sábado, 28 de outubro de 2017





A LAVADEIRA ENCANTADA
(Folclore português, versão poética de William Lagos, 28 jul 2017)
(A ilustração é o óleo A Lavadeira de Maret, de Alfred Sisley).

A Lavadeira Encantada – 28 jul 2017
Fulgurita – 29 jul 2017
Cronomancia – 30 jul 2017
Revoada – 31 jul 2017
Sonhos Verdes – 1º ago 2017
Estrelagem – 2 ago 2017

A LAVADEIRA ENCANTADA I – 28 JUL 2017

Em uma aldeia do interior de Portugal
vivia menina de seus nove anos,
de uma beleza além do natural,
igual àquela das estátuas dos romanos;
sol e trabalho não lhe faziam mal,
sua pele clara, pura e sem enganos,
mesmo que fosse extremamente pobre,
rica era ela da pureza que a recobre...

Todos diziam que, quando crescesse,
pelos rapazes seria muito requestada;
mas ela mesma, ainda que percebesse
na água da bacia ou na lagoa parada
as suas feições e ser bonita cresse,
indiferente se mostrava ao ser louvada,
sem demonstrar ter a mínima vaidade,
tudo aceitando com naturalidade...

E embora as velhas a louvassem tanto
e algumas jovens a encarassem com inveja,
seu coração era perfeito e santo,
em seus brinquedos gentil e benfazeja,
qual protegida por um divino manto
de um mau orgulho que a pureza aleija:
homens maduros a tratavam com respeito
e por sua proteção juraram preito.

Já os casados, como filha a desejavam,
suas esposas sem mostrar qualquer ciúme;
com um suspiro alegre a contemplavam,
ansiando ter (com um tantinho de azedume)
filhas tão belas dos homens a que amavam,
com a gentileza, a graça e o claro lume
que brilhava em seu olhar: de igual lisura
que conservassem enquanto a vida dura!

Como essa aldeia era pobre e retirada,
seus camponeses de bom coração,
nas cercanias sem haver alma malvada,
qualquer perigo só haveria na ocasião
de algum viajante de mente desviada
que ali passasse, indo em outra direção;
e assim na estrada se revezavam sentinelas
a protegê-la de quaisquer procelas...

Bem diferente caso morasse na cidade,
em que gente de má índole se acharia;
mas lá no campo, tinha plena liberdade,
alegre andando por bosque e pradaria;
nas colheitas trabalhando de verdade,
frutas trazendo que a mata produzia,
para ajudar a seus pais e seus irmãos,
pequenos calos já formados em suas mãos...

A LAVADEIRA ENCANTADA II

Ora, um dia, trabalhando na colheita,
de uma foice ela sofreu talho profundo;
mesmo amarrado, seu dedinho não se ajeita,
correndo um sangue rubro de iracundo,
interrompido seu trabalho desta feita,
levou-a o pai ao colo, furibundo,
vida temendo que lhe escorresse por ali,
até a casa de sua avó, perto dali...

Quando a vovó enxergou a sua netinha,
de imediato, fez uma invocação
aos bons espíritos que a terra então continha
e de ervas preparou uma infusão;
pôs a mão a mergulhar em tigelinha,
do sangue o fluxo a interromper nessa ocasião;
roubada à aranha inofensiva, mesmo feia,
cobriu-lhe o talho com sedosa teia...

Qual por encanto, a hemorragia se estancou,
a teia cinza a lhe servir por atadura;
por ser saudável, logo a ferida se fechou
e no outro dia completou-se a cura;
a mãe à velha sogra visitou,
mais de uma noite a menina ali perdura
e no terceiro dia, a linda Leonor
já não causava mais aos pais qualquer temor.

A mãe lavou as roupas de seu pai,
já no outro dia em seu campo a trabalhar,
mas a menina para o sol não sai;
nessa semana sua avozinha a ajudar
e em seu lugar, um irmão mais novo vai,
juntando apenas os feixes, sem tocar
naquela foice que o acidente provocara,
que sem licença a menina segurara...

Mas passada essa semana, a garotinha,
que sempre fora laboriosa e independente,
marchas de sangue percebeu que tinha
seu avental, por ter sido imprudente;
e como já curara a sua mãozinha,
foi ao riacho que ficava em frente
da choupana em que sua avó morava
e logo as manchas de sangue ali lavava...

Eis que em frente, do outro lado da ribeira,
vastas ruínas se erguiam de um castelo,
séculos antes a morada derradeira
de um jovem conde, corajoso e belo,
mas que morrera em batalha rinhadeira,
na qual lutara com o maior desvelo,
contra os mouros, que buscavam causar mal
às terras bentas do formoso Portugal!...

A LAVADEIRA ENCANTADA III

Nessa batalha também havia morrido
a maior parte de seus seguidores.
Dos mouros o poder fora abatido,
os lusos feitos de Algarves os senhores,
mas para ali, ao castelo derruído
só retornaram malferidos moradores,
que ao cemitério os restos conduzindo
de seu senhor, depois também ali dormindo.

Ficou ali sozinha a castelã,
que grávida esperava uma criança;
só umas criadas, por bondade chã,
a acompanharam em tal desesperança,
mas seu sustento era agora coisa vã:
sem um plantio, colheita não se alcança;
Dona Hermengarda precisou vender
móveis e jóias, para ter o que comer!...

E desse modo, a coitada enlouqueceu
e uma ideia perversa lhe brotou:
essa criança, que do marido concebeu
o seu próprio marido lhe tomou!
Em sua loucura um fantasma percebeu,
pensando ser o conde que voltou!...
Mas o fantasma lhe disse: “Essa criança
de meu retorno é a única esperança!...

“Sete dias depois de ter nascido,
mate o nenê e o sangue lhe recolha;
banhe-se nele e ser-lhe-ei devolvido!
E quando o sangue a bacia não mais molha,
corte em pedaços o corpo ressequido,
sobre meu túmulo os espalhe como folha
e eu voltarei, do purgatório ou céu,
pelo sangue vermelho do seu véu!...”

Naturalmente, era só um pesadelo,
provocado por maligna loucura,
porém matou seu filho, sem desvelo
e o sangue recolheu de forma impura
e nele se banhou, depois de tê-lo,
secado o corpo com seu véu da lã mais pura
e os pedaços espalhou na sepultura,
ação terrível que a mente nos tortura!

Sem qualquer dúvida, o conde não voltou,
mas as criadas de horror a abandonaram
após o crime que então executou
e só os demônios da loucura a acompanharam
e nesse leito gelado em que deitou
os seus ossos, pouco a pouco, desmancharam,
porém sua alma da cama levantou
e em corredores vazios então vagueou!

A LAVADEIRA ENCANTADA IV

Mas Leonor disso nunca ouvira nada,
só vira escombros do velho castelo
e sendo criança feliz e bem tratada,
nada lembrou desse horrível pesadelo,
mas ajoelhou-se do riacho na beirada,
lavando as manchas do aventalzinho belo...
Mas de repente, percebeu que não estava
ali sozinha, junto à água em que lavava!

Viu que na margem oposta se ajoelhava
loura mulher, de formosura singular,
a que nem a palidez desfigurava
e um véu de lã pintalgado a viu lavar;
um branco traje a lavadeira usava,
porém seu véu não conseguia limpar:
ela o lavava e depois o enxaguava,
ainda vermelho se da água o levantava!

Por um momento, a meiga Leonor
pensou ter manchado o aventalzinho;
mas quando o levantou, o seu temor
logo sumiu, pois ficara bem branquinho!
Contudo, o da mulher, por mais vigor
que ela aplicasse, continuava encarnadinho!
Ela lavava, esfregava e até pensava
limpo estivesse quando o levantava!...

Mas a seguir, toda a água se escorria
e pintalgado de vermelho estava o véu!
Leonor nada daquilo compreendia
e suas vistas ergueu até o céu,
mas o Sol ainda amarelo ali se via,
nem alvorada, nem por-do-sol ao léu;
tampouco as águas mudavam a sua cor,
deixando o pano ainda rubro de esplendor!

Então ouviu a lavadeira murmurar:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos anos,
Mas esse sangue não consigo retirar!
Tão carmesim como meus desenganos!”
E novamente reiniciava o esfregar:
dentro da água branquíssimos seus panos,
mas no momento em que o erguia da água,
rubro tornava, a lhe causar imensa mágoa!

E novamente a pobre dama murmurava:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos anos,
mas rubro o véu sempre me retornava
e nem sequer se desgastam esses panos,
nunca esgarçaram quando os esfregava;
dentro da água os vejo limpos, sem enganos,
mas no momento em que este véu é levantado,
escorre a água e de novo está encarnado!...”

A LAVADEIRA ENCANTADA V

Nesse momento, a bela Leonor,
vendo as ruínas através da dama,
tomada foi de um autêntico terror;
pegou o avental e como viva chama
disparou do riacho em seu pavor,
enquanto a voz da penada ainda exclama:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos anos
E nunca posso embranquecer meus panos!”

Com o coração aos pulos, retornou
até a conforto acolhedor dessa choupana
em que sua avó o dedinho lhe curou
e logo a anciã com ela já se afana:
“Que foi que houve?  Seu corte retornou?”
“Não, avozinha!”  O que ocorreu lhe exclama...
“Então, o dia é hoje...” – ela falou.
“Já muita gente com ela se encontrou...”

“Com ela, quem?” – quis saber a garotinha.
“Esse é o fantasma da condessa malvada...”
“Mas eu pensava que só de noite vinha
nos assombrar qualquer alma penada...”
“É diferente este caso, minha filhinha;
por lenhador e caçador foi avistada,
em plena luz do sol, mas só no dia
em que essa pena que purga se cumpria!”

E então, ela narrou-lhe a velha história...
“Contudo, minha querida, o povo diz,
porque essas lendas se transmudam na memória,
que por vaidade foi que essa infeliz
matou a criança, para granjear a glória
da eterna juventude que assim quis,
conservando para sempre sua beleza,
que ainda hoje ela guarda em inteireza...”

“Só que a conserva como espírito sofrido
e só aparece nesse triste aniversário
de quando foi o negro crime cometido,
qualquer que fosse seu motivo atrabiliário;
o que almejava era o esposo devolvido,
não foi vaidade esse seu ato temerário...
Percorre agora, miserável, seus salões,
tudo saqueado por lá... há gerações!...”

“Muitos andaram mesmo o chão esburacando,
dizendo haver por lá algum tesouro
e que o fantasma só o está guardando...
Antes que ao conde trucidasse qualquer mouro,
em algum ponto do castelo ouro ocultando...
Mas não enxergam a pobre, em seu desdouro,
salvo no dia desse triste aniversário
em que cumprido foi seu ato temerário...”

A LAVADEIRA ENCANTADA VI

“Mas não precisa de ter medo, minha netinha
Dona Hermengarda nunca a ninguém fez mal,
Somente a ela e à sua pobre criancinha...
Ali se ajoelha, cumpre o fado assim fatal
e a redenção nunca dela se avizinha,
apenas lava e esfrega, em esforço tal,
sem que consiga ter sua alma redimida,
até que a mancha seja inteira diluída!...”

No outro dia, apresentou-se Leonor,
mais uma vez, à margem do ribeiro,
da lavadeira mais curiosa que em temor...
Sem avistá-la, retornou ligeiro...
Foi outras vezes, mantendo esse pendor:
só o riacho a cantar, alvissareiro...
Mas quando sua avozinha percebeu,
disse sorrindo: “Seu tempo só perdeu...”

“Ela aparece nesse dia somente
em que foi o hediondo crime praticado;
ande sem medo, que nunca está presente,
salvo em seu natalício de pecado;
a quem a vê, se mostra indiferente,
vive ainda presa no infeliz passado...
Dizem ter visto ainda ossos numa cama,
mas ao tocarem, de pó tornou-se escama...”

Em breve Leonor da avó se despediu
e retornou para a casa de seus pais;
aprendeu contas, leu e redigiu
na escolinha, com todos os demais;
porém do padre a opinião nunca pediu,
que aulas dava de catecismo e pouco mais;
mas ganhou cruz pelo pároco abençoada,
por ter sido em suas aulas aplicada...

Mas quando aos pais narrou sua aventura,
disse-lhe a mãe que não fosse mais ali;
falou-lhe o pai: “Nas ruínas, desventura
de muita gente já escutar ouvi;
além de aranhas e escorpiões, cobra é segura;
certo dia, lá até mesmo eu me feri,
em vão buscando pelo tal tesouro,
pura tolice para o meu desdouro...”

“Tesouro houvesse, já teria sido achado
e essa tal cama com os ossos desmanchados
nunca encontrei, apesar de ter andado
muitas vezes pelos paços destelhados;
quebrei um braço... nenhum outro resultado,
ao remover uns escombros derribados.
Para minha sorte, bem depressa me curei,
mas não ruínas nunca mais eu retornei!...”

A LAVADEIRA ENCANTADA VII

Contudo, ainda curiosa,  Leonor,
pouco depois completou os seus dez anos,
e já esquecido o seu momento de pavor,
na cabecinha começou a fazer planos,
a data e a hora recordando com vigor,
decidida a retornar, sem mais enganos:
Eu não pretendo mesmo ir ao castelo,
só lavar roupas no tal riacho belo!...

E dito e feito!...  Sem a ninguém contar,
Leonor desceu até a margem da ribeira,
levou consigo a roupa de lavar
e então a dama lhe surgiu, ligeira,
bem diante dela se novo a se ajoelhar,
seu véu lavando do fluxo na esteira
e novamente, o mesmo aconteceu:
cada mancha outra vez apareceu!

Porém as roupas da menina Leonor
tinham ficado limpas bem depressa
e as estendera nas pedras, com primor,
para que o Sol com gentileza aqueça,
só precisando de ferro algum calor
para passar, com calma e sem ter pressa...
Mas ali estava a encantada lavadeira,
hora após hora a repetir, certeira:

“Eu lavo, lavo, já há trezentos anos,
mas o sangue sempre torna no meu véu!”
Então Leonor pôs em prática seus planos,
com firmeza segurando a cruz do céu,
seu coração batendo ritmos insanos,
juntou coragem para fazer pedido seu
e então falou: “Por Deus, Dona Condessa,
dê-me esse pano agora, bem depressa!”

Por um momento, a cantilena continuou,
porém os olhos para a menina ergueu
e num sorriso, o tecido lhe entregou,
que material em suas mãos pendeu
e de imediato dentro dágua mergulhou,
todo o vermelho nas marolas escorreu,
o véu agora do mais branco linho
que devolveu para suas mão de arminho...

E embora a dama nada mais falasse,
fez um sinal para a menina que a seguisse
e então moveu-se, sem que o chão tocasse,
um fogo fátuo branco de meiguice;
mesmo que ainda por momentos hesitasse,
ao recordar o que seu pai lhe disse,
Leonor, com coragem, a seguiu
pela trilha que ao castelo a conduziu...

A LAVADEIRA ENCANTADA VIII

Sempre no lúgubre rastro de sua guia,
que quando em vez se virava para trás,
nesse meio sorriso que trazia...
De Leonor a coragem não desfaz
e assim desceram por escadaria,
sentindo nela confiança bem veraz
que até ao subsolo as conduzia,
por degraus que mal a vista discernia...

E da adega, no ponto mais escuro,
enfim parou a dama fantasmal
e seu braço estendeu, num gesto duro
para uma pedra iluminada por sinal,
raio de sol a transpor todo o monturo;
viu Leonor estar presa mal e mal
e sem a esquerda pôr de lado a cruz,
com a direita puxou a laje para a luz.

Mas no momento em que a pedra levantou,
por entre o refulgir de peças de ouro,
criança morta o seu olhar notou,
peito ferido por punhal de mouro!...
Cheia de horror, Leonor dali recuou
e pretendia já fugir daquele foro,
mas a encantada olhou-a, suplicante,
as mãos torcendo na aflição do instante!

De Leonor se renovou a coragem!
Sua mão esquerda para ali estendeu
e sua cruzinha colocou sobre a miragem,
que de imediato se desvaneceu,
somente as peças de ouro em sua visagem...
A dama aos poucos também empalideceu,
as mãos no peito, lágrimas pingando,
mas sobre o piso nem sinal deixando!

E pouco a pouco, ela desapareceu,
qual de manhã se apaga um pesadelo,
se o galo avisa que o dia amanheceu
ou se derrete ao sol pedra de gelo;
somente ali o caldeirão permaneceu,
centenas de dobrões, ouro em desvelo;
a cruz em cima afastando todo o mal,
brilhante ainda do Sol sob o fanal!...

Agradecendo ao bom Deus por tal favor,
pensou Leonor não poderia levantar,
um caldeirão com tal peso e tal valor...
Porém, ao menos, deveria tentar!
Pegou-lhe a alça, puxando com vigor,
subindo o fardo como que a flutuar!...
E assim, escada acima foi galgando,
mãos invisíveis todo o tempo a amparando!

A LAVADEIRA ENCANTADA IX

Contudo, assim que cruzou o ribeirão,
sentiu a carga com seu peso inteiro!
Mas em suas mãos surgiu um alvião
e uma cova foi abrindo, bem ligeiro,
sem duvidar, dentro em seu coração
que algum anjo a ajudava, lisonjeiro!...
E retirando dali dúzia somente,
o caldeirão ela cobriu inteiramente!

Correu depressa até a casa da avozinha,
seu pai e mãe preocupados ali achou,
que as roupas viram que sobre as pedras tinha
estendido para o sol que as aquentou.
“É o fim da tarde!... Logo a noite se avizinha,
Será que nossa filhinha se afogou...?”
Mas depois que a abraçaram e beijaram,
maravilhados a aventura lhe escutaram!...

E vendo a dúzia de moedas em sua mão,
finalmente em sua história acreditaram:
guardar o ouro na choupana logo vão
e com a sogra e mãe se aconselharam...
“Má cobiça há de surgir no coração
desses vizinhos em que até hoje confiaram!”
E dessa forma, sem contar nada a ninguém,
para outra aldeia mudaram-se também...

Lá o dinheiro gastaram sobriamente:
duas moedas aqui, três mais adiante,
sem que ninguém estranhasse que essa gente
com algum ouro contasse nesse instante;
vendeu seu campo por dinheiro suficiente,
afirmando ter temor dessa intrigante
ruína em que seu braço já quebrara,
que entrementes ainda mais desmoronara...

Ali compraram campo e nova casa,
vivendo bem, mas sem ostentação;
gente boa havia também naquela vaza
e empregados contrataram na ocasião,
ainda ajudando àqueles que lhe apraza,
avó e crianças mantendo a discrição,
boas colheitas a lhes trazer prosperidade,
ante os vizinhos a mostrar dignidade...

Eventualmente, o barão desse lugar,
vindo os impostos de costume recolher,
ficou encantado com a beleza singular
da meiga Leonor e seu filho foi trazer,
os dois depressa a se enamorar,
feliz o nobre pelo dote que ia ver,  
feliz o filho com sua noiva bela e pura,
que os dois se amaram na maior ternura!...

EPÍLOGO

Em poucos anos, o castelo inteiramente
se desfez, em caliça e pedra dura,
crescendo o mato com rapidez virente,
numa colina que até hoje ali perdura;
Dona Hermengarda nunca mais se fez presente,
seu filho e ela no resgate da alma pura...
Somente torna ao entardecer sua lenda
a quem ao narrador com calma atenda...

FULGURITA I – 29 JUL 17

Eu amo a forma com que hoje me apareces,
mulher da Lua, argentina e auricular;
minha confissão bem podes apreciar,
satisfação e resultado de minhas preces;

Tão variegada que assim me compareces,
canção de auriga, luz crepuscular,
os fios de seda dos cílios a flutuar,
na excitação com que em meu peito desces.

Eu amo a forma com que hoje te revestes,
talvez um pouco mais que de costume;
quando te vejo, assoma-me a incerteza,

não de te amar, mas do jeito que me investes,
doçura terna, malquerença ou só perfume,
na metonímia que me expressa tua beleza.

FULGURITA II

Amo tuas formas de transmogrificação,
algumas vezes, como rosa vegetal,
em outras vezes como jóia mineral
ou de alabastro mostrando a carnação.

Eu amo as formas dessa apresentação,
qualquer que seja o avatar feito animal,
Parvati dura em sua forma imaterial, (*)
Kali cruel, em teus momentos de tensão.

Umma que sejas, a doce mãe arcana
ou a vasta Durga, de esplendor incompreensível,
sempre mutável, mas tua face sempre humana

e assim me encanto, mesmo sem saber
qual dessas mil se tornará visível
da multidão a que me sinto pertencer...
(*) Umma, Parvati, Durga e Kali são avatares da mitologia hindu.

FULGURITA III

Mas algo eu sei em ti sempre constante:
é essa atração sobre mim que prepondera,
seja de ninfa, quer de besta-fera,
mas em teus olhos sempre fulgurante.

Minha inspiração a conduzir avante,
pelo desejo que teu flutuar me gera,
tentacular domínio de megera,
como um relâmpago de sibilar instante.

E nessa luz me firmo e me requeima,
busco os coriscos que vêm-me cavalgar,
busco a alcateia dos sonhos teus beijar;

tanto me ferves, porém sem calcinar
e que perdura em tal constante teima
de que jamais consigo me afastar!...

CRONOMANCIA I – 30 JUL 17

Por que ao domingo sempre tem de preceder
o dia de sábado, sucedendo à sexta-feira?
Por que a semana assim corre tão ligeira.
sem quinta-feira qualquer permanecer?

Vêm as segundas aos domingos derreter,
logo empurradas por cada terça-feira;
segue-se a quarta, de forma corriqueira:
competição ou simples forma de viver?

Logo a semana se enruga, anquilosada,
nessa vaidade espelhada pela Lua,
que sem luz própria, vive em plena mutação,

sempre inconstante e sempre comparada
à beleza da mulher, vestida ou nua,
transitória em sua alegria e em sua paixão!

CRONOMANCIA II

É essa constante transição de prata
Inicialmente a nos vender noção de tempo
e a Selene já atribuíram cada evento,
desde as marés até o vigor da mata.

Mas é o pulsar da semana que desata,
de crescente a minguante em seu alento...
Por que atribuir-lhe assim um contratempo
ou cada mágico provento que se acata?

Pois ancestral é a crença neste arcano:
gélida a vida controla o ente sideral,
bem mais que o Sol, de quem a vida brota;

cinquenta e duas semanas tem um ano,
quatro luas a mais que a natural
procissão fria que os dias nos esgota!...

CRONOMANCIA III

Destarte então essa Lua se transforma,
mais do que em fases, pela atmosfera;
algumas vezes dourada em sua esfera,
de outra vermelho o círculo que a forma.

O encantamento com que assim se adorna
no inconsciente coletivo deblatera:
a lua escura em tocaia, igual que fera;
a lua clara, que em seu palor amorna...

E em tudo vê-se a adivinhação:
nos mostra a Lua o dia que verás;
por nosso bem a Lua sempre a conjurar,

o tempo inteiro nos fulgores de sua mão,
nosso futuro como bola de cristal,
que nos contempla, sem trazer-nos bem ou mal.

REVOADA I – 31 jul 17

Se eu tomar o espanador do firmamento,
tirando as teias das caudas dos cometas,
na imprevidência de tais ações secretas,
desagregando seu plasma contra o vento;

se nesse gesto de infeliz cometimento
suas caudas eu deixar mais incompletas
e ao gravitarem por órbitas discretas,
algo de si irão deixar no passamento.

Serão estrelas cadentes de ilusão,
na atmosfera feitas luz desmancharão,
resto deixando apenas em teus olhos...

Mas sempre podes fazer algum pedido
enquanto à Terra descem tais escolhos:
quem sabe o dom não te seja concedido?

REVOADA II

Certo, porém, é que algo desagregue
desse cometa que pretendia limpar:
menor será caso algum dia retornar;
poeira de estrelas talvez em mim se apegue...

É um sonho sideral que se consegue
e que dos dedos não se deve retirar:
sonhos são sonhos – não são para alijar,
porém chuveiros em que a aridez se regue...

Prossigo assim em meu atrevimento,
quer seja ele um revoar de egoísmo:
muito mais perde o cometa que me dá;

mas vejo os dedos em seu alumbramento
e a própria alma de algum modo eu crismo
nos meteoros que sobre mim alijará...

REVOADA III

De certo modo, teu sonho eu criarei
e o teu pedido calcado em esperança,
caso seja alguma coisa que se alcança,
nesse meu ato febril te alcançarei.

Será a cadente estrela que te dei,
na qual ainda crerás quando criança;
na vida adulto só há tristeza mansa
das ilusões de ser princesa ou rei.

E que me importa que o cometa diminua
se a um sonho teu dará apreciação?
Os meteoros causam muito estrago

e se no cosmos bem menor se estua,
mais limitada nos trará devastação,
deixando em ti a sombra de um afago...

SONHOS VERDES I – 1º AGOSTO 17

Duas folhas descem pela correnteza,
verdes ainda, mesmo que tombadas,
por alguma formiga destacadas
ou pela força de um vento de aspereza.

Elas balouçam, sem qualquer certeza
de esperas plenamente esverdinhadas,
em seu formato são bem diferenciadas,
nenhuma tendo um alvo a que se preza.

Pensam apenas uma achar na outra
a sua metade igual e diferente,
com a qual se unir até o fim da vida,

pouco diversas desta vida estoutra
em que balança tanta humana gente,
como quem chora por sua mãe perdida.

SONHOS VERDES II

Pinga do ramo a flor desarraigada,
seu breve caule roído por lagarta;
flutua breve – de surpresa farta,
até pousar no solo, atoleimada.

Pinga do lar a filha já criada;
na juventude é justo que ela parta,
que a proteção inicial assim descarta,
seu novo ninho a buscar incontrolada.

Quer de seu próprio lar a dona ser;
no rio da vida procura a independência,
mais ou menos segura em seu parceiro;

mas pelas águas balança, sem saber
que esse fluxo controla sua impaciência,
até que o rio se esgote por inteiro.

SONHOS VERDES III

Mas de que serve à folha estar no chão,
senão que seja devorada lentamente
por fungo e mofo que nela se apresente
serapilheira a tornar-se na ocasião.

E de que serve ao humano coração
à sombra continuar sempre presente,
à sua própria volição indiferente,
na umbilical presença de sua mãe?

Porque é preciso que lhe chegue a chuva
e por ladeira assim a faça se mover,
até que chegue à aquática corrente;

ferem-se os dedos na ausência de uma luva,
mas desse modo se irão fortalecer
no verde sonho da geração nascente.

ESTRELAGEM I – 2 AGO 17

A vida é um fardo que levamos sobre os ombros.
O quê de nós, se não houvesse esquecimento?
O que seria, se o completo desalento
nos conclamasse a portar os seus escombros?

Assim o fardo esgarça-se em seus rombos,
por onde escorre algum padecimento,
que deixamos empós nós, sem sentimento,
sem tocarmos clarim, pífano ou bombos...

Contudo, a maioria das memórias
é sopesada na esteira de Amon-Rá;
sobre essa vida domínio não terá

o amargo Osíris, castrado de sua glórias,
o deus eunuco que nada mais nos gera
senão o peso mortal de uma quimera.

ESTRELAGEM II

Em nossos ombros há o corte da atrelagem
com que levamos firme o nosso fardo,
pelos espinhos de tais cordas de cardo,
por desusada e longa tal bagagem.

Na morte apenas encontramos estalagem
ou na canção sutil de um meigo bardo,
no ferimento erótico de algum dardo
que o olhar nos cegue para a real paisagem.

Só na poesia e no amor existe estrela,
mesmo que sejam, de espanto, desviados,
quando se ame a violência da procela,

quando se cante o delírio dos pecados
ou a esperança, que irônica nos vela
e nossos fardos torna ainda mais pesados.

ESTRELAGEM III

Não obstante, sobre nós brotam estrelas
e seus raios são melífluos de sonhar,
mal e mal competindo com o luar,
cores diversas dos planetas nas janelas;

liames lançam das surpresas mais singelas
que pelos pés nos conseguem enlaçar
ou que as artérias caprichosos vem trançar
e desses raios nos servimos como selas...

O quê de nós se não houvera a estrelagem
que nos engana até os páramos da glória,
nossas mochilas pesadas esquecidas!...

Que nos importa serem fogos de miragem
e que nos dotem da esperança mais simplória,
quando as tristezas, por momentos, são perdidas?

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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