ALMAS DE PEDRA I – 24 AGO 20
A alguma jóia qualquer mulher semelha:
talvez é o brilho que mostra em seu olhar,
uma turquesa ou esmeralda a rebrilhar
ou algum topázio que mais castanho talha;
talvez seja a semelhança bem mais velha,
algum diamante na raça a se encarnar,
algum ônix na sua pele a ressaltar
ou ágata cinza à proteção da sobrancelha.
Qualquer rubi que nos seus lábios veja
ou crisopraso na perfeita carnação,
talvez ébano ou alvaiade na ocasião...
Mas é ametista o seu fruto do desejo,
uma safira a me espreitar do umbigo,
que interpretar quem sabe nem consigo...
ALMAS DE PEDRA II
Às vezes penso que a mulher se originou
inteiramente de algum raro mineral;
essa parábola da costela, por sinal,
recorda o cálcio desse osso que cortou
a Divindade desse Adão que cochilou
(supostamente sendo apenas animal).
Mas não foi do pó da terra que, afinal,
foi moldado pela mão de Quem soprou
o fôlego da vida? Se assim for,
isso o demonstra igualmente original
dos silicatos de alumínio de um areal.
Se mais complexo se mostrou o Criador,
ainda incluiu serapilheira vegetal
nessa massa a dedilhar com tanto amor.
ALMAS DE PEDRA III
Postas de lado quaisquer alegorias,
conforme amantes do zodíaco nos ensinam,
toda mulher tem a sua pedra e dela atinam
as suas características mais sensuais:
por isso brilham os seus sorrisos divinais,
nesse alabastro com que nos animam.
Com seus dentes de marfim e ainda afinam
nossa incerteza com arestas consensuais...
Por “Alma de Pedra” significam em geral
um coração maldoso e muito egoísta;
assim meu título te mostrou errônea pista.
Mas na mulher, por mais seja mortal,
vejo alma de jóia em rútilo eternal,
que nosso tosco calcário então conquista!
ALMAS MINÚSCULAS I – 25 AGO 2020
Há um cãozinho, Gremlin Belvanera,
que mora hoje conosco e é meio
estranho;
uma vez por semana toma banho,
sempre se esconde no momento dessa
espera!
Hão de dizer que tal costume é mera
tendência dos cachorros. Temem lanho
do sabão ou da tosa em tal amanho
e assim o evitam, porque prazer não
gera!
Mas o cusquinho pegou até o costume
de me esperar pelos degraus da
escada,
querendo que lhe faça algum
carinho...
Até aí, tudo bem, ainda que rume
três ou quatro degraus mais acima, na
passada,
nessa carência atrapalhando meu
caminho...
ALMAS MINÚSCULAS II
Dessa forma, dificulta minha subida,
a cada três degraus, vou-me abaixar,
suas orelhas e pescoço a acariciar
e quando tento completar minha ida,
lá está ele de novo, igual ferida
que nunca sara, sempre a me cobrar...
Tudo isso se compreende. De estranhar
é que era esse o costume, toda a
vida,
de Arthur Pendragon, falecido há
pouco;
quando vivia, Gremlin em nada o
imitava;
ficou num saco de plástico o animal,
a meu protesto sendo feito ouvido
mouco;
os outros bichos no jardim ela
enterrava:
ficou sua alminha penada no final...?
ALMAS MINÚSCULAS III
O motivo nem sei, mas em geral,
os animais se dão melhor comigo:
elas lhes fazem carinho até no umbigo
e eu sou mais comedido no total.
Mas a cada vez que nos chega um
animal,
ao qual inicialmente pouco eu ligo,
sem ver razão de me prender consigo,
quando com os outros já sou bem
paternal,
ele vem logo tomar posse do meu colo:
será que veem em mim afinidade?
Certamente não os trato quais
brinquedos.
Arthur Pendragon me buscava solo;
e agora que morreu, será verdade
que encarnou no cãozinho seus
segredos?
ALMAS DE SEDA I – 26 AGO 2020
Com fios de seda me acarinha a aranha
e igual que os outros deuses me balança,
mas na ponta desses fios tenho
esperança,
balança o pêndulo, mas a vida se
arreganha
e é em tais momentos que se faz
tamanha
a certeza de que na vida algo me
alcança.
Desde que o esforço se conserve e a
dança
pareça ser só nossa – essa a
artimanha
com que o gato judia o passarinho...
Meu pêndulo balança em fio de seda,
mas cada círculo conduz a um só
destino:
casulo, enfim. Mas não será o mais mesquinho:
não serei borboleta, mas sei que a alma
enreda
para enfim sugar-me a vida ao som de
um sino.
ALMAS DE SEDA II
Sei que o soneto me vem naturalmente
e sem esforço. Não sou em que mando nele,
antes existe quem me cuide e vele
e assim me esguiche tais versos de
presente,
numa fonte a jorrar constantemente,
som após som e luz que assim me sele
o coração, sem que a alma se congele,
por mais que escorra o calor
perpetuamente,
mas não são versos de amor nem de
martírio
que me pingam da boca e da saliva
e que os rasgos de papel assim
marchetem;
e nem são mansos como o doce lírio:
da alma são farrapos, nessa esquiva
sofreguidão para que o mundo
inquietem!
ALMAS DE SEDA III
Então minhalma balouça em fios de
seda,
no lento pêndulo que manobra a deusa
aranha,
que por sugar-me a vida não se
assanha,
bem sorrateira em sua emboscada leda,
que outras almas eu próprio lhe
conceda,
inadvertido a executar essa
artimanha.
Sopra-me versos qual se em troco nada
ganha,
no casulo de sua teia eterna e queda,
mas pelos versos ela só busca seduzir
outros insetos humanos ao seu berço,
enquanto eu rezo meu indolente terço,
até o momento em que pare de fingir
e então me atraia com fio longo e derradeiro,
chegada a hora de me sugar inteiro...
ALMAS DE FANTOCHES I – 27 AGO 20
Marionetes do amor todos nós somos:
esvai-se o livre arbítrio e todo o
engenho:
se tudo eu troco por esse amor que
tenho,
no amor que temos esvai-se o que nós
fomos.
Esse amor nos envolve em estranhos
domos,
nos crucifica no mais suave lenho,
só nos sorri enquanto franze o cenho,
descasca a mente e dela arranca os
gomos...
Translúcido o seu fio, bênção
maligna,
fantoches todos faz e nem se importa
em nos dar felicidade ou nos magoar,
só nos domina em abjeção indigna,
eventualmente o fio mágico nos corta
e nos deixa vazios, soltos no ar...
ALMAS DE FANTOCHES II
Mais lembra o amor essa górgona de antanho,
de cujo olhar a força conduzia ao
empedrar,
em uma única intenção, sem pensar nem
calcular
as consequências de um tal agir
tacanho...
Destituído da razão, no empolgar de
ideal tamanho
a um objeto só com permissão para
mirar,
em condição que o procedimento irá
tragar,
enquanto nos perdure o cimentado
banho...
E no entretanto, como é bom esse
delírio,
quer agradável, quer com vezo de
martírio,
tal como o Beijo que marmóreo nos
deixou
o escultor Rodin, sua obra-prima a
ilustrar
que amor só dura enquanto imóvel for
ficar,
como esse beijo que dois amantes
congelou!...
ALMAS DE FANTOCHES III
Mas só imagino quanto tempo demorou
a cinzelar sua obra-prima o escultor;
esse casal representando tal amor
por quanto tempo a se beijar ficou?
Certamente o seu sabor se desgastou,
corpos estáticos no instante do
esplendor,
dos modelos o respirar feito
estertor,
com lábios secos que já o nojo
dominou...
Ambos na terra, sem depender do fio
que os ondularia no momento do
prazer,
que pêndulo não existe na estatuária...
mesmo fantoches guardando maior brio,
enquanto os dois, coagulado seu
viver,
talvez tremessem, sem trazer
indumentária!...
ALMAS DE FANTOCHES IV
Também da Hidra de Lerna me recorda,
com seus tentáculos e as nove
cabeças,
para os incautos o amor pregando
peças
que nossos corações assim solerte
morda.
Mas não que seja este amor que aqui
se borda
de leve pernicioso, se a razão vira
às avessas,
pois tem motivos que nem de leve
meças,
que dos primórdios da raça trazem
corda.
Se amor não fosse assim tão
desmedido,
já de há muito acabaria a raça
humana,
contrário seja ao que requer o
egoísmo,
quer seja a Górgona, a Hidra, o fio
trazido
pela Aranha do Destino, nos irmana
e multiplica com seu vasto
despotismo!
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