A suas bolotas que me coroem de canção.
Não sei por que resolveram, sem razão,
Mudar o nome das árvores que meço
Contra a bandeira canadense (e esqueço
O fio deste soneto em discussão...)
O que acontece é que as folhas em que
piso
São mil mensagens deixadas do passado,
Cada qual roubou fragmento de alma
Deixada pelos mortos, em seu siso
De buscarem lembranças, revelado
No tranquilo desespero de minha alma.
PINGOS DE GELO II
Percorro tais caminhos, calmamente,
Mesmo que estugue os passos a energia;
Olho os canteiros com certa nostalgia,
Sua grama amarelada e fenescente.
Não há flores nesta praça, infelizmente:
Entre os bordos pouca luz transpassaria;
Mas nos caminhos da praça então veria,
Bem no centro, o monumento ali presente.
Canhões de guerra antiga e já esquecida;
Há alguns pintores e literatos de
cimento,
Sentados mudos, sem mate, conversndo,
Sentinelas de uma época perdida,
Sem que ninguém lhes volva o pensamento
E nem sequer eu mesmo os relembrando...
PINGOS DE GELO III
Houve um tempo em que era quase moda,
Entre os voltados para ter vida saudável,
Andar ao redor destas calçadas, em amável
Conversação, quais crianças numa roda.
Mas essa gente vejo estar sumida toda,
Pois já não pensam ser recomendável
Esse passeio que julgavam confortável
Ao coração. A atual situação os incomoda.
Os passeadores mostram medo à pandemia,
Passear de máscara é mais desconfortável
E se reduz a praça, de antes apinhada,
Só ao trajeto de quem mais precisaria
À Prefeitura dirigir-se, em inapelável
Contribuição, que ali desejam negociada.
PINGOS DE GELO IV
Sobre os caminhos caem pingos de gelo,
Os perdigotos desta morte proclamada;
Santa Covide ainda não foi canonizada,
Há Dezenove anos seu processo num apelo.
Durante o outono a geada cai com zelo,
Os pingentes se condensam na calçada,
Logo a seguir já não existe quase nada,
Algum procuro, porém não consigo vê-lo.
Mais do que a geada é este pânico gerado,
Se bem que até o presente não morreu
Pessoa alguma só por tal calamidade
Em minha cidade; mas o mal foi implantado
E qual fantasma nas aléias marcho eu,
Por entre os bordos de tal longevidade.
ESCADAS DE FOGO I --- 13 JUN 2020
Em bile e linfa servi de condimento,
Aferventado por este sol malsão;
De pena e mágoa no imenso caldeirão,
Não fui mais que tempero e sedimento.
Mas nem por isso eu dei consentimento
Que meus líquidos servissem de
emulsão;
Somente a carne entreguei à
concocção,
Sem que de fato servisse de alimento.
Fui apenas o sal que o mar fornece,
Fui azeite do lagar das oliveiras,
Fui o ácido vinagre das videiras...
Fui parmesão sobre a massa
polvilhado,
Tão somente dei sabor que já se
esquece
À vida insossa deste mundo deformado...
ESCADAS DE FOGO Ii
Que ao meu redor o mundo me devore,
Já que a si mesmo devora de inopino;
Que ao meu redor, sem o menor refino,
Destrói a verde natureza que o
decore.
Não que esse aquecimento me apavore,
Global que seja... e que tantos toquem
sino!
Do conhecimento histórico o meu tino
Vai muito além do propalado folklore.
As variações climáticas são
periódicas;
Durante uma à Groenlândia é que
chegou
Leif Eriksson e a ninguém pregou
mentira,
Porque eram verdes aquelas praias
nórdicas
Dos fjords que o navegante ali encontrou,
Até tornar de um vasto inverno a
ira...
ESCADAS DE FOGO III
Hoje constroem-se vastos edifícios
Com mil degraus e vinte elevadores;
Serão escadas de fogo se os horrores
De algum incêndio produzirem
malefícios.
E de maneira oposta a esses vícios,
Naves
inventam os maiores pensadores;
Explodem os foguetes em estertores,
Deles se espera que nos tragam
benefícios.
Mesmo que hoje já se tornou
lugar-comum
Que nas florestas escadas há de fogo,
Periodicamente a explodir algum
Incêndio longo e resistente à
extinção:
Melhor então que se conquistem logo
Outros planetas a que se possa lançar
mão!...
CHUVA EM CHAMAS I – 14 JUN 20
Se tenho tanta prática em falar de
amor,
Até que ponto de amor falo,
realmente?
Por certo há o recordar subjacente,
Mas de igual modo, amornou-se o seu
calor,
De igual forma que descrever a dor
É tarefa por demais ineficiente...
Há um mecanismo de defesa
surpreendente,
Que nos leva a esquecer parte do
ardor!
Muitos sintomas até é fácil
mencionar:
Aqui doem com uma pontada aguda,
Ali foi surda essa dor e
persistente...
Mas é impossível de todo recordar,
Por mais que algum da dor o efeito
estuda,
A não ser que ela retorne
incandescente!
CHUVA EM CHAMAS II
Será que ocorre o mesmo com o amor?
Que apenas seus sintomas eu descreva?
Que em tantos sonetos já me atreva
A enciclopediar seus efeitos com
ardor?
Talvez tanto me repita em tal labor,
Por saber como esse amor minhalma
ceva.
Descrevendo em meus versos longa leva
De sintomas e de efeitos seu teor.
Porém se escrevo num momento de
paixão,
Até que ponto consigo interpretar
Isso que sinto e me consome tanto?
Até que ponto se desperta o coração
Para essa gesta de emoção se
desenhar,
Mesmo que seja na aquarela de meu
pranto?
CHUVA EM CHAMAS III
Porque amor nos alaga como chamas,
Quando chove sobre nós inesperado.
O corpo inteiro é por ele requeimado,
No estupor entusiástico das flamas...
E de descrevê-lo novamente sinto
ganas,
Será que amores com que fui
aquinhoado
Dentro do peito se tenham perfilhado
E com o teu amor a mim te irmanas...?
Não que pretenda ser meu o teu amor,
Mas que esse amor que descrevo seja
teu,
Porque o que lês fez-te tudo
recordar:
Dessa chuva em chamas de frescor,
Que no meio de suas brasas te prendeu
No amor que amaste apesar de o
lamentar?
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