quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021


 

 

DESGASTE I – 21 AGO 20

 

QUANDO A PILHA DO RELÓGIO ESTÁ CANSADA,

ELE FAZ SEU TIQUETAQUE, MAS NÃO ANDA

E ASSIM TRANSMITE INFORMÇÃO NEFANDA

PARA QUEM BUSCA OBTER HORA ACURADA.

 

AO SE TROCAR A VELHA PILHA DESOLADA,

SERÁ PRECISO ABRIR A SUA LOCANDA,

MAS COM CUIDADO, SENÃO A HORA DESANDA

E A TROCADORA FICARÁ DESAPONTADA!

 

TROCADO ESTEJA O CILINDRO TÃO BRILHANTE,

DE NOVO SE RENOVA O TIQUETAQUE

E O RELÓGIO ANUNCIA AS NOVAS HORAS,

DESDE QUE ACERTO CORRETO E ELEGANTE

LHE SEJA FEITO, SENÃO EM PERIPAQUE,

CONTINUA A PROPALAR TÃO SÓ DESORAS...

 

DESGASTE II

 

TAMBÉM A PILHA DAS PESSOAS SE DESGASTA

QUANDO FALHA EM TIQUETAQUE O CORAÇÃO,

ÀS VEZES SENDO NECESSÁRIA INTERVENÇÃO,

DOUTRAS VEZES SEQUER ISSO NÃO MAIS BASTA.

 

MUITO PIOR, PORÉM, É QUANDO EM PASTA

TORNA-SE AOS POUCOS A CEREBRAÇÃO;

É BEM DIFÍCIL NESSE PONTO ARRUMAÇÃO,

DA MOLÉSTIA A DEPENDER QUAL SEJA A CASTA.

 

SEMPRE UMA PILHA VELHA SE DESCARTA,

MESMO POR FORA MOSTRANDO-SE BRILHANTE,

MAS NÃO SE PODE FAZER COM QUALQUER MENTE;

ATÉ UM CORAÇÃO, QUANDO SE FARTA,

PODERÁ TROCADO SER POR UM IMPLANTE,

MAS DE QUE MODO TROCAR CÉREBRO DOENTE?

 

DESGASTE III

 

SEMPRE ME OLHEI COM UMA CERTA DESCONFIANÇA

OU ANTES FORAM OUTROS QUE INCUTIAM

QUE PARA LINDOS MEUS TRAÇOS NÃO SERVIAM

E QUE DE LADO DISPUSESSE ESSA ESPERANÇA

 

DE UM DIA REVELAR MELHOR PUJANÇA;

TAL ILUSÃO SEMPRE AO REDOR ME DEVOLVIAM

E SEM O REFLEXO CUIDAR QUE OS OLHOS VIAM,

CALMO ACEITEI DO VEREDICTO A DANÇA...

 

ASSIM JULGUEI-ME FEIO E CORPO E ROSTO

DESCUREI TOTALMENTE EM TAL DESGOSTO

E REFUGIEI-ME DA CULTURA NO CASTELO;

E SÓ ÀS VEZES ME PERPASSA DE RELANCE

QUE ESTEJA ASSIM ALGUM DIA A MEU ALCANCE

ME OLHAR NO ESPELHO E ENFIM, ACHAR-ME BELO!

 

DESGASTE IV

 

MAS BEM PIOR SERIA, CASO UM DIA,

O MEU ESPÍRITO SE CONTEMPLASSE NO ESPELHO

DA MENTE, A PERCEBER-SE ALI SER FEIO E VELHO,

JÁ SEM MAIS SENTIR RANCOR OU NOSTALGIA.

 

A MELHOR OBRA SEMPRE SE REALIZARIA,

SEGUNDO DIZEM, ENQUANTO O ÉLAN DÁ RELHO

E IMPULSIONA À CORRIDA CADA ARTELHO,

QUE NA VELHICE LOGO SE ABRANDARIA.

 

MAS ATÉ HOJE CONSERVO O TIQUETAQUE...

E AINDA PRODUZO O MESMO OU MAIS QUE DANTES

E ATÉ SUSPEITO QUE SEJA BELO O RESULTADO

DESSES SONETOS A CORRER EM ATABAQUE,

NA MINHA VÃ ESPERANÇA QUE ALGUM CANTES

OU QUE, IGUAL PILHA, NÃO SEJA DESCARTADO...

 

ALMA LEVE I – 22 AGO 20

 

O SÁTRAPA SE ERGUE EM GESTO ALBÍGERO

E A FÊNIX CONTEMPLA NO SEU NINHO

CÁLIDO E LUMINOSO E ESTÁ VIZINHO

DE SOLAR CONFLAGRAÇÃO EM GESTO ALÍGERO

ALI ELE REFLETE EM PRANTO LACRIMÍGERO

O SALTITAR DAS CHAMAS DE MANSINHO

A PERCORRER-LHE O ROSTO, COM CARINHO

LARANJA E NEGRO EM PALPITAR FUMÍGERO

ENTÃO LAMBE OS REFLEXOS E ENGOLE

PARTE DA LUZ QUE BRUXULEIA DESSA PIRA

ALI A FÊNIX RENASCE E A OUTRA MORRE

ELE SE VESTE DE FOGO, ESTRANHO FOLE

QUE LHE ENCHE OS PULMÕES AO SOM DA LIRA

QUE EM SUAS ARTÉRIAS LENTAMENTE ESCORRE

ALMA LEVE II

 

SÓ EU PERCEBO NA RAIZ DE MEUS CABELOS

AMARFANHADOS EM RITMO ASSOMBROSO

NA PERCUSSÃO DE CUNHO TENEBROSO

EM SACRIFÍCIOS PERCUTIDOS, CEREBELOS

OS HOLOCAUSTOS DE UM VERÃO VENTOSO

EM QUE ME QUEIMA A BRISA DE UM MORMAÇO

E DE MINHA TEIMA DESAPARECE O TRAÇO

SOU COMO JÓIA EM ESTERCO PAVOROSO

O SOL QUE PULSA NO ÚLTIMO HARPEJAR

UMA CASCATA DE SANGUE SOBRE O TÁLAMO

ENFARDADA À LUZ EXTINTA DO FAROL

QUE SÓ DISTINGO NO RUGIDO DO HIPOTÁLAMO

É O VATE EM PIPILAR DE ROUXINOL

COM O DERRADEIRO AEDO A DISPUTAR

 

ALMA LEVE III

 

TAL QUAL SÁTRAPA E FÊNIX SOU MIRAGEM

UM TURBILHÃO DE FASTIDIOSOS JULGAMENTOS

EM UMA ARENA DIGLADIANDO PENSAMENTOS

SEMPRE INDISPOSTO COM MINHA PRÓPRIA IMAGEM

E A ALMA LEVE ONDULA APENAS NA PAISAGEM

EMOLDURADA POR TEUS FRÁGEIS SENTIMENTOS

QUE CONSTRUÍSTE PARA TI EM MIL MOMENTOS

NA QUAL APENAS ME ACEITAS DE PASSAGEM

E A ALMA PESADA DE TANTOS DESENGANOS

EM CONSEQUÊNCIA DE TANTOS MALQUERERES

SOMENTE EM TI SE DESVESTE DO ENVOLVENTE

TEU SORRISO A CURAR-ME TANTOS DANOS

O LEVE TOQUE DE TUA MÃO IGUAL BENZERES

PARA O RANCOR A SERVIR-ME DE EMOLIENTE.

 

FEIRANTE I – 23 AGO 2020

 

Escuto em mim mil versos em tambor,

cada nuance a revelar da humanidade,

suas tristezas de milenar perenidade,

as cento e vinte facetas do rancor,

as mil e cem migalhas desse amor

distribuído em descuidada liberdade

e retirado sem a menor bondade,

qualquer que seja seu distribuidor.

 

Teu próprio peito desvendo com luneta:

tanta beleza mesquinha se acha ali!

Tanta certeza falha e morta percebi:

tem cada alma tanta paixão secreta

 

que nunca realizou e nem o irá,

se for possível, que do mundo ocultará.

 

FEIRANTE II

 

Sei o que ha em ti, porque havia no passado,

nesses poetas que ergueram-se do pó,

fênices pobres em ninhos de cipó,  (*)

cujos desgostos têm-me confessado,

cujos amores têm-me declarado:

melhor a entrega que continuar-se só;

nem sei se hoje me alegro ou tenho dó,

apenas sei ser assim aquinhoado

 

por bênção/maldição, a receber

tantas agruras para atiçar as minhas,

mil alegrias de que não compartilho,

mas que peneiro com senso de dever,

 

as minhas mesmo percebendo tão mesquinhas,

tão mais sofridas sendo essas que perfilho!

(*) Plural correto para “fênix”.

 

FEIRANTE III

 

E no entretanto, percebo que houve um dia

em que sofreres meus ao mundo oferecia,

como destrincho nos rascunhos que fazia,

não os recentes, mas de décadas passadas,

antes chegassem tais almas assombradas,

em suas tristonhas e certeiras revoadas,

minha alma a perfurar com suas bicadas,

que amor revele e a dor que algum sentia.

 

E vendo isso, me percebo tão pequeno!

Envolvido num manto de humildade,

o que sofri só conformou minha empatia

e fico aqui, em gentileza de veneno...

 

Eclusa aberta para tanta humanidade,

que já sofreu tanta desdita e desvalia!...

 

FEIRANTE IV

 

Será que então não tinha mais pudor?

Que os sentimentos apregoasse pela praça

e lançasse aos quatro ventos toda a jaça

que pela alma angustiava o meu candor?

Que desta forma me expusesse sem temor,

à lingua alheia expondo minha desgraça,

na liturgia incauta de uma traça,

chaga medonha mas de mínimo valor?

 

Para nós mesmos as tristezas são fatais,

mas a quem importavam amores e perjuras,

fatos apenas corriqueiros e banais,

a comparar com as alheias amarguras?...

 

Hoje me basto a transmitir falacidades

que me venderam nesta feira das vaidades!

 


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