quarta-feira, 6 de janeiro de 2021


 

 

MUNDOS PARALELOS I – 22 ABR 2020

 

Se em mundos paralelos de fato existem

muitos de mim, será que roubo de outros eus

os poemas que de fato seriam seus

e que minhas garras famintas ali avistem?

E se tiro esses dons que lhes assistem,

será que tiram em troca algo dos meus?

Foi para eles que perdi carinhos teus

ou de outras de ti os seus consistem?

 

Essa doutrina dos mundos paralelos

não é nova em absoluto, o Talmude

dos rabinos judeus já a mencionou

e no poder de Deus encontra os selos

para qualquer que o Passado estude,

pois tudo quanto imaginar, Deus já criou!

 

MUNDOS PARALELOS II

 

É impossível para o humano imaginar

qualquer coisa que já não tenha Deus criado:

cada mundo alternativo foi moldado,

antes que o homem viesse aqui habitar;

mas vem a física quântica afirmar

que a cada escolha feita por um lado

surgem dois caminhos e outro eu alado

segue aquele que decidimos desprezar...

 

antigamente se afirmava que uma escolha

destruiria esse possível rejeitado,

apenas havendo um caminho a se seguir,

mas parecem ser dois lados de uma folha,

cada um deles igualmente confirmado,

senão o oposto nem poderia surgir!

 

MUNDOS PARALELOS III

 

Assim a controvérsia se destrói

entre teu livre-arbítrio e o destino:

quando algo escolhes, mesmo pequenino,

seu resultado o fado teu constrói

e quando ocorre, mesmo o que te dói,

foi consequência direta desse tino:

não poderá jamais bater um sino

sem vibração que a calmaria rói...

 

e isso explica também a tua oração:

se Deus te dá seja o que for que pedes,

de uma alternativa tua o retirara;

calcula bem, antes de tua petição

para o outro quais consequência medes,

que teu milagre talvez perda lhe causara!

 

DORES INVASORAS I – 23 ABR 20

 

Sempre é possível imaginar que a dor

seja algo estanho a nós, uma entidade

que nos domina com facilidade

e se alimenta da pena e do pavor;

que não depende de biológico teor,

mecanismo a preservar a sanidade,

sem avisar que algum dano nos invade,

nem diminuir assim o seu horror...

 

mas que venha de fora, realmente

e nos perturbe pela fome sua,

tua dor criando sem qualquer motivo,

não previsão de uma defesa ingente,

pois nem ferida nem hemorragia estua,

mas crave em nós a pena como um crivo.

 

DORES INVASORAS II

 

Pois certamente já tiveste percepção,

subitânea e totalmente inesperada

de alguma dor mal e mal localizada

ou de um fincão de breve duração,

um pingo de aço nas costas de tua mão,

uma gota de chumbo em tua pisada,

a sensação de nevralgia sem morada,

a sugestão de algum mal do coração...

 

essas dores intestinais que vêm e vão,

interpretadas como gases em geral,

que examinadas não nos causam bem ou mal,

algumas vezes uma ardência ou comichão

ou no olhar inexistente argueiro,

sem deixar traços, qual fantasma arteiro?

 

DORES INVASORAS III

 

Pois certamente não chegam como aviso

de algum espinho a penetrar no pé,

de uma pressão a perturbar a sé

de nossos pensamentos, paz ou riso...

Por que razão nos dói dente do siso

que há anos arrancado foi até

ou a dor fantasma a perturbar a fé

de um amputado, além do coto liso?

 

Nada posso afirmar, só desconfio

que existam dores perdidas pelos ares,

qualquer ponto de apoio a procurar,

um triste espectro a tiritar no frio,

sem sacrifícios sobre seus altares,

que fazer ninho em teu corpo vem buscar!

 

REAL VALOR I – 24 ABRIL 20

 

Mérito e modéstia, uma aliteração

que Bulwer-Lytton nos determinou (*)

como algo de precioso que encontrou

só raramente em humana geração,

 

que do verdadeiro mérito a razão

quase sempre com prudência desconfiou

e de possuir tal dom raro gabou,

julgado hipótese desprovida de noção.

(*) Autor de ‘Os Últimos Dias de Pompeia”.

 

No verdadeiro mérito há timidez,

por sentir-se dos demais bem diferente

e o receio de inveja provocar,

sempre um mérito discreto que, talvez,

não seja insegurança ali presente,

porém faceta do próprio dom a rebrilhar.

 

REAL VALOR II

 

Modéstia não se deve desdenhar,

como qualquer conotação de falsidade;

a admiração que se desperte, na verdade,

por um mérito que se possa observar,

 

não é necessariamente de aceitar

por quem a recebeu com sobriedade,

pois troça teve no passado em quantidade

e seu reconhecimento é de espantar.

 

Até que ponto um elogio é verdadeiro,

até que ponto é admiração sincera,

sem uma mescla de despeito ou zombaria?

 

Há uma vantagem esperada por terceiro,

que pagando adulação, assim espera

obter seja o que for que pediria?

 

REAL VALOR III

 

Pela modéstia o mérito é avaliado

e reconhece da obra o seu valor,

mas nem por isso de seu próprio pendor:

só o trabalho deverá ser elogiado.

 

Quem se deixar ser por outrem adulado;

em geral, não é real merecedor,

o próprio orgulho seu dominador,

com a vaidade assentada do seu lado...

 

por tudo isso, não reconheço em mim

nenhum mérito dos poemas que digito,

sua valia só nos textos limitada,

 

sem qualquer falsa modéstia de arlequim,

mas a bandeira do soneto agito,

porque essa graça foi em mim depositada.

 

CAVERNA ABERTA I – 25 ABR 2020

 

Seis espeleólogos contra um fundo verde,

caverna antiga, ressumbrante a fadas,

a luz direta se difunde nesses nadas,

fantasmagórica cloaca que se herde,

há muito abandonada e que se perde,

paredes duras, esmeraldas marchetadas,

um sonho apenas, por granito dominadas,

umidade a escorrer que teia cerde.

 

As seis figuras, cabeças luminosas,

mas não de si, fulgor de capacetes

e uma réstia de luz do céu desaba

pelas fendas da caverna, prestimosas,

comendo a escuridão e as marionetes,

a luz se expande e este sonho acaba.

 

CAVERNA ABERTA II

 

Alguma vez tenho sonhos surpreendentes,

dos quais não participo, apenas vejo

personagens aleatórios nesse ensejo,

somente imagens de contorno impermanentes.

 

E de inopino me já me torno um dos presentes,

de perto a observá-los, não revejo

a mim mesmo de novo, qual o pejo

desses sonhares de todo incoerentes?

 

Que novamente ao grupo inteiro digo adeus

e estou de fora, olhando para a tela

por entre os cílios que a pálpebra revela,

sem contudo se abrir.  São sonhos meus

ou projeções de qualquer silente espectro,

do peito as cordas a tanger-me com um plectro?

 

CAVERNA ABERTA III

 

Não pretendia aqui incluir tais versos,

Do longo sonho descrever fluxo prolixo,

não me dispunha a lhe dar formato fixo,

tantos rascunhos em sua pilha imersos.

 

Em emoções verdigris sonhos conversos,

estalactites em visões eu mixo,

estalagmites a reter seu lixo,

enquanto os sonhos verdadeiros são dispersos.

 

Porém me acordo permeio à madrugada

com tais imagens verdes de espeleólogos,

a cravar-me na mente as picaretas

e assim oscilo entre este e aquele nada,

meu mundo onírico votado a arqueólogos,

que almas sem rumo escavam incompletas.

 

CAVERNA ABERTA IV

 

Não são as sombras que descreveu Platão,

nem são as sobras de anterior vigília,

talvez os flashes de que a memória é filha,

talvez os filmes que assisti na escuridão,

 

somente a tela a projetar clarão,

minha própria vida contida numa pilha,

emoldurada por essa fresca bilha

que em mim derrama amores de ilusão.

 

Quem sabe habita serpente na caverna

e são escamas que a brilhar estão,

que interpreto como jatos de holofotes...

e se as imagens de permanência eterna

durante o sono qual de um coma são,

irá a cobra devorar-me com seus botes?

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