MULHERCLISMA I – 7 MAI 2020
Igual que hoje jamais entendera
o impacto real desse poema,
há milênios escrito pela pena
que àquele rei antigo pertencera;
esse versículo que tanta vez eu lera
e achara belo qual uma verbena,
na alma rebrilhando feito gema,
mas que nunca realmene compreendera.
Só então sofri esse assalto visceral
da “mulher tão brilhante como a aurora,
terrível como um exército com bandeira.”
Mas esta me invadiu, força total,
qual lua e sol na mesma exata hora,
assim minhalma assoberbando por inteira!
MULHERCLISMA II
Quando eu a vi, jamais imaginara
que haver pudesse uma mulher tão bela,
sem ademanes de uma tímida donzela,
madura e móvel como poeira clara,
ante um raio do crepúsculo uma escara,
cada pingo metálico de uma estrela,
monumento alasbastrino de uma estela
erguida antiga a divindade rara...
Encontrei-a na rua, em puro acaso
e nunca mais de novo a deparei,
virei o rosto para acompanhá-la,
o que não faço desde o meu ocaso,
a adolescência para trás deixei,
para em hora tão fugaz reencontrá-la!
MULHERCLISMA III
Da mesma forma que o Profeta Salomão,
que foi rei e senhor de concubinas,
que deixou após si tantas meninas
e tantos filhos a viver em sua mansão
e descobriu entre si dedicação
a esta cataclisma a dominar suas sinas;
dizem que as suas poesias pereginas
a Balkiss-Maqqeda escreveu com devoção.
Do mesmo modo que o poeta-rei,
fui de repente ferido e avassalado
e até hoje tenho gravada a face
no fundo destes olhos, que nunca apaguei,
nem poderia caso o houvesse desejado,
enquanto a vida nas veias me perpasse.
ELÊUSIS I – 8 MAI 20
Tudo eu vejo invertido neste canto:
não me ilumina a Lua, eu sou luar
e mais que o Sol me faço de solar,
de volta sobe aos olhos todo o pranto.
Eu me percebo impuro e vejo santo,
em duplo julgamento a proclamar,
pois sonho a vida no meu palmilhar
e vivo o sonho à luz de meu espanto:
ele me toma entre seus dedos, olha
em seus caprichos e meu ardor balança,
sua boca abre, a língua é que me alcança!
Gasta-me o espanto e gira e me refolha,
perdido em tal delírio em que me apego
de ébano claro em alabastro negro.
ELÊUSIS II
Minha órbita girostática percebo,
porém não giro em torno de tua Terra,
não ascendo a quaisquer páramos da serra,
nem para mim outro lugar concebo.
De meu espanto eu faço meu placebo,
não me cura qualquer mágoa que me aterra,
não escava uma tumba em que me encerra,
nem me hemorrageia o sangue que hoje bebo,
mas mesmo sem me ser qualquer remédio,
é em torno desse espanto que me firo,
enquanto os passos deixei em plena rua.
no entusiasmo do mais perfeito tédio,
ao redor do meu espanto sempre giro
e com a tampa de minhalma cubro a Lua!
ELÊUSIS III
Pouco importa que tudo seja inverso,
se ando às cegas neste dia escuro,
se neste inverno verto suor puro,
se pela mente me projeto no Universo.
Se sou eu mesmo a habitar o Pluriverso,
se sou um outro com destino duro,
se eu mesmo existo nos passos em que apuro,
se no estio eu tremo em gelo terso;
o que importa é que sei cruzar os ares,
e que no solo posso me afundar,
ou provocar a solidez dos mares.
O meu espanto é bem maior que eu
e nele vivo, sem nunca me entediar,
qual um satélite apegado ao perigeu.
ARCA DE MÁGOAS I – 9 MAI
2020
Na verdade, o que nos move
é mais a mágoa
do que a alegria no íntimo
do peito,
nessa vontade de enfrentar
defeito
e de mostrar aos outros
maior frágua.
É a energia que move a
roda d’água
e também move nossa busca
por direito
é o ampliar-se cada
caminho estreito,
os vastos panos de uma
antiga anágua...
Por mais que a gente bata
e rasgue os dedos,
as frestas só se abrem por
metade,
tudo é difícil, por menos
que pareça;
porque todos partilhamos
dos segredos
dos bens não alcançados,
chega a idade,
sem impedirmos que a vida
nos esqueça.
ARCA DE MÁGOAS II
Não pertence à Natureza
ser eterna
e que graça teria, caso o
fosse?
Esse desejo de alguém que
um dia remoce
só encontra troça no
exterior e interna.
Mágoas guardamos na maior
caverna,
cristais cunhados por
impossível doce,
estalactite que até
salmoura insosse,
como um cenote sem suprir
nossa cisterna.
porque o oposto do magoado
é o indiferente,
não o alegre e não o
entusiasmado
e é até mais bênção que
qualquer pecado,
pois nos mantém em pé,
visceralmente,
bem mais que qualquer bem
que foi achado,
bem mais que o breve cintilar
do enamorado.
ARCA DE MÁGOAS III
Que seja assim a mágoa
qual tesouro,
bem mais precioso que o
encanto da alegria,
muito mais duro que a
força da heresia,
mais doloroso que a praga
de um desdouro.
Que a mágoa rasga fundo em
nosso couro,
se canceriza muito além do
que feria,
a tristeza e o rancor não
têm valia
ante sua força e implosão
em surdo estouro,
pois não se ouve e ninguém
tampouco escuta:
está lá dentro de nós,
feliz e muda,
mas não nos deixa esquecer
jamais que existe,
pois dela é a força com
que se enfrenta a luta
e contra a inveja alheia
nos escuda,
por mais que seja uma
felicidade triste.
LABIRINTOS DERRUÍDOS I
– 10 MAI 20
Durante a vida já tracei muitos caminhos
E de variadas fantasias me trajei;
Os dons que tinha, numerosos, empreguei,
Colhendo as flores por detrás de espinhos;
E no entretanto, sendeiros pequeninhos
Foram ficando, depois que os desvendei;
Com grande esforço praças alarguei,
Hoje cortadas pelos becos mais mesquinhos;
Sempre pensei que algures se encontrasse
Essa Última Thule mais bendita
E para ela dirigi minha barca aflita;
Ao chegar perto, percebi que ela flutuasse
E fosse adiante, por mais que me chegasse,
Já no horizonte a fingir que me
esperasse...
LABIRINTOS DERRUÍDOS II
Já nem sequer seguir espero nova trilha,
Que ainda me acerque de um porto favorável;
De braço dado trago o imponderável,
Que ao me amparar, toda a esperança
estilha.
Busquei mil vezes a rota dessa ilha,
Bem-aventurança só em bruma fantasmável,
Penso afastá-la o vento insofismável,
Que a mim me assopra e ao alvo me
esmerilha.
Nos versos vejo a mais sólida miragem,
Depois de quanto fiz, chegou por certo
Uma corrente a levar-me a um promontório;
Depois de tudo, encontro ainda coragem
De navegar sobre a areia do deserto,
Que até me suga o dom mais ilusório.
LABIRINTOS DERRUÍDOS
III
Mas tudo dito e feito, até me espanto
Que tenha alçado o meu desilusionar
Como uma vela aberta em pleno mar:
Serviu-me sempre como expressão de canto;
Sem desaponto que me proteja em manto,
Não chegaria aonde me querem ver chegar,
Essas mil forças meu destino a controlar,
Além do livre-arbítrio e do acalanto,
Mais alem do destino e consequência,
Essas mil tiras de um mundo corrugado,
Mas firme em dominar mais do que o aço;
E tudo estando muito além de minha
consciência,
Por tais desditas me sinto bem dotado
E com carinho o desalento mesmo abraço!
escolha simples 1 – 11 maio 2020
melhor desejo ter do que nenhum desejo,
amor guardado que nenhum amor sentido;
o amor que se deseja é amor nutrido;
o desejo que se busca sempre é um beijo.
fica o amor a mercê de cada ensejo,
fica o amor à mercê de cada olvido,
fica o olvido à mercê do perseguido,
fica a mercê à mercê de cada adejo...
pois todo o amor que tive no passado,
os beijos tantos que me retribuíram,
os beijos tantos que até hoje me negaram,
guardo em bornais num tesouro bem guardado,
dentre a arca das memórias de um antanho,
igual perfume que se espalha sobre o banho.
escolha simples 2
fico esta noite a mastigar desejo,
muito sólido sentido entre meus dentes,
perdido o sono sem motivos aparentes,
talvez mais clara a escuridão que vejo.
quando masco o desejo que revejo,
não é um vazio de quimeras inconscientes,
e bem real e sólido e traz potentes
porções de sal e açúcar feito pejo.
é mais o sal do beijo que conservo,
tanto dos mil que foram orgasmados,
como esses mil que me foram negados.
quanto ao açúcar, da insulina não sou
servo,
mas doces beijos têm mais vaga lembrança
do que os salgados que se bebe sem
tardança.
escolha simples 3
um beijo doce até mesmo uma criança
pode nos dar e os dará com inocência;
possui o beijo de sal bem mais veemência,
só o de um amor adulto é que se alcança.
mas o desejo vale mais do que a esperança,
coisa tão vaga e plena de impotência,
o
último Mal de Pandora na insolência,
contudo aquele que mais fundo nos alcança.
de que nos serve a esperança do desejo,
quando essa espera só espera em
impermanência?
quem o experimente não quer mais esperar.
e quer se tenha o sabor ou não do beijo,
vale o desejo no cofre da existência,
mais que esperança que se lance ao mar.
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