terça-feira, 23 de fevereiro de 2021


 

 

ruas esvaziadas I – 1º dezembro 2020

 

contudo, muito cresceu a minha cidade,

com tanta gente a nos chegar de fora,

novos fantasmas trazendo a cada hora,

não mais tão limpa como esteve, na verdade,

quando eu e meus duplos, com serenidade,

a percorríamos constantes nesse outrora,

penados e poltergeister a mandar embora,

sem mais assombro de sua iniquidade;

mas agora, na mortalha da pandêmica,

proibiram mesmo que se saísse à noite

e até perdi o livre impulso de sair;

com máscara, minha visão é mais anêmica

e já não posso perceber com igual acoite

esses fantasmas que costumava perseguir...

 

ruas esvaziadas II

 

porém eu vejo, espigado à minha janela,

os meus próprios fantasmas encolhidos,

em seu destino final aqui reunidos,

buscando em vão minha presença na viela;

pela fresta das vidraças podem vê-la,

mas não se podem sentir mais acolhidos,

não saio à rua e se sentem reprimidos,

uns com os outros se abraçam em gavela.

 

e se lhes abro a persiana em boas-vindas,

nao se animam a erguer-se desde o chão,

não se atrevem a aceitar minha proteção

e suas tarefas já lhes parecem findas,

mas já foram de mim e não se afastam,

somente o brilho de meus olhos pastam...

 

ruas esvaziadas III

 

mas certamente jamais me farão mal

com sua tênue e infeliz proximidade,

tantos de mim já absorvi, na realidade,

tantos de mim já morreram sem sinal!

os anos passam de forma consensual

com os tempos de mim sem ter bondade,

sem indiferença nem vezos de maldade

e a cada tantos anos, de forma natural,

 

eu morro um pouco e em parte continuo,

não mais os doppelgänger  reconhecem

nesta figura que os contempla da janela

o caminhante cujo passo firme e duo

era tão forte!... e apenas estremecem,

sob essa chuva argêntea que os congela!

 

vocabulário I – 2 dez 2020

 

há milênios os artifícios dos helenos

criaram metáforas e mil alegorias,

palavras tendo para o quanto sentirias,

todos nós somos gregos, nalma ao menos,

as diferenças sendo coisas de somenos,

lá no fundo as mesmas crenças que terias

às dos gregos sem temor compararias,

ambos podendo confabular serenos.

 

todo o terreno filológico é comum,

como os termos inventados para tudo

que utilizas em raciocínio, não me iludo.

a diferença é que de tantos, sempre algum

já não usamos mais, que é assim sutil

dos helenos sua linguagem tão viril!...

 

vocabulário II

 

cada expressão utilizada na poesia

já foi por tais antigos abordada,

em muitas outras sem sequer ser aplicada,

quem lembra um poema chamado prosodia?

prosódia ainda se emprega, à revelia

do sentido em que de início foi criada

por baquilides e por alceu normalizada:

não a pronúncia, mas estrofes que se cria...

 

de modo idêntico, até mesmo em teologia,

as vertentes foram sendo desvirtuadas:

elêusis só “advento” no início indicaria;

por kyrie eleison dizem “senhor, tem piedade”

mas é “vem, senhor” junto a nós fazer moradas,

qual Maranatha em hebraico se diria!...

 

vocabulário III

 

e de igual modo, também na filosofia,

pois “peripatético” somente significava

“andar ao redor” do jardim em que se achava

o filósofo de quem o romantismo se inicia,

mas muita gente até mesmo julgaria

designar seu sistema que legava,

porém platão de caminhar gostava

e suas aulas em movimento ditaria!...

 

igual pertence a cada ideologia

o emprego puro e simples de “querigma”,

ou a pregação de quanto defendia,

mas pensam referir-se só ao cristão,

a defender seus dogmas em sintagma:

tratado exato por sua classificação.

 

temáticas I – 3 dezembro 2020

 

todo o poder da linguagem me enaltece,

eu a quero para mim, com suas mazelas;

conservo os versos em barracos de favelas

e os adjetivo ponho em tríduo de uma prece,

mas é em preposições que a bênção desce,

diretamente nas adverbiais estelas,

amortalhada em prosopopeias belas,

em cada hiato a insurreição se tece!...

 

e enquanto banho a mente com figuras,

no mesmo ritmo com que a língua cresce,

surgem novas palavras, novas falas,

nessas metáforas de anacreses puras,

que tal sinédoque nunca mais me cesse,

na metonímia de pronome em que resvalas!

 

temáticas II

 

não pretendo as figuras de linguagem

os os vícios de tanto barbarismo

aqui exemplificar em solecismo,

não é minha intenção nesta mensagem;

mas sim a minha inteira vassalagem

à língua portuguesa em seu modismo,

aqui aplicada por mim ao sonetismo,

contracorrente, a defendê-lo com coragem!

 

sei muito bem que surgiu esse costume

e por longo já ser, pensam ser certo,

de serem frases soltas no deserto

de uma página em branco, sem que rume,

espontaneamente para um belo cume,

que em progressão à bela chave traga acerto.

 

temáticas III

 

feroz defendo a minha língua lusitana

e seus formatos de maior beleza,

não apenas de camões, isto é certeza,

mas certamente por inventiva italiana;

e ainda defendo a imaginação romana

no romantismo e por igual a crueza

do amor carnal em sua plena madureza:

com os poetas do lácio assim me irmana.

 

há uma década nada escrevo realmente

em temática pura de conotação sexual,

não que acredite ter no passado agido mal,

mas simplesmente que me inspiro diferente,

um pouco no sensual, outro no espiritual,

tão variegado é nosso amor onipresente!...

 

temáticas IV

 

mas quando a inspiração se me apresente,

de novo obras carnais escreverei;

no pornográfico jamais descambarei,

por mais que o tédio nesse destino tente!

mas o erótico conservo em mim latente

e cedo ou tarde a ele eu voltarei,

tantos temas proibidos já abordei,

até as funções excretórias, realmente!

 

mas como sempre afirmo, sou atuado

por requisitos de cem poetas mortos

e raramente os meus próprios versos tortos

eu introduzo em um campo tão variado;

mas da palavra eu continuo enamorado,

nenhuns rascunhos reduzindo a abortos!...


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