HAPLÓSTOMO [com uma só boca] I – 19 jun 09
Não sei se trabalhar é meu direito
ou meu dever; se é honra, ou se é prazer.
Mas posso acreditar terá proveito
de quanto faço, aquele que me ler,
em centenas de livros traduzidos:
de fato, reescritos; real parte de mim
se reflete nessas linhas... É assim,
se de um idioma a outro são vertidos.
Sei bem que até desejo continuar,
de preferência a quaisquer outros prazeres,
como intérprete de alheias emoções...
Do mesmo modo que dispus-me a escutar
dos outros as tristezas; e os quereres
de até me imporem as próprias convicções.
HAPLÓSTOMO II – 16 out 2020
Pois traduzir é muito mais que ler,
já que a leitura, em geral, é distração,
mas há empenho em cada tradução,
só no dever cumprido algum prazer.
E de que forma poderei saber
se os autores só fingiram a emoção
ou recortaram em parte o coração
para centenas de laudas escrever?
Realmente, há um certo sacrifício
em tanta linha solerte interpretar,
e meus próprios sentimentos desgastar,
que me parece até pior que qualquer vício;
ou devo o opúsculo inteiramente desprezar
e mais ainda a mim por meretrício...?
HAPLÓSTOMO III
De certo modo, me sinto um confessor
que se dispõe a escutá-los com paciência,
igual que porta, sem direito a uma vivência,
sem atribuir penalidade ao transgressor.
Não me cabe a função de algum censor,
não há questão de atribuir-se penitência,
só a obrigação de mostrar total leniência
e absolver integralmente o mau autor.
Melhor então ser um psicanalista,
que só escuta o paciente que lhe fala
e o tempo inteiro no consultório cala,
sem lástima ou conselho que lhe assista,
só o conduzindo ao falho tratamento,
que nada mais irá mudar a seu contento.
HAPLÓSTOMO IV
Bem gostaria e com frequência, reescrever
e dar aos fatos novel explicação,
puxar parágrafo atolado em perdição,
tanto fio solto sem se atar poder...
Houve editor que quis tal escolher,
talvez sem mesmo lhe dar aceitação,
mas que acredita ter do lucro obtenção,
qual aquilata de seu público o querer.
E claramente, fazer isso não posso,
que tradutor não pode ser traidor,
tal qual na Itália correu esse ditado...
Destarte, cada ideia ou fato endosso,
sempre fiel, só a aditar certo esplendor
que torne o texto melhor aquinhoado...
BOCAS DE CRISTAL I –
17 OUT 2020
Não existe palavra
pequena ou com magreza,
são magníficos esses
seres filológicos,
racionais em seu
poder ou então ilógicos,
quase divinos em
seus rasgos de impureza;
mas palavras nos
devoram, com certeza,
canibalizam os
sistemas histológicos,
potencializam os
fervores neurológicos,
são impostoras em
toda a sua nobreza...
Não somos mais que
palavras, todos nós,
balões escusos,
cheios de metano,
só mantidos no ar
por verborreia...
Igual que os outros,
das palavras sigo empós,
elas me iludem com
seu filtro desumano
e me consomem ao
final de sua epopeia!
BOCAS DE CRISTAL II
Segundo dizem, eu
nasci com este dom
da palavra, não para
a oratória,
mas para a versação
de cada história
em um poema de
amargo ou meigo tom;
se tal dote recebi,
sei que foi bom
comprometer-me em
verter memória
sobre as mentes, em ação
circuncisória
de certas partes de
mim, igual vison,
que só desejam após
ser esfolado
e cada verso que
parte de minhas mãos
se torna em frágil
boca de cristal,
não sendo eu mesmo que
seja desejado,
porém alvéolos
retirados dos pulmões,
tais quais palavras
de cerne material.
BOCAS DE CRISTAL III
Segundo consta das
Santas Escrituras,
o Verbo se fez carne
e entre nós habitou;
poucos entendem
realmente o que falou
o Evangelista em
tais prédicas puras;
não foi a carne de
Deus consoante juras,
mas a Palavra, que
desde o céu soou,
a Sua Voz sublime é
o que nos enviou,
em nossas chagas
assoprando as curas...
Há o costume de
julgar que a oração
seja uma forma de
pedir a Deus presentes,
mas se trata muito
mais de ações de graças
e assim louvarmos
essa divina mão,
que em nada é mão
humana, mas ardentes
palavras a
desculpar-te o quanto faças.
FERIDA ABERTA I – 18 OUT 2020
Sempre se pode sentir prazer na chaga
ao peito aberta pelo amor ausente;
por mais que a dor nos arda de pungente,
quando se esvai da alma então se apaga;
melhor a dor que causa a ausência vaga
que a tal ausência sentir-se indiferente,
pois nos persegue tal ausência diariamente,
mas esquecê-la é coisa mais pressaga,
já que é preciso lembrar que uma presença
ocorre em um só momento da memória,
mas quantas vezes a ausência nos desperta?
Melhor dispormos então da dor intensa
que nos acorra uma só vez em nossa história,
sem nem sequer manter a chaga aberta!
FERIDA ABERTA II
Não veja aqui a sugestão do masoquismo
ou alguma busca nauseante pela dor,
mas há a impureza comum em tal pendor
de nossas culpas cultivar com saudosismo,
que se renova em singular malabarismo:
quando pensamos olvidar de seu ardor,
voltam do fundo, apregoando o seu valor,
contra qualque tranquilidade de sofismo.
Pois Deus perdoa sempre, mas nós não,
mesmo sabendo ser a falta até suave,
só de lembrá-la, mais se fortalece
e sem motivos, nos corta o coração
e assim buscamos castigo que nos lave,
sem confiança qualquer se pôr na prece.
FERIDA ABERTA III
Assim é a chaga de um amor perdido,
por abandono seja, por desdém ou morte.
Recordamos da presença a gentil sorte,
mil vezes mais lembramos seu olvido.
O prazer da lembrança é exaurido,
mas a chaga da ausência com mais porte
se fortalece e mais alarga o corte,
em especial se nos culpamos do mal tido.
Porém a dor da chaga é artificial
e com frequência com prazer a alimentamos
e sem motivo, jamais nos consolamos,
sem aguardar por qualquer consolo espiritual,
porque essa ausência é presente nessa dor
e ainda que morto, ela alimenta nosso amor.
RASURAS DALMA I --
19 OUT 2020
A barba eu faço durante as revisões:
retiro os erros e recorto os tocos:
aperfeiçoo o meu perfil aos poucos,
aperfeiçoo um pouco as traduções;
eu faço versos durante as emoções:
desgasto os sonhos todos, por mais loucos,
desgasto os versos em seus poemas moucos
e amor eu faço, não importam estações...
Largo de mim deste modo imperfeições,
a pele lisa e alisado meu trabalho:
olho o trabalho sem olhar-me o rosto
e me derramo nesse espanto das paixões,
conservo amor e aos poemas nunca falho,
conservo o vinho sem gastar seu mosto...
RASURAS DALMA II
Não faço a barba com grande frequência:
só raspo as faces, o queixo e o pescoço;
não que deseje fingir-me de mais moço,
deixo o restante em sua pálida potência,
mas não me deixo influenciar só por decência
imposta a mim por um critério grosso
da sociedade...
Penso mais em meu almoço,
facilitado então por essa ausência
de pelo ao queixo e fina no bigode
e nem sei como o velho Nietzsche faria
para comer com seu imenso bigodão,
que tal manejo por certo só me acode,
que ao redor de sua boca encontraria
oleosos restos após cada refeição!...
RASURAS DALMA III
Hoje já faço muito menos traduções:
na verdade, minha esposa já não quer,
que trabalhei demais e nem sequer
fiz pé-de-meia após tantas transações;
comprei selos e de discos gravações
e a biblioteca refiz com tal mister;
mas é preciso obedecer sempre a mulher,
quando frequentes nos faz objeções...
Mas importante sendo o seu amor
e a constância firme da poesia...
se a barba faço, haverá um certo frescor
e traduzir mais meu bolso ajudaria,
mas tudo isso perde todo o seu valor
perante os beijos que dela ganharia!
RASURAS DALMA IV
E a cada vez que desejo outro poema,
sobre as faces eu passo o barbeador,
raspando os versos guardados nesse andor
por entre os beijos em carinhosa gema
que ali foram depostos, num dilema:
devo guardá-los ou mostrar o seu valor,
devo expô-los em alegria ou meiga dor?
Da epiderme o verso assalto o lema...
Não é o mesmo que apenas traduzir,
nos livros o sangue alheio é congelado,
deles não sei em qual grau de sofrimento;
porém do meu não é possível me iludir,
pois cada vez que digito um beijo achado,
gastei da carne um rasgão de sentimento!
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