quarta-feira, 30 de março de 2011

CHAMAS NEGRAS


CHAMAS NEGRAS I

A minha estrela desceu feito esmeralda:
esvoou-se entre meus dedos, num instante.
O fogo dessa estrela não me escalda,
só a saudade é que se expande, triunfante.

Pouco diria à estrela que se esbalda,
nessa descida feroz e cintilante.
Escorre por meu peito como a falda
de um monte incinerado a seu talante.

E me sinto cremado nesse frio,
que transforma meus dedos em geleia:
gélida e verde a esmeralda da ilusão.

Pois minha estrela deixou, no seu vazio,
apenas um cadáver de epopeia,
que me ferve, inanimado, ao coração.

CHAMAS NEGRAS II

Nem sei se ainda consigo, à força, relembrar
os beijos que te dei e não devia ter dado:
esse beijo sutil de bênção enlutado
e o beijo imaculado do meretrício amar.

Confesso já nem lembro, mal posso recordar
esse frescor gentil de gosto acidulado,
um, beijo de arlequim; o outro, engravatado,
em rufo amarfanhado de aroma singular.

E à noite, essa centelha, desmesurada foice,
arrastando no céu gotas de sangue humano,
decepou a saliva do beijo alvissareiro.

Os cantos de teus lábios provei e a Lua foi-se;
em gotas de manteiga ficou o sabor profano
e o Sol me derreteu o beijo derradeiro...

CHAMAS NEGRAS III

A doçura de tua língua, tão macia,
percorre os nervos da palma de minha mão:
um arrepio me perfura o coração
e escuto o aroma da voz que seduzia...

Porque teus lábios são de ventania,
a língua é monja perdida em adoração:
fazer amor é qual contemplação,
de prana e mana um mar inunda o dia.

Fazendo amor em tal eucaristia,
em corpo e sangue assim transfigurado,
chegava a crer que amor me retribuía...

Há mais que encanto nessa nostalgia:
é um ritual perfeito do impensado,
que refervesce em plena liturgia. 

CHAMAS NEGRAS IV

Queria os bens da vida, enfileirados,
na palma de minha mão: gotas de cera,
que mais me queimarão a vida inteira
do que farão meus dias abençoados.

Mas quero ainda assim, mesmo queimados
os meus dedos, necrosados pela mera
fricção com tal faina, quem me dera! --
a mostrar-me resplendores anelados...

Não sei até que ponto perco a alma,
em troca desses mil balangandãs,
que sempre soube não trariam bom proveito,

mas bem queria um módico de calma:
que não me erguesse, todas as manhãs,
na seguidilha do trabalho com que deito.

CHAMAS NEGRAS V

Neste papel em frangalhos vai minhalma,
como minhalma também se acha em frangalhos
ao receber de tantos golpes malhos,
mas resistindo ainda em plena calma.

Mas são ruínas difíceis que escolhi...
Como é difícil a vida que me deram,
mas minha é a culpa se tanto me escolheram:
sou responsável por tudo o que sofri.


Mas se permito que me façam doravante
o que fizeram antes, sou profeta;
se me enganaram uma vez, eu fui gentil;

se me enrolaram duas vezes, tolerante,
mas se zombaram três vezes, sou pateta,
porque não passo de um covarde vil.

CHAMAS NEGRAS VI  (8 mar 08)

O suor de teu peito, entre teus seios
desperta um esplendor dentro da mente:
a lástima da espera indiferente,
a ânsia de mover-me entre teus veios.

A vida se resume em tais esteios,
onde começa a vida, incontinenti,
na força desse leito onisciente
que a vida me mantém por outros meios.

Quero lamber o suor que assim verteste
sobre a alvura da pele, mais que leite,
porque há muito já deixei de ser criança.

Mas ao beber o suor que assim me deste,
é como se me desses, nesse azeite,
a vida mesma feita de esperança...

CHAMAS NEGRAS VII

Eu pretendia parar, verdade pura!
Tenho versos demais nos meus guardados,
em prateleira estão encarcerados,
outros tombaram já da imensa altura...

Se momentos eu tiver, na doce agrura
do trabalho incessante retirados,
serão esses pacotes espanados
e estudados novamente, sem doçura.

Não são mais um prazer, nem compromisso,
tornaram-se somente outra tarefa,
a me rasgar o tempo de minha vida...

Vou colocá-los em fideicomisso,
amortalhá-los na mais fina sanefa
do pano azul que a alma trás vestida...

CHAMAS NEGRAS VIII

Dizem que Amor é cego... mas nos cega,
pois vê perfeitamente, em zombaria.
Somos nós que não vemos o que via:
controla o leme e não mais se navega...

De mosto nos instila, dessa adega

em que os vinhos mais preciosos guardaria.
Mas de algum modo o paladar vicia:
dá-nos vinagre e o vinho mesmo nega.

Então tomamos o vinagre pelo vinho,
enquanto o nosso olfato, de empanado,
já nem percebe dos beijos a acidez...


E tomamos por guirlandas de azevinho
essas coroas de urtiga de seu fado,
que mal nos picam, em nossa embriaguez.

CHAMAS NEGRAS IX

Durante muito tempo conservei
recoberto o assento em que sentaste,
reservado para ti, que o ocupaste,
no qual ninguém sentar depois deixei.

Durante muito tempo separei
dentro em meu coração, onde ficaste,
um lugar só para ti, mas não tornaste,
enquanto o coração vazio guardei.

Um dia, é claro, alguém se assentará
nessa mesma cadeira em que estiveste,
sem nem sequer saber o que desmancha.

Também, um dia, alguém ocupará
esse espaço vazio que assim me deste,
sem perceber o negror da antiga mancha.

CHAMAS NEGRAS X

Para saber se amor é verdadeiro,
consulte o coração, leia a mentira
que a emoção em torno à mente gira,
quando finge que amor é por inteiro.

Para saber se amor é lisonjeiro,
consulte os olhos dela, quando vira
o rosto para o lado e então suspira
que o sentimento tenha sido passageiro.

A vida envolve então a fala esquiva,
a que se nega  maior profundidade,
quando somente o temor é reafirmado.

E é tão estranho isso: que a assertiva
tantas vezes disfarce deslealdade,
enquanto o amor completo é renegado.

CHAMAS NEGRAS XI

É bem mais fácil conquistar um território
que poder conservá-lo, diziam os romanos;
isso porque, passados poucos anos,
outros rivais buscavam o ostensório.

Também da comunhão o áureo cibório
e a patena consagrada em dons arcanos
não nos dão os elementos soberanos,
do pão e vinho, senão em perfunctório

ritual a ser, dia após dia, renovado...
E assim é o amor.   Se assalta um coração
e se conquista uma alma inteiramente,

mas surgem os rivais, por entre o enfado
e é preciso guardar viva essa ilusão,
mantendo acesa a chama permanente...



CHAMAS NEGRAS XII

Eu peço aos deuses o som da nostalgia,
as chamas ancestrais, que em mim habitam,
as danças dos zagais, que me concitam,
os tropeços com que a senda hoje me adia.

Eu peço aos deuses a fome da poesia,
a cor do vento, os pós que revisitam,
na concha do abalone; e me palpitam,
dia após dia, em odor de melodia...

Eu peço aos deuses que não deem descanso
a esta ânsia estival com que os adoro,
este desejo total de integração:

que revivam em mim de seu remanso,
que manifestem em mim o antigo coro,
que despedacem, em fibra, o coração!...



quinta-feira, 24 de março de 2011

FEL (GALL BLADDER)





FEL I

Eu ontem te encontrei, como querias,
mas não do jeito que eu queria achar...
Apenas, bem de leve, me sorrias,
mas sem, de fato, querer-me partilhar

todo esse afeto que ansiava desfrutar.
Somente desconfiança transmitias,
nem por momentos pudeste acarinhar,
pela amargura com que me ferias...

Eu gostaria de te ver...  Assim,
meiga e suave, em tua redolência,
permanente o sorriso para mim...

Mas vejo como mudas... E sendo tão fatais
essas cambiâncias permeadas de impaciência,
o que eu prefiro... É nunca te ver mais!...


FEL II

Que a melodia fantasma não se escute,
que não escorra perdão entre meus dedos,
que não haja sequer quaisquer segredos
que a ouvidos alheios se dispute...

Que o poema eternamente mute,
que não haja a visão de sonhos ledos,
que não se fuja aos persistentes medos,
que a nenhum argumento se refute...

Que seja amor vazio e sem história,
que seja filamento de desejo,
que seja pluma só no pensamento...

Que já não reste cinza, nem escória,
que o vento apenas te transmita um beijo,
que mostre em brisa o meu ressentimento.

FEL III

Mas foi composta a melodia fantasma,
mas pelos dedos escorreu perdão,
mas os segredos correram pelo chão,
mas esse ouvido alheio não se pasma...

Mas o poema eternamente orgasma,
mas a visão de sonhos foi paixão,
mas os medos esfriaram o coração,
mas foram argumentos de miasma...

Mas a história desse amor não foi vazia,
mas o desejo foi simples fio de teia,
mas o pensar foi pluma de um momento.

Mas a cinza se evolou, na manhã fria,
mas o beijo não foi chama que incendeia,
mas a brisa não me trouxe esquecimento. 


FEL IV

A melodia tornou-se em espavento,
o perdão se dissolveu, em fios de areia,
os segredos foram chama que se ateia
e os ouvidos proferiram julgamento.

O poema não passou de um segmento,
a conclusão do sonho foi bem feia,
o medo a perfeição inteira freia
e o miasma espalhou-se pelo vento...

O vazio foi história sem amor,
a teia foi aranha de desejo
e a pluma sempre adeja sem pensar...


A cinza se escondeu no abrasador,
o fantasma do passado era teu beijo
e nem a brisa gozou de um repousar...

FEL V

O espavento foi fantasmagórico,
a areia virou praia de cristal,
cada chama um diamante natural,
o julgamento apenas um histórico.

O poema cantou-se em verso dórico,
a conclusão foi somente estrutural,
a perfeição - exatidão banal
e o vento arranha o gelo pré-histórico...

Porque o amor delatou a melodia,
a aranha satisfez seu apetite,
ficou a pluma no cadáver do avestruz,

o abrasador em fonte de agonia,
o beijo apenas sonho que me incite
e o ressaibo da brisa ainda reluz...


FEL VI

Fantasmagórica é toda a duração,
é cristalina qualquer aspereza,
adamantina a chama, com certeza,
e histórica a memória na ilusão;

Ilusória a poesia e a exultação,
estrutural o canto da beleza,
vulgar a exatidão da fortaleza,
pré-histórica a memória da canção.

Melódica de amor a delação,
apetitosa a vítima da aranha,
emplumada a coroa do laurel.


Abrasada e vazia a refeição,
incitador o sonho que me banha,
que o ressaibo de teu beijo ainda é fel.

FEL VII

Duzentos filhos eu dizia querer ter
quando criança, motivo de irrisão;
era comum me perguntarem quão
grande seria o tamanho da mansão...

Pois um elenco de fantoches fui fazer:
cheguei a oitenta e dois e a bel-prazer
representava peças, sem temer
fizessem troça da apresentação...

Também travei combates bem secretos
com soldados de chumbo, dom viril,
sem que isso desse fim a tal paixão.

Porém, ao produzir tantos sonetos,
duzentos filhos não tive, mas dez mil,
satisfazendo meu sonho de sultão!...

 
FEL VIII

Apenas cinzas percebia no borralho:
com a ponta revolvi do atiçador;
entre as cinzas, percebia-se o negror
da brasa morta pelo fogo falho.

Usei o atiçador qual fora um malho,
buscando algo vermelho no interior:
talvez tição com um pouco de calor,
a ponta viva de um derradeiro galho.

Igual que da emoção a extinta chama
da mente que ao amor não mais se inflama,
tive pena da paixão com que me expus...

Ataduras coloquei no coração,
segurei entre os dedos tal carvão
e, num impulso, lhe assoprei a luz...

FEL IX

Pensei tomar por alvo a luz de estrelas:
meu arco era de lata e não de freixo;
a corda rebentou-se, mas não deixo
a minha aspiração por coisas belas...

Aos deuses da poesia ergui estelas:
a pedra espatifou-se e virou seixo;
de que isso acontecesse não me queixo,
que o mundo escuta mais os tagarelas.

E eu me conformo com meu canto escuro,
em que meu coração conservo puro,
usufruindo sem dó meu desaponto.

Pois meu segredo neste instante eu conto:
muitos tiveram paixão por uma estrela,
mas eu me apaixonei por luz de vela...


FEL X

A dança de ilusões circunda a testa
qual vincha de poeta ou pajador;
brilham os versos, em carretel de amor,
tornando o funeral em alegre festa.

Eu me aproximo lentamente desta
celebração azul de um sonho em cor
e lanço a rede, exímio pescador
e guardo após os sonhos numa cesta.

Carrego esta colheita, ainda saltando,
para o mais fundo de meu coração,
onde aprisiono quimeras sem fiança,

que vão aos poucos ilusões multiplicando:
nadam no sangue e enchem-me o pulmão,
até o ponto em que a saudade alcança.

FEL XI

Estranho o nome que me colocaram,
de sabor aristocrático e estrangeiro,
destes seis nomes sempre fui parceiro:
para fados diferentes me puxaram.

Em pretensão de nobre me chamaram,
por mais pobre que fosse em meu terreiro;
ganhei moedas igual que um esmoleiro,
dos dons que sobre mim se derramaram.

Meu pai essa prosápia bem rápido abreviou:
em vez de William, bem depressa virei Billy,
um nome que, afinal, soava a fel...

Pois o povo bem depressa o transformou:
logo em seguida me chamavam "bile",
nesse amargor de mofo em meu farnel...

FEL XII

E, mesmo assim, escutei a melodia
do tempo a rebrilhar entre meus dedos,
do coletivo inconsciente mil segredos
desses poetas mortos, à porfia...

Como aedo, procurei toda a harmonia
em minhas canções; brotaram sonhos ledos,
em pomos sublimei antigos medos,
da oratória eu fugi: não me atraía...

Acaba assim a história desse fel
que sempre amargurou o meu desejo:
só tenho a lamentar o que não fiz...

Restos de escória transformei em mel,
asas de vento transmutei em beijo,
nas mil metáforas com sabor de giz...