sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021


 

 

FULIGEM SOCIAL I – 19 DEZ 2020

 (Espiège, miniatura de Fortunato Gory)

Em torno a mim vejo um mundo malicioso,

no qual predomina facilmente o egoísmo;

mesmo em momentos de violento sismo,

raro é quem busque mostrar-se generoso,

bem mais comum procurar lucro ganancioso,

em declarações abertas de cinismo,

em seguimento sorrateiro do modismo,

no crescimento individual mais vagaroso.

 

Por mais que a ciência nos ensina

e por mais que a medicina nos ampara,

por mais se expanda a tecnologia,

o ser humano só por si mesmo atina

ou à sua família e amante que lhe é cara,

que como parte de si mesmo encararia.

 

FULIGEM SOCIAL II

 

Eu vejo assim, por exemplo, a pandemia,

cada um pensando na própria proteção,

quando álcool-gel contenta-se na mão

em esfregar, e nem sequer depois a lavaria,

na falsidade da segurança que sentia,

sem se importar que haja conotação

entre o que faz e a possível infecção

para outras gentes nos lugares em que iria.

 

E agora, que todos falam da vacina,

inicialmente para os grupos de risco,

as precauções jogadas são ao cisco,

que para tanta restrição ninguém se inclina,

e cada um só quer saber de si

e até à socapa da morte alheia ri!...

 

FULIGEM SOCIAL III

 

Há quem afirme, tão ingenuamente

que irá surgir mais solidariedade,

que as pessoas agirão com boa-vontade,

seu comportamento anterior bem diferente.

Mas eu duvido, pura e simplesmente:

se houver da vacina disponibilidade,

haverá muitos que na oportunidade

a tentarão obter mais facilmente.

 

Quantos existem que durante incêndio

pisoteiam uns aos outros sem piedade?

Onde se encontra tal solidariedade?

E de que adianta lançar-lhes vilipêndio,

pois assim agem com naturalidade,

a repreensão sendo inútil vão dispêndio.

 

FULIGEM SOCIAL IV – 20 dez 20

 

Quanto a furar a fila, é natural,

os exemplos se veem diariamente,

 cada um a procurar passar à frente,

por que agiriam sem egoísmo individual?

Agora que está em risco a material

sobrevivência, a se escutar constantemente

cifras de mortes enviesadas tão frequente,

tudo supera a razão intelectual.

 

“Caluniai, caluniai, alguma coisa sempre fica”,

séculos atrás Voltaire exemplifica...

Mas que se pode esperar de motoristas

que dobram as esquinas velozmente,

aos pedestres correndo de suas pistas,

que eu mesmo já amaldiçoei amargamente?

 

FULIGEM SOCIAL V

 

E por momentos, quis a morte desejar

de qualquer indiferente motorista,

que sem recato sobre a calçada a pista

expande, sem desprezo a demonstrar

pela vida dos pedestres que aleijar,

ou mesmo a morte alheia assim conquista,

tal como um galo levantando a crista

num rinhadeiro, seu rival a desafiar!

 

Demonstro apenas momentânea reação,

pela qual me denuncio ser humano,

mas não desejo honestamente causar mal,

ainda que acalme assim o coração,

por saber que o imprudente desumano,

provavelmente terá morte acidental!...

 

FULIGEM SOCIAL VI

 

E se morrer, que culpa será a minha,

se tão somente no susto desse ensejo,

lhe desejei a morte num motejo,

que ele busca, afinal, na própria linha?

Nessa corda de forca ele se alinha,

ultrapassando depressa algum andejo,

contra algum poste dará furioso beijo,

que em seu amor do acelerar logo avizinha!

 

E se engrossar as estatísticas então,

nenhum remorso me poderá afligir

e nem razão para qualquer contentamento,

ainda que tenha me empurrado, na ocasião,

até a parede, contra a qual me reduzir

a uma massa de pulular sangrento!

 

FULIGEM SOCIAL VII – 21 dez 2020

 

Só fuligem eu deixaria na parede

de carne e sangue o muro avermelhado,

mas logo escuro, qual chamam o pecado,

as minhas plaquetas em defunta rede!

De fato, achei alguém que assim procede

ou por seu carro fui eu o encontrado,

mais meio metro seria eu o esmagado,

seguindo em frente o tal que a morte pede!

 

Talvez por droga, talvez embriagado

ou na fuligem da pandemia astral

em sua pulcra e indiferente estupidez,

mas preferindo morrer acompanhado

por qualquer outro cujo desejo natural

é a vida conservar, apesar de tal freguês!

 

FULIGEM SOCIAL VIII

 

Talvez me digam: “Ora, ainda aqui está você,

mesmo que tenha escapado por um triz!

Em outros termos, seu fado é que não quis

vê-lo esmagado na parede, já se vê!”

Mas na fuligem social, é como se

anjo guardião brandindo flor-de-lis

ou elemental com palidez de giz,

me preservasse, sem nem saber porquê!

 

Que meu astral não fosse de fuligem,

para o futuro sendo preservado

a escrever verso oculto e inesperado,

linhas que a tantas vítimas se impingem!...

E desse modo igual sou ao caminhoneiro,

meu interesse a preservar primeiro!

 

FULIGEM SOCIAL IX

 

Mas onde escondo a fuligem do social?

Delineada talvez em puro traço,

determinada a fingir um puro abraço,

como a evito em minha vida natural?

Será uma espécie de tachismo artificial

que assim preencha esse tão largo espaço?

É com a ponta dos dedos que refaço

o meu caminho de prazer ou mal?

 

Será que o tisne dos astros me recobre,

igual que manto de provação escura

ou revestido de falsa cor mais pura

e dependendo da nuance é que me sobre

algum arbítrio sobre o quanto sentirei

ou sou forçado a fazer o que farei?

 

FULIGEM SOCIAL X – 22 dez 2020

 

Até que ponto desenlaças teu destino

desse baraço de linhas destineiras,

algumas tortas, outras mais certeiras,

rede fechada qual esfregão de aço fino?

Será que escutas algum clangor de sino

que assim te oriente para novas jeiras (*)

ou vês destinos em oferta nessas feiras,

para alcançar teu próprio alvo pequenino?

 

Caso tivesses de escolher um só chumaço,

podendo distinguir entre mil fios,

qual deles te destinaria ao triunfar?...

porque existe a teu redor esse embaraço

das mil escolhas alheias e desvios

que talvez tua própria vida vá roubar!

(*) Extensões de terras.

 

FULIGEM SOCIAL XI

 

Já eu me deixo por minhas vozes orientar,

que não me dizem, infelizmente, o que fazer,

mas me proibem más sendas percorrer

e a seus conselhos me esforço em aceitar,

pois cada vez que os prefiro desprezar,

maus resultados para mim vêm ocorrer:

não é o destino que vem-me castigar!...

 

Se os conselhos desprezo, eu me castigo,

assim marcado por fuligem do social

que poderia, ao invés, ter evitado;

algumas vozes também trazes contigo:

escuta o Espírito e não sofrerás mal,

será um clarão em tua mente revelado!

 

FULIGEM SOCIAL XII

 

Pois eu escuto, no silêncio de minha mente,

esses poemas que anseiam por sair

que me disponho então a redigir,

muitas vezes de forma surpreendente!

Também te deves submeter frequente

a desse espasmo sideral o reluzir

e cada impulso permite então agir,

mesmo sem pura intervenção consciente.

 

Lavar procuro a fuligem do social

e convertê-la em farrapos de poesia

e a tal destino converto-me, afinal

e te aconselho a aceitar o dom do astral

como argamassa que ao bem te levaria

desse destino que melhor te serviria!...

 

 


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