sábado, 27 de fevereiro de 2021


 

 

Milênio – duodecaneto

De william lagos

 

MILÊNIO I    (2008)

 

Enquanto eu tenho rosto, não espero

ter o favor dos deuses: igual arado,

devo cumprir meu dever atribulado,

sou ferramenta e servir eu devo e quero.

 

Não cabe ao instrumento, sendo mero

utensílio por momentos empregado

pedir ao artesão um dom alado,

mas se aplicar à obra, em tom sincero.

 

Se algum deus nos criou, foi para si,

para cumprir o quanto pretendia

e não para servir sua criação.

 

Mas ao menos isto pela vida eu vi:

que a ferramenta toda a fé perdia,

só por não ver atendida sua oração!...

 

MILÊNIO II  (5/1/2009)

 

E como é tolo esperar por um milagre,

enquanto não ser digno se admite:

como querer que à divindade incite

esse pedido, por mais que a fé o consagre...

 

Bem ao contrário, quando Deus nos pede,

é que devemos atender sem pausa:

de nossas vidas é essa a única causa,

servirmos bem a Quem vida concede...

 

Então, é bem melhor que a ferramenta

não se esconda, pois na terra se enferruja,

mas permaneça brilhante de afiada...

 

Para atender, se o instante se apresenta,

à missão indicada, à obra cuja

necessidade fez sua vida ser criada.

 

MILÊNIO III

 

Sempre esperança me tem sido ingrata:

por mais que invista nela, com torpeza

me reciproca.  Polui meus sonhos de beleza

e quando algo me dá, a ação remata

 

por tomar algo em troca.  É uma cascata

que inverte a gravidade.  Com certeza,

a esperança, a zombaria e a avareza

são irmãs e cada qual tormenta e mata.

 

Assim, não espero mais.  Tento proagir,

prever os resultados do que faço,

sem me queixar por não ganhar o bem.

 

Sem reclamar dos deuses, que a sorrir,

colocam a esperança em meu regaço,

pelo prazer de gargalhar também...

 

MILÊNIO IV – 27 dez 2020

 

Quando acrescentam barras à minha jaula

sinto uma raiva imensa, que se espalha

em cada fibra do meu ser e assim retalha

minha calma habitual e mesmo abaula

 

meu bom humor...  Porém depressão maula

é coisa que não sinto.  Não me falha

o equilíbrio hormonal.  Mas a navalha

dos desenganos, como constante aula,

 

recai em mim e então, toda revolta

fica minhalma...  Meu descontentamento

se rebela, violáceo de emoção.

 

É então que acuso os deuses e anda à solta

a insurreição de todo o pensamento,

rasgando as fibras de meu coração.

 

MILÊNIO V

 

Talvez todos os deuses tenham ido

exceto o Deus da Guerra.   Dominou

incontestavelmente e devorou

o século passado e ainda tem rido

 

nos primeiros albores, incontido,

deste século atual e conquistou

novos teatros em que, malferido,

o ser humano a si exterminou.

 

E foi o deus primeiro.  Antes que a Terra

fosse adorada por mãe e deusa crida,

já lhe erguiam altares e ainda estão.

 

Às narinas do mesmo Deus da Guerra

a cinza sobe em turbilhão contida

(e eu mesmo já morri em Potsdam).

 

MILÊNIO VI

 

Sempre acharemos Deus ser mais injusto

quando a nossos inimigos olvidar

o seu justo castigo, mais até que ao recusar

a nossa recompensa de alto custo...

 

Sempre acharemos esse ideal robusto:

devem pagar por essas culpas, que penar

nos fizeram tantas vezes, sem pensar,

que mereçam perdão, castigo ou susto...

 

Se temos de sofrer, julgamos então aqueles

que percebemos bem mais ímpios do que nós,

deviam receber castigo bem maior!...

 

E se Deus nos perdoar, perdoando a eles,

mui certamente, Ele é injusto, pois algoz

devia ser e castigá~los bem pior!...

 

MILÊNIO VII – 28 dez 2020

 

Não acredito em Inferno ou Paraíso,

nesses estados que dizem permanentes,

que recompensam os verdadeiros crentes

e os infiéis são condenados em juízo.

 

Mas como acreditar nalgo é preciso,

eu julgo o Além de formas diferentes,

que possamos de algum modo ser conscientes,

e o resultado não seja tão deciso...

 

A idéia do Inferno, claro está,

vem do desejo de aos outros castigar:

que suas maldades jamais tenham perdão,

 

enquanto Deus para nós concederá

alguma recompensa, e podemos assim odiar

um pouco menos, ao aguardar sua punição...

 

MILÊNIO VIII

 

Não acredito que um servo onipotente

faça por mim qualquer tarefa.  Ou dom

algum me venha a conceder.  O tom

desta minha vida é que seja indiferente.

 

Contudo, acredito que a outra gente

é meu dever servir.  Que seja bom

para meu próximo.  Que seja o som

de minha vida uma trombeta urgente

 

que expanda o bem em plena caridade,

mas não a qualquer um.  A quem pareça,

perante os olhos falhos que me servem,

 

merecedor da ajuda que, em verdade,

quando tiro de mim, em algo me aqueça

o pensamento nas emoções que o fervem.

 

MILÊNIO IX   

 

Eu sempre soube que os deuses não se importam

com as preces dos fiéis que os amofinam:

a cada um, desde o nascer, destinam

a realizar as tarefas que lhe aportam

 

desde o útero da mãe.  E lhes reportam

bem claros os destinos que os confinam.

É ao vê~los obedientes que os animam,

nos sulcos fundos a que os ideais comportam.

 

E se amor nos concederam, foi em causa

de que amor imperasse ao mundo todo,

qual ferramenta tão só da inspiração;

 

e assim cabe ao instrumento só a pausa:

pensar em ser feliz não mais que engodo,

que não trará jamais satisfação.

 

MILÊNIO X – 29 DEZ 2020

 

Contudo, Amor é um termo tão comprido!

Vê-se-o aplicado a tanta coisa mais!

Alegrias de amor são algumas naturais,

outras, porém, puro engano malnutrido!

 

Amor de mãe ao filho é conhecido,

igual que ao barco dirigido para o cais

é de esperar que não erre jamais,

pior que seja o seu crime cometido!

 

Mas esse amor de mãe é próprio amor:

o filho é carne de sua carne e lhe saiu,

a transportar seu sangue e sua placenta,

 

percebido assim no seu maior vigor,

pois nele é a própria imagem que se viu,

nenhuma mãe de ser parcial isenta!

 

MILÊNIO XI

 

Já diferente é o amor de qualquer pai,

no filho vendo a sua continuação,

de sua semente a nova brotação,

que para o mundo incandescente sai.

 

O amor pela parceira também vai

ser uma forma diversa de emoção,

dela se espera ter aceitação,

não só um ventre em que semente cai.

 

E pelo homem o amor é diferente:

dele se espera que contribua para o ninho

em que os ovos se põe com esperança

 

e o amor da Pátria ainda mais plangente,

mais um dever sagrado que carinho,

até o ponto que a própria alma alcança.

 

MILÊNIO XII

 

Contudo, clara a religião nos manda

amar a Deus de todo o entendimento;

do amor ao próximo há mais impedimento:

como é difícil amar-se a inteira banda

 

do próximo, que talvez obra nefanda

pratique contra nós em algum momento

ou que vemos a alguém causar tormento!

Contudo é isso que a Escritura manda!...

 

Amar a Deus, entretanto, é bem mais fácil:

basta entender que Ele a nós não deve

qualquer favor, bem ao contrário, tem direito

 

de requerer de nós a crença grácil

de quem à Sua vontade não se atreve

se revoltar e a Seu comando estar sujeito!

 

A BARCA DE TESEU I – 30 DEZ 20

 

SOMOS HERDEIROS DA ESCRITURA HELENA

TANTO OU MAIS QUE AO CRISTÃO ORDENAMENTO,

NELA EXISTINDO MUITO SIMPLES MANDAMENTO:

TEMOR AOS DEUSES OU SOFRER TERRÍVEL PENA!

UM BOM EXEMPLO DE DESAMOR REFLETE A CENA

DESSE MITO DE TESEU CADA MOMENTO:

AO MINOTAURO COMBATE SEM IMPEDIMENTO:

COM OSSO HUMANO À MORTE ELE O CONDENA!

 

MAS SÓ FEZ ISSO COM O AUXÍLIO DA DONZELA

ARIADNE, QUE TRAIU O PRÓPRIO PAI

E EM VERO AMOR AO NAMORADO VAI

DAR-LHE A MEADA QUE TECERA ELA

E SÓ COM ESTA É QUE TESEU CONSEGUE

AO LABIRINTO ESCAPAR, NÃO HÁ QUEM NEGUE!

 

A BARCA DE TESEU II

 

E ENTÃO TESEU A CONDUZIU CONSIGO

EM SEU BARCO DE TRÊS VELAS ESCURAS,

ABANDONANDO-A, PORÉM, A PENAS DURAS

EM NAXOS OU TÁURIDE PARA SEU PERIGO;

TALVEZ ATÉ SE JUSTIFICASSE, ASSIM O DIGO:

TRAIU AO PAI E POR RAZÕES IMPURAS

TRAIRÁ A MIM TAMBÉM!  E A TAIS AGRURAS,

COMPLETOU DESSA INFELIZ O SEU CASTIGO!

 

MAS EM SEU BARCO OS CASAIS TRAZIA DE VOLTA

QUE DA MORTE ENTÃO HAVIA RESGATADO

E SUA NOIVA ANTERIOR ALI ESTARIA

E SOBRE AS ONDAS MANIFESTOU A SUA REVOLTA,

ATÉ DA PRINCESA TER-SE ASSIM LIVRADO,

QUE ENFIM TESEU SUA LAMÚRIA ESCUTARIA!

 

A BARCA DE TESEU III

 

PORÉM AO PAI EGEU ELE HAVIA PROMETIDO

TROCAR AS VELAS POR OUTRAS MAIS CLARAS,

SE SUA MISSÃO EXECUTASSE EM PRECLARAS

CONDIÇÕES, NÃO TENDO AO INVÉS MORRIDO.

MAS NÃO AS TROCOU.  AS NEGRAS VELAS SIDO

AVISTADAS DE LONGE PELO ANSIOSO PAI,

QUE DE TRISTEZA AO MAR LANÇAR-SE VAI,

NUMA PROVA DE AMOR ATÉ INCONTIDO!...

 

TESEU ESTEVE APÓS EM OUTRAS AVENTURAS,

DEIXANDO ATRÁS DE SI AS DESVENTURAS,

BELO EXEMPLO DE AMOR NÃO TENDO DADO,

MAS MUITO MAIS AMOR TENDO INSPIRADO:

OUTROS MORRERAM PELO SEU AMOR,

VIVENDO O PRÍNCIPE NO MAIS PURO DESAMOR!

 

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