sábado, 19 de janeiro de 2013






                                               O BOI E O BURRO
Fábula portuguesa recolhida por Viriato Padilha,
recontada em versos por William Lagos, 6 JAN 13).

O BOI E O BURRO I

Em uma chácara, viviam um boi e um burro,
bem tratados, mas em constante trabalhar;
puxava o boi o arado e umas raízes
ainda arrancava, ao estalo do chicote;
tirava o burro a charrete e dava um zurro
se um carroção o botavam a puxar...
O boi achava ter o burro melhor dote
e algumas vezes até entrava numas crises...

“Burro, a sua vida é bem melhor que a minha;
o dia inteiro me espetam o aguilhão,
para puxar com maior força o arado
e ainda me obrigam muitos tocos a arrancar!
Quando eu demoro, já o chicote se avizinha:
nunca tem pena de mim esse peão!...
A terra é seca e dura de arrotear,
canga e trela me deixam todo lastimado!”

“Você, sim, que só puxa uma charrete!
Passa sua vida descansadamente...
Por que tanta diferença de destino?
E ainda me põem atrelado do seu lado
No carroção!...  Você é cheio de macete!...”
“Não é assim,” disse o burro, calmamente.
“Você é mais forte e por isso é atrelado:
do seu lado eu sou fraco e pequenino!...”

“Quando o patrão me arreia na carroça,
carrega frutas e troca por farinha...
Você não vê que quando o campo ara
é justamente para o plantio do milharal?
Ou então, aveia?   Você come do que roça!
Mas o patrão ganha muito mais da vinha:
vende as uvas e faz vinho natural:
o seu trabalho ao meu nem se compara!...”

O BOI E O BURRO II

“Aqui na chácara trabalha todo mundo,
até a mulher e os filhos do patrão...
Você completa a aragem e então se deita,
enquanto eu levo pilhas de frutas nos jacás!
Quando retorno, já está em sono profundo!...”
“Mas de manhã bem cedo vem o peão
e enquanto eu não levanto, esse rapaz
vai me chutando e no jugo então me ajeita!...”

“Está certo que eu deva trabalhar,
mas por que tenho de ajudar no carroção?”
“Porque é pesado demais só para mim!
Eu empaco quando a carga é demasiada!...”
“Que história é essa que chama de empacar?”
“Ora, é coisa muito simples, meu irmão:
eu simplesmente não me mexo mais por nada,
se noto o peso ser demais assim!...”

“Mas, e o chicote?” indagou-lhe o boi.
“Ora, meu couro é bem mais fino do que o seu,
o patrão só me bate bem de leve...
E nem precisa!...  Ele sabe que eu só paro
quando o peso é demais...  E sempre foi
cuidadoso comigo, pois sabe que eu
sou bom trabalhador e da carga não disparo...
Nem o peão me bater muito se atreve!...”

“Você é que é feliz!...” resmungou o boi.
“Todos os dias, eu fico me matando!...
Chega de noite, já estou muito cansado,
como a ração e logo vem o sono...
Ai, que saudade do tempo que já foi,
quando era terneirinho, ainda mamando,
correndo pelo pasto, em abandono
e ninguém nunca me prendia num arado!...”



O BOI E O BURRO III

E tanto o burro ouviu o boi queixar-se
que um dia decidiu dar-lhe um conselho:
“Amigo boi, você nunca está doente?”
“Que nada!... É de ferro a minha saúde!...”
“Pois eu acho que, ao invés de conformar-se,
devia mostrar que já está ficando velho...
Ande mais devagar, que o peão se ilude,
mesmo o chicote a lhe bater frequente...”

“E nesta noite, em vez de comer milho,
só mastigue essa palha de sua cama...
O peão vai pensar que nem comeu;
e de manhã dê uns mugidos de tristeza...
Garanto que o dispensam desse trilho!
só por um dia, o patrão nada reclama...
Você passa um dia inteiro na moleza,
descansa bem e dorme que nem eu...”

O boi se decidiu a seguir a ideia
e o dia inteiro trabalhou bem devagar,
sempre mugindo lastimosamente,
nem se apressando com a chibata do chicote!
Apanhou muito durante essa odisseia
e até se arrependeu, no seu penar,
com lanhos fundos nas costas e congote,
o seu sangue a correr profusamente!...

Chegou de noite em estado lastimável;
nem precisou fingir estar doente.
Bebeu só água e comeu palha, disfarçado,
enquanto o burro murmurava aprovação.
No outro dia, o empregado miserável
bateu mais nele, que não era complacente...
Mas o boi nem se mexeu nessa ocasião;
pois tinha ficado realmente machucado...



O BOI E O BURRO IV

Foi o empregado conversar com seu patrão
e lhe explicou estar o boi doente...
“Será preciso chamar o veterinário...?”
“Acho melhor esperar até amanhã,
para ver como se porta na ocasião...”
“Mas, e a lavra?” disse o peão, insistente,
“Passando a época, a semeadura é vã:
a aveia não cresce, se o tempo for contrário...”

“Pois é, vamos ter um problemão...”
Disse o chacreiro, a coçar a sua cabeça.
“Me desculpe, patrão, mas o senhor
vai precisar hoje do seu burro...?”
“Já entendi!” respondeu logo o patrão.
“Atrele o burro... Contudo, não se esqueça
que ele é mais fraco e não suporta murro:
nem sei se do arado será bom puxador!...”

“Não se avexe, patrão, vou ter cuidado!...
E lá se foi ao burro procurar...
Saiu o animal, todo lampeiro,
pensando que ia ser preso na charrete...
Mas quando viu, ficou apavorado!
O peão pôs-lhe a canga no lugar;
logo no arado ao pobre burro mete,
sem lhe dar uma só folga o dia inteiro!

O animal não estava acostumado:
puxar carroça era serviço bem mais leve!
E o patrão o chicote só estalava,
sem chegar mesmo a lhe tocar o couro...
Mas o peão era bem mais abrutalhado
e enfrentar-lhe as chicotadas então deve...
Puxou o arado, trabalhando como um mouro;
sua pobre espinha a quebrar ameaçava!...

O BOI E O BURRO V

Daí a pouco, qual estava acostumado,
sentindo o peso, ele foi logo empacando...
Mas não trouxeram o boi para ajudar!
O peão ficou batendo sem piedade
e o pobre burro ficou quase desancado;
com muito esforço, o dia inteiro foi puxando,
pois do látego tinha medo de verdade,
seu couro fino poderia se quartear!...

Na verdade, era mais uma ameaça,
que o peão tinha medo de o marcar,
pois pelo bicho o patrão tinha amizade,
mas nem por isso lhe poupou um murro!...
E o pobre burro sofreu toda a desgraça
que o boi tinha diariamente de aguentar,
sem mais fôlego sequer para um só zurro,
no limite de suas forças, na verdade!...

Ao por-do-sol, com medo do patrão,
o peão o lavou e alisou-lhe o pelo:
ficou que nem parecia ter suado...
Então, levado de volta à estrebaria,
ganhou aveia e milho do peão,
na frente do patrão puro desvelo...
O boi olhava e triste ainda mugia;
o sofrimento do burro disfarçado...

“Como foi o seu dia, amigo burro?”
perguntou-lhe o boi, muito à vontade.
“Ora, eu fui até a chácara vizinha:
levei a patroa, com as três crianças...”
“Ah, foi por isso que escutei seu zurro...”
“Pois é, hoje nem fui até a cidade...
Você está melhor...?” perguntou, com esperanças,
“Estou muito bem, mas vou seguir a ladainha...”

O BOI E O BURRO VI

“Como assim?” disse o burro, sem saber
o que o outro estava lhe dizendo.
“Ora, meu caro, vou continuar doente,
não só amanhã, mas a semana inteira!
Quem sabe, até um mês!  É melhor nada fazer.
Vou ficar aqui deitado, só comendo...
Ganhei aveia e milho de primeira!...
A vida assim é muito diferente!...”

O burro se assustou, naturalmente.
Ainda havia muito campo para arar!
Se o seu amigo fingisse mais doença,
seria ele que teria de sofrer!...
Comeu a sua ração completamente,
dormindo exausto de tanto trabalhar!
E se o patrão se deixasse convencer
e o peão o colocasse numa prensa...?

No outro dia, se acordou bem cedo,
ouvindo o boi a mugir, bem lastimoso...
“Amigo boi, o que está sentindo?”
“Coisa nenhuma!  Descansei, me sinto bem...
Mas ontem lhe contei o meu segredo:
gostei muito deste dia preguiçoso...
Vou fingir estar doente hoje também;
por isso, desde agora estou mugindo...

“Mas que pena!   Vou sentir muito a sua falta...”
disse o burro, bebendo um pouco de água.
“Ué, por que?” o boi lhe perguntou.
“Eu me esqueci de lhe contar o que escutei...”
“Então, me conte!...” o boi, curioso, salta.
“Ah, nem sei...  Talvez lhe cause mágoa...
Quem sabe eu ouvi mal ou me enganei...
“Ah, diga logo!...”  E o burro então falou.

O BOI E O BURRO VII

“Como lhe disse, eu posso até estar enganado,
mas ouvi o patrão indagando do peão
se não havia alguém vendendo um boi
para fazer o trabalho, em seu lugar...”
“Mas isso é ótimo!” disse o boi, meio espantado.
“Não, não é...  Sinto muito, meu irmão...
Eu acho até que não devo lhe contar,
que a outra parte da conversa pior foi...”

“Mas diga logo, burro!... Estou assustado...”
“Pois faz muito bem...  Eles falaram,
caso você não fique bom depressa,
antes que fique muito mais doente,
que vão levar você ao açougue do mercado...
“Ao açougue!”  “Foi o que combinaram...”
“Vão me abater?” disse o outro, de repente.
“Mas sou bem forte!  Não me invente essa!...”

“Amigo boi, queria estar inventando...
Mas a patroa pediu o pelego para a sala...
Estão com medo de que você morra
e enquanto ainda dá tempo, vão vender...
Ah, escute, o peão está chegando,
vamos parar agora com essa fala...
Pois é, os humanos só querem enriquecer;
lastimo muito que tal perigo corra...”

Quando o peão entrou na estrebaria
o boi se levantou, mais que depressa!...
Foi para o campo, com toda a boa-vontade,
enquanto o burro descansava o dia inteiro,
dando a si mesmo plena garantia,
após se ter conseguido livrar dessa,
que nunca mais seria companheiro,
por mais pena que tivesse, na verdade!

EPÍLOGO

Tenha cuidado quando der a alguém conselho,
não entra mosca em qualquer boca fechada...
Calcule bem se não virá uma consequência,
mesmo daqueles a quem quer mais bem....
Primeiro olhe o seu rosto num espelho
e só comente uma coisa bem pensada...
Caso não queira se prejudicar também,
lembre do burro e de sua péssima experiência!







ANDRÉIA DA SILVA MACEDO
1973-2012

Uma jovem inteligente e trabalhadora, Andréia nos foi roubada por doença insidiosa ainda em plena juventude, depois de um ano de sofrimento.   Foi ela que criou este blog e se encarregou de todas as postagens durante vários anos, até a semana anterior de sua morte.  Fica aqui o meu preito de gratidão e de saudade.  Não deixou filhos, mas deixou um pouco de si em sua dedicação a este documento e meia dúzia de pps/ppts que realizou sobre poemas de minha autoria.  Que sirva esta lápide como agradecimento.