VIDRILHOS I – 11 SET 2020
Partículas de vidro somos nós, caquinhos
de algo que no antanho foi vitral;
a luz da vida eu seu cálido fanal,
derreteu nossos caixilhos e os vidrinhos
multicores do sonho, azuis, amarelinhos,
verde cinábrio, rosicler, rubro cristal,
negros contornos, dourado carnaval,
desintegrados a esfacelar mesquinhos.
Ficou só o caleidoscópio, essa luneta
de papelão apenas, a “teteia”,
que servia de brinquedo a um deus criança;
e a cada vez que a silhueta é mais dileta,
ele apenas a gira em nova estreia,
completando nova estrela de esperança.
VIDRILHOS II
E nos prendemos a tal estrela de esperança,
que como toda bonança é transitória;
sua mão brinca com ela, peremptória
e sobre a realidade aplica sua cobrança
a sacolejar cada dia em abastança,
cacos de horas tinindo como escória,
cada segundo uma lasca merencória
e nossa sombra ali oscila em fulgurança.
Não há meio de recompor essa faiança;
gretas coladas com coágulos da alma
logo se espalham no seguinte maremoto,
por mais se busquem modelos na lembrança,
sua teia é frágil e não revela a palma
da lástima que traz a nova hora ignota.
VIDRILHOS III
Fico a pensar de onde nos surgiram
tais fragmentos que nos sacodem tanto,
de onde vieram os cristais de pranto,
beijos incertos que nos atingiram;
caleidoscópios que nos transmitiram
os baralhos de gens de antigos cantos,
as farpas de tarot dos nossos mantos,
as centelhas de rancor que o peito firam.
Tantas fagulhas de temor que nos percorrem,
os dentes de dragão dos calafrios,
os tentáculos de hidras que nos forrem,
nesses arco-íris sem nuances permanentes,
nas incertezas que formam nossos brios,
no balouçar tremeluzente das correntes...
SHALIMAR I – 12 SET 20
Quando esperava vê-la novamente
e antecipava a sua presença cara,
por agridoce que fosse ou só amara
a visita, em que apenas, levemente,
cruzaria por meus olhos de paciente
aguardo ansioso da visita rara,
essa
única certeza que me ampara
mais uma vez deixou de estar presente...
Como queria tudo fosse diferente!
Que para mim chegasse, revestida
De ouro-paixão e de uma ardência-anil!
E não apenas como amiga reverente,
a borboleta adejando em minha guarida,
só com a sombra de um sorriso a ser gentil...
SHALIMAR II
Mas toda a espera tem a sua resposta,
seja por que despertou nossa lembrança,
seja por que da lembrança não se cansa,
seja por que de esperar até se gosta,
a mente estando para isso bem disposta,
esperar/desesperar passos de dança,
diante da espera certo tipo de bonança
e essa demora toda pronta arrosta.
Se ela chega ou se não chega pouco importa,
sempre se pode na espera imaginar
o quanto pode da chegada resultar;
e se da espera toda esperança aborta,
já não nos sobra razão para esperar,
melhor nos sendo na espera ainda aguardar...
SHALIMAR III
E então espero, cheio de aguardança,
enquanto aguardo o fim desse aguardar,
desses momentos de aguardo a me lembrar,
cada momento da espera em minha lembrança...
Sem ao futuro fazer qualquer cobrança,
se não me deve, nada posso lhe cobrar;
cobro a mim mesmo a paciência do esperar
e da paciência reclamo sua esperança...
Como a cantiga antiga sobre Shalimar,
quando da espera restou só a esquivança:
“Quem amareis agora? A quem ireis afagar?”
Que a esquiva diva sorriso apenas dava,
Por que a lástima por tão escassa dadivança
ou lastimar o que nem mesmo se esperava?
SAMARKAND
I – 13 SET 20
Não
que me esconda desse ideal instante,
mas
que duvide tenha algum significado
que
me possa realmente ser mostrado,
caso
me arvore da nau em comandante;
isso
por que, em ocasião constante,
já
busquei tal anelo e o resultado
foi
apenas amargar um rebuscado
de
ideais desfeitos e sonhos de barbante...
Melhor
me fora ter então imaginado
como
seria se a vaga do momento
por
meu timão audaz fosse galgada,
do
que saber que já fora rejeitado,
no
mais completo desdém do sentimento,
tão
somente por um beijo ter buscado.
SAMARKAND
II
Assim
meu barco ficará desarvorado,
seu
leme a girar impertinente,
cada
vela de seu próprio vento crente,
a
quilha em vão cortar desgovernado...
Porém
jamais qualquer porto foi achado
sem
tentativa, ao menos aparente,
de se
alcançar esse destino ingente
a que
o navio de início foi lançado.
Melhor
então é nunca se esperar,
porém
criar ocasião para a cobrança,
que
então se busque a esquiva dama altiva,
no
porto em que ela habita se ancorar
e à
sua porta bater, que mãos não cansa
nossa
insistência perante a altiva dama esquiva.
SAMARKAND
III
E
pouco importa que ela mande uma criada,
a
transmitir qualquer mensagem má:
“A
patroa mandou dizer que não está!”
Sempre
se pode insistir nessa empreitada,
que à
porta se esperar não leva a nada...
Tal
persistência não nos garantirá
que
ela enfim à porta nos virá,
a se negar
ser por nós importunada...
Mas
ao menos se mostrou, trouxe a lembrança,
o
puro e simples contrariar dessa esquivança,
mesmo
zangada expôs-nos seu semblante...
e por
mais falha que seja essa esperança,
talvez
contemple em nós um rosto amante
e até
– talvez – nos conceda breve dança...
Nenhum comentário:
Postar um comentário