domingo, 31 de agosto de 2014





A FADA RAPOSA
(História adaptada de uma novela chinesa original de Shen Tchitchi, circa 750=800 d.C,
Versão poética de William Lagos, 29 ago 2014)

A FADA RAPOSA I

Moravam na cidade de Tchangan,
quando reinava a Dinastia Tang,
dois primos, ambos príncipes de sangue,
grandes amigos, desses que não se zangam,
salvo pelos momentos mais fugazes,
para depressa, a seguir, fazer as pazes...

O mais velho chamava-se Wei Yin,
que significa “grande e brilhante”;
o mais moço era Cheng Feng, outrossim
“Espada Habilidosa”, alto e quase gigante
para os padrões da média dos chineses:
inseparáveis quais dois irmãos siameses.

Wei era rico, alegre e perdulário,
apreciando um bom banquete e melhor vinho;
Cheng era um sexto filho e, em corolário,
o conteúdo de sua bolsa bem mesquinho;
Wei era o segundo filho de seu pai,
Cheng o sexto que dera à luz Bik Ai,

“Jade Amorosa”, que casara com o irmão
mais velho de Wei Yin, que morrera num combate
e assim vivia de favor na sua mansão;
Treinado em armas, seu orgulho não se abate,
embora usasse do primo seu descarte
e andavam juntos os dois por toda parte...

Todas as noites saíam a farrear,
vinho bebendo até de madrugada,
as despesas era Wei sempre a pagar,
mas quando se metiam em enrascada,
era Cheng que nas brigas superava
e os adversários sempre dominava...

Wei herdara o dinheiro de seu pai
e com Cheng tudo compartilhava;
mas por vergonha, muitas vezes este vai
fazer negócios, nos quais sempre lucrava,
sem que jamais entre os dois surgisse inveja,
numa amizade que nem entre irmãos se enseja.

Porém Wei andava em seu cavalo branco
com os mais belos arreios ajaezado,
enquanto Cheng tinha um burrico meio manco...
E quando os dois cavalgavam lado a lado,
os olhares se voltavam para Wei,
que se portava altivo como um rei...

Embora Cheng fosse melhor apessoado,
na realidade os dois eram tão amigos
que entre eles isso era descuidado,
sem surgir de rancor quaisquer perigos;
Cheng mostrava-se sempre comovido
e pela amizade do primo agradecido...

A FADA RAPOSA II

Um dia, os dois saíram a festejar
em um lugar em que bebida era abundante,
mas numa esquina Cheng quis dobrar,
pois ali perto tinha negócio interessante;
combinaram de na festa se encontrar,
cada um o seu destino a demandar...

Ora, Cheng o seu negócio realizou
e sendo sempre muito habilidoso,
a bolsa encheu com as moedas que lucrou
e retornou para o primo, descuidoso...
Porém na estrada deparou com três donzelas,
uma de branco, com as faces muito belas...

As outras duas formosas, igualmente;
caso estivessem sozinhas, atenção
a sua beleza chamaria à gente;
mas não ao lado daquela perfeição
que ao jovem Cheng deixou maravilhado,
primeiro passo para sentir-se enamorado...

Puxou depressa as rédeas do burrinho,
para abordá-la faltando-lhe coragem,
porém então para as três abriu caminho
na rua estreita e assim deu-lhes passagem;
e como a jovem bela o contemplasse,
ele sentiu qual se ela o encorajasse...

E desse modo, interpelou-a, alegremente:
“Por que uma jovem tão bela está a pé?”
“Se aquele com montada passa rente,
sem revelar sua educação até,
que mais nós três poderíamos fazer...?”
Cheng sentiu seu rosto enrubescer...

“É muito pobre a minha montaria
para o transporte de mulher tão bela...
Nem sequer imaginei que aceitaria
o meu convite tão linda donzela...”
“Mas é claro que aceito... se o fizer...”
Cheng sentiu-se de novo a repreender...

“Minha jovem dama, faça-me o favor
de ocupar minha triste montaria,
pois eu a servirei com tal valor
que minha pobre condição permitiria...”
E assim se apeou e ofereceu-lhe a sela,
em que depressa subiu a sua donzela...

E embora fosse na direção contrária,
acompanhou-a, as rédeas segurando,
qual escudeiro em sua tarefa vária
e no caminho os dois foram conversando,
as duas aias logo atrás seguindo,
muito à vontade e para os dois sorrindo...

A FADA RAPOSA III

Disse-lhe a jovem ser seu nome Zhen,
que em chinês significa “A Preciosa”,
enquanto ele respondeu ser Cheng Feng,
ao que ela riu: “Ora, ‘Espada Habilidosa!’
Vejo que traz mesmo uma do seu lado;
vai defender-me, cavalheiro honrado...?”

“Com o total valor da minha espada!”
“Porém não vai empregá-la contra mim?”
“Jamais faria minha lâmina desonrada,
uma tão bela mulher ferindo assim!...”
E assim seguiram os quatro no caminho,
belas palavras já trocando de carinho...

Andando devagar, já estava escuro
quando chegaram a magnífica mansão,
mas com as luzes apagadas.  “Não é seguro,”
disse-lhe Zhen.  “Aguarde aqui no meu portão.”
E ela entrou, montada no burrinho,
enquanto as aias abriam-lhe caminho...

Já Cheng se cansava de esperar,
de lhe roubarem o animal preocupado,
depois que vira o portão a se fechar,
quando o palácio ficou todo iluminado.
Chegou uma dama, que a entrar o convidou.
Sem hesitar, o convite ele aceitou...

Foi caminhando ao longo de uma aleia
demarcada por álamos e pinheiros;
iluminando o caminho com candeia
a dama disse que evitasse os espinheiros.
Cheng achou estranho, pois na trilha
não havia espinhos... “Zhen é minha filha,”

disse a senhora, dotada de beleza,
embora pelas rugas já marcada.
“Minha vigésima filha e, com certeza,
a que saiu mais bem aquinhoada...
Trate-a bem ou não volte mais aqui;
quem a maltratou eu ferozmente persegui.”

Surpreso, Cheng lhe assegurou
que para Zhen só desejava o bem...
“Fico feliz, porque ela o apreciou;
demonstre seu apreço a ela também.
Em minha família, somos perseguidos:
alguns dos meus tratados quais bandidos.”

“Isto por que a carne de aves apreciamos
e só o rei pode comer faisão,
porém, às vezes, os capturamos,
do mesmo modo que ao real pavão,
pois não gostamos de carne de animal,
que realmente, até nos fará mal!...”

A FADA RAPOSA IV

Cheng até pensou em lhe indagar
qual o motivo dessa confidência,
porém achou melhor nada falar
e ao contrário, só escutá-la com paciência;
mas a senhora lhe falava sem acanho
coisas difíceis de contar-se a um estranho...

“Mas como disse, minha filha se agradou
e não desejo que você a magoe...”
Que a trataria bem, Cheng lhe jurou.
“Pois seja assim, antes que o tempo escoe
e eu o faça pagar pelo malfeito:
sou sua mãe e o castigo é meu direito!”

Já haviam chegado à porta da mansão;
a velha abriu-a e a candeia lhe entregou;
mas no momento em que a tomou na mão,
bem na sua frente, ela se evaporou!
Cheng só ouviu uns passinhos apressados,
Como asas de passarinhos assustados...

Dando de ombros, pela porta ele passou
e lá estava todo o interior iluminado;
as duas aias a seguir ele encontrou,
que o conduziram a um salão aparelhado,
um banquete servido nas mesinhas,
Zhen a esperá-lo, com ademanes de rainhas...

Com ele alegremente conversou,
nenhum dos dois a porteira mencionando;
depois ela cantou e então dançou,
para passar com ela a noite convidando;
porém, já no final da madrugada,
pela janela penetrava a alvorada...

“Querido, é melhor que vá embora.
O meu irmão é da Guarda Imperial;
de seu retorno está chegando a hora
e se aqui o encontrar, vai pensar mal;
não pode vê-lo em casa esta manhã;
porém, se ainda quiser, volte amanhã...”

Cheng dela despediu-se com um beijo
e foi andando, devagar, até o portão;
sem a candeia a iluminar-lhe o ensejo,
nas suas roupas sentiu algum pegão,
qual se, de fato, houvesse algum espinho,
mas ao redor estava limpo o seu caminho...

E fechando o portão atrás de si,
montou depressa, sob a escassa luz da Lua;
o Sol ainda não brilhava ali,
mas seu burrinho não estranhava a rua;
Cheng sentia-se totalmente apaixonado:
com a bela Zhen seu coração havia deixado...

A FADA RAPOSA V

Era costume em Tchangan portões trancar
entre os vários quarteirões da capital;
Cheng notou não poder ainda passar
à sua mansão, sita no bairro principal;
e encontrando ali aberta padaria,
sentou-se à frente, enquanto o tambor não ouvia

que anunciava a abertura do portão;
bebeu leite e comeu o pão que se servia,
indagando sobre o dono da mansão
do fim da rua...  “A que família pertencia...?”
Mas o padeiro lhe disse, surpreendido:
“Era um palácio, mas foi há muito demolido...”

“Uma parede desabou sobre um rapaz,
várias décadas depois de abandonado;
o subprefeito escutou histórias más
e o que restava foi inteiro derrubado...
Só existe ali um mato de espinheiros;
cortaram até o caminho dos pinheiros...”

“Não pode ser!” – disse Cheng, confundido.
“Passei a noite ali, me banqueteei,
ouvi música, fui com danças entretido
e até uma bela jovem namorei!...”
“Ah, agora entendo!” – disse-lhe o padeiro.
“É um lugar de encantamento, companheiro!”

“Ali mora a Raposa Transformada,
uma fada que aparece como gente!
Porém a casa foi amaldiçoada:
qualquer um logo falece que a frequente!
Um jovem se matou, outro caiu,
outro nunca se acordou, quando dormiu!”

“Dizem que todos a Raposa namoraram
e depois procuraram fugir dela,
mas que os gênios do mal os encontraram...
É de um extremo perigo essa donzela!
Quer dizer que o senhor a viu também?
Deixe a cidade, para seu próprio bem!...”

Porém Cheng sentiu-se envergonhado
de ter caído tão fácil em armadilha.
Fez um desvio para chegar por outro lado,
facilmente da mansão achando a trilha.
O muro estava de pé, tal que o portão,
mas sem parede a indicar a construção!...

Somente havia um alto capinzal
onde antes vira a aleia de pinheiros;
mas da mansão nem o menor sinal,
apenas longos renques de espinheiros...
Só então notou suas roupas esgarçadas
e algumas feridas no burrinho, já fechadas...

A FADA RAPOSA VI

Depois que o encontrou de volta ao lar,
Wei indagou por que não comparecera
naquela festa, em que o estivera a esperar.
Envergonhado pelo que lhe acontecera,
Cheng inventou-lhe uma desculpa qualquer:
Wei desconfiou que fosse coisa de mulher...

E nas costas lhe deu uma palmada:
“Sua aventura vai esconder logo de mim?
Está com medo que lhe roube a namorada?”
Foram de tarde os dois caçar, assim,
mas a Cheng os galgos estranharam,
porque o cheiro da Raposa farejaram...

Porém Cheng tinha sido seduzido
e não podia olvidar-se de sua Zhen.
Foi aos lugares a que a tinha conduzido
e em parte alguma ele encontrou ninguém
que a tivesse visto em seu burrinho;
alguns disseram que o viram, mas sozinho...

Pensaram que havia a pata machucado
e que por isso pela rédea o conduzia;
acharam graça que tivesse conversado
com o animalzinho, que em zurros respondia;
mas perceberam que lhe era afeiçoado
e que o levava para ser tratado...

Mas era o amor que o havia dominado
e então saiu pela cidade a caminhar,
pensando assim que em lugar mais acanhado
mais facilmente a poderia procurar;
e levou nisso mais de uma semana,
Wei estranhando sua ausência tão leviana...

Finalmente, a encontrou em uma ruela,
vestido branco, pelas aias escoltada;
chamou-a pelo nome, mas sua bela
apressou-se, sem querer ser abordada;
mas insistiu e finalmente, confrontou-a.
“Por que me buscas? Não sou coisa boa...”

“Porque desejo vê-la novamente.”
“Mas não sabes agora o que eu sou?”
“Pouco me importa.  Eu te amo inteiramente.
Tu não me queres mais?” – Cheng protestou.
“Não é que eu te deseje abandonar.
tenho é medo que acabe por me odiar...”

Cheng insistiu que, de fato, mais a amava
e ela falou: “Mas não está com medo?
Foi bem a sério que minha mãe o interpelava:
que outros morreram já não é segredo...”
“Mas se morreram foi porque não a mereceram:
meu amor é bem maior que o que lhe deram!...”

A FADA RAPOSA VII

“Mas você pensa possuir-me facilmente,
tão apenas porque sou mulher-raposa?...”
“Não, meu amor por você é diferente:
de fato quero que se torne a minha esposa!”
“Ah, meu querido, não sabe o que me pede!”
“Eu sou sincero...  Por que então não cede?”

“Nossa família é grande na cidade
e mal suspeitam de nossa natureza;
a maioria vive em animalidade
e satisfaz-se com total pobreza;
mas alguns há que invadem galinheiros
ou dos faisões os imperiais poleiros...”

“Assim vamos sendo perseguidos...
Somente eu é que consigo ser humana,
sendo na maior parte do tempo repelidos
os impulsos da natureza sub-humana;
também me torno invisível facilmente,
sem chamar a atenção de muita gente...”

“Você é o primeiro que me pede por esposa,
queriam os outros só usufruir de minha beleza,
mas no instante em que me sabem ser raposa
fogem de mim, em covardia e vileza...
E então Mamãe de persegui-los não se cansa,
até que sintam toda a força da vingança...”

“Depois de tudo, sua proposta está de pé?”
“Jamais desejarei outra mulher!...
Meu amor será eterno, por minha fé!...”
“Sabe que filhos não lhe posso dar sequer?”
Cheng engoliu em seco.  Bom chinês,
queria ter filhos, mas a resolução se fez.

“Você será para mim muito melhor
do que dez filhos para meu corpo honrar;
depois, sempre é possível alcançar esse favor
se algum menino, enfim, eu adotar!...”
Disse Zhen: “Você é sincero, realmente...
Porém preciso confabular com a minha gente...”

“Venha me ver daqui a uma semana,
à meia-noite, perante o meu portão;
mas não me busque.  Abandono a forma humana
quando me encontro sozinha na mansão,
que é, de fato, um vasto labirinto
de cavernas e de covas, não lhe minto...”

E assim Cheng pôs o seu buscar de lado
e retornou com Wei às suas andanças;
ele brincou: “Teve azar o namorado?
Não se abale!  De mulher há abastanças!
Vamos às festas nos divertir bastante:
logo achará outra donzela interessante!...”

A FADA RAPOSA VIII

Por mais que de seu primo fosse amigo,
preferiu Cheng não lhe contar nada;
sempre era possível haver certo perigo
caso sua trama fosse revelada;
e assim com Wei passou em seus festejos,
porém sem dar em ninguém mais que dois beijos.

Completada a semana, à meia-noite,
lá estava ele, a frente do portão;
numa cabana de caça achara acoite
para da guarda não chamar a atenção;
à meia-noite em ponto, apareceu também
a sua idolatrada e bela Zhen...

Ela lhe disse: “Aceito a sua proposta.
Temos um bonzo que é nosso parente; (*)
segue o ritual de que a família gosta
e tenho certeza de que lhe será conveniente.
Porém já sabe que não passa de ilusão
o espinheiral que só parece uma mansão...”
(*) Sacerdote budista chinês.

“Eu lhe prometo que mesmo ao ser raposa
não lhe farei qualquer mal por toda a vida
e lhe serei uma fiel e meiga esposa...
Porém a nossa raça é perseguida:
tudo em segredo ser mantido deverá,
caso contrário, alguém nos prejudicará...”

“Mas a questão é onde moraremos;
não pode ser no seu castelo rico;
é de seu primo; não nos acomodaremos
e muito menos nas tocas em que eu fico...
Porém conheço uma bela moradia
que por poucos li de prata alugaria...” (*)
(*) Antiga moeda chinesa.

“Ela fica em lugar pouco habitado
e bela árvore tem a protegê-la;
porém precisa de ser equipada,
mas a mobília será bem fácil tê-la;
vá alugá-la, se o ponto lhe agradar;
peça a seu primo os móveis lhe emprestar.”

Foi a casa alugada facilmente;
já estava há um certo tempo abandonada
e a família de Wei muito frequente
trocava a mobília, que ficava bem guardada
num pavilhão, quando não a estavam usando,
ao Imperador quase sempre acompanhando.

Assim, quando Cheng lhe pediu,
respondeu Wei que escolhesse à vontade;
porém ficou curioso e o inquiriu...
Cheng contou-lhe só parte da verdade:
“Eu arranjei namorada muito bela,
quero montar uma casa para ela...”

A FADA RAPOSA IX

Wei emprestou-lhe carroças e criados
que a mobília facilmente transportaram;
mas quando retornaram, bem cansados,
ele indagou da mulher que lá avistaram
e responderam: “Senhor, é muito bela,
parece uma rainha essa donzela!...”

Wei indagou se era mais bonita
que qualquer de suas primas ou irmãs
e sua resposta a imaginação incita:
“Mais bela do que a seda junto à lã!”
E ele indagou se era como uma princesa
famosa no país por sua beleza...

E eles disseram: “Não há comparação:
a namorada de Ah Cheng é ainda mais bela!” (*)
Ele indagou: “E a Rainha do Industão,
que visitou nossa corte sobre a sela
de um elefante, não era mais formosa...?”
“Meu senhor, é margarida junto a rosa!...”
(*) “Ah” antes de um nome significa “senhor” em chinês.

Enquanto isso, se realizara o casamento
perante o bonzo, só com a família dela
e Cheng foi logo realizar investimento
para manter dignamente a esposa bela.
Muito curioso, Wei foi fazer visitação
sem o primo avisar de sua intenção...

Uma criada junto ao portão ele encontrou,
mais um menino a varrer da sala o chão;
eles disseram: “O nosso amo viajou...”
“Mas quero ver a senhora da mansão...”
Eles falaram: “Aqui estamos só nós dois,
ela saiu também... Volte depois...”

Mas Wei foi pela casa penetrando
e viu atrás de um biombo mal fechado,
como se alguém estivesse se ocultando,
parte da barra de um manto encarnado…
Abriu o biombo, deparando-se com Zhen,
de imediato enamorando-se também...

E pensando que só fosse namorada,
tentou beijá-la, mais para pregar peça
no seu primo, sem maldade calculada,
mas ela o repeliu, muito depressa...
Contudo Wei por toda a casa a perseguiu,
com insistência, até que ela consentiu...

A essa altura, também estava apaixonado
por sua beleza, tal qual que jamais vira...
Mas quando viu o pranto derramado,
de imediato sua violência se esvaíra
e perguntou: “Por que chora assim, donzela?
Mesmo em lágrimas, nunca vi mulher tão bela!...”

A FADA RAPOSA X

“Eu choro porque Cheng é um homem forte
e não me pode meu marido proteger!...
Eu choro porque teremos triste sorte
caso ele saiba o que me quer fazer!...”
“O seu marido?” – disse Wei, muito espantado.
“Mas Cheng nem me contou que havia casado!”

“Por que ocultou de mim tão bela esposa?”
“Porque achamos que ficaria perturbado,
já que, de fato, eu sou mulher-raposa;
Cheng não queria deixá-lo envergonhado...”
“Mas vergonha por que, você é tão bela!
Pode perdoar-me a ousadia, minha donzela?”

“Você sabe o porquê: seu primo é pobre,
enquanto você possui grande riqueza...
E mesmo sendo de nascimento nobre,
ele escolheu a minha natureza,
ainda sabendo não poder ter filhos
caso tomasse do matrimônio os trilhos...”

“Além disso, você tem muitas namoradas,
por ser um rapaz rico e ainda solteiro;
ele ganha de você as roupas usadas
e até aceita partilhar do seu dinheiro;
somente a mim ele adquiriu sozinho
e você quis me roubar, em ato mesquinho!”

Wei então se arrependeu profusamente,
pois era um homem galante e cavalheiro;
envergonhou-se de tentar algo indecente,
pois de Cheng era um amigo verdadeiro...
E assim os dois viraram bons amigos,
que por um triz não se fizeram inimigos...

As duas aias de Zhen logo surgiram,
ainda ocultando nas roupas dois punhais.
“Como está vendo, elas me defenderiam
e outra desgraça nos causaria mais...
Porém recuou a tempo da loucura
e doravante nossa amizade será pura...”

Logo a seguir, Cheng se apresentou,
pela presença de Wei em confusão,
mas Zhen depressa tudo lhe explicou
e Wei se desculpou de coração:
“Mas você deveria ter contado ser sua esposa,
ainda que fosse uma mulher-raposa!...”

Daí em diante foram os três inseparáveis,
Wei cumulando os amigos de presentes;
embora Cheng fizesse negócios apreciáveis,
só devagar seus lucros eram frequentes;
mas a amizade dos três só aumentava
e Cheng de Wei assim os dotes aceitava...

A FADA RAPOSA XI

Contudo, certo dia, abordou-o Zhen:
“Eu me envergonho de aceitar tantos favores
e a Cheng eu nunca enganaria também...
Mas facilmente lhe arranjarei outros amores.
Como sabe, eu sou fada e sou raposa,
posso arranjar-lhe namorada bem formosa...”

Wei aceitou a oferta de bom grado
e lhe falou, dentro de alguns dias:
“Há uma garota na Praça do Mercado...
Chama-se Chanchan e, se não me iludias,
poderias consegui-la para mim...?”
“É prima minha... Falarei com ela assim...”

“Ela também e do povo das raposas?”
“É quase gente, só é nossa aparentada...
Seu nome é “Florescente”, como as rosas
e lhe direi que deve ser sua namorada...”
De fato, só dez dias se passaram
e Wei e Chanchan depressa se acertaram...

Mas depois de dois meses, Wei cansou;
logo em seguida, os dois se separaram...
“Uma outra a atenção me provocou:
como Daiyu, “Jade Negro”, a batizaram...”
“Não é parente minha, mas consigo;
farei um esforço, porque você é meu amigo.”

“Vai encontrá-la no Festival Han Shih,
quando se come só “Comida Fria”...
Marquei encontro no mercado e ali
você pode demonstrar quanto a queria...”
E de fato Daiyu e Wei se amaram
e por mais de seis meses namoraram...

Mas quanto é bom acaba facilmente
e assim Wei e Daiyu se separaram;
foi ele em busca de Zhen, já descontente
e suas mágoas assim se consolaram...
“Essas moças são fáceis de trocar...
Peça-me alguém difícil mesmo de arranjar...”

“Há realmente uma jovem que me agrada,
e que é de ótima família... Quando a vi,
tocava flauta com perfeição de fada...
Foi no Templo de Chenfu que a conheci,
pois foi trazida pelo General Tiao,
homem temido por sua expressão de mau...”

“Santos deuses!... É a sobrinha favorita
do General e a ninguém pode namorar;
sem a menor dúvida, mulher muito bonita...
Você estaria disposto a se casar...?”
Wei franziu a testa, em pensamento:
“Eu a desejo com o mais sincero sentimento...”

A FADA RAPOSA XII

“Tenho dinheiro para pagar-lhe o dote,
segundo penso, mas não sei se o General
me aceitaria para genro... Do sangue o lote
até nos aparenta com a Família Imperial,
mas a família dele é ainda mais nobre;
são muito ricos e a seus olhos eu sou pobre...”

“Será mais difícil esta tarefa, realmente,
porém me esforçarei para lhe abrir caminho;
depois deve ir visitá-lo com um presente
e lhe falar que por Lanzhan sente carinho...
Ela é a “Orquídea Graciosa” e o General
pretende uni-la com a Família Imperial...”

“Mas apesar de sua cara, ele é educado
e não recusará diretamente;
procure estar com frequência do seu lado;
ele irá adiando a resposta, gentilmente;
mas se esforce para Lanzhan o perceber
nos festivais em que o tio o receber...”

E aconteceu que a moça se agradou,
porém na China, uma jovem da nobreza
por livre escolha jamais se casou:
eram os matrimônios arranjados, com certeza;
Zhen lhe pediu duas peças de seda,
que presenteou à sua jovem leda...

Também solicitou-lhe dez taéis,
moedas de ouro de grande valor
e com elas foi subornando serviçais,
de todos obtendo o seu favor;
porém as peças de seda enfeitiçou
e na jovem uma doença provocou...

Ninguém na casa conhecia a cura
e então a ama, a quem Zhen subornara
indicou uma curandeira, sob a jura
de ser a mulher mais sábia que encontrara;
ora Zhen também dela era parente
e dois taéis lhe dera de presente...

A curandeira trouxe as suas poções,
queimou incenso para divindades,
determinando, por insondáveis razões,
os maus espíritos das proximidades...
“Esta doença não responde à medicina:
terá de se mudar esta menina...”

E lançou sortes sobre o mapa da cidade,
até determinar um só lugar,
que era a mansão de Wei, na realidade:
“É para aqui que ela deve se mudar!...”
Wei então a pediu de novo em casamento;
estava doente, mas lhe daria o tratamento...

A FADA RAPOSA XIII

O General, muito assustado, concordou
e apressou com Wei as negociações;
do dote o preço logo se aceitou;
chamaram bonzos a consultar seus medalhões
para dos dias o mais favorável escolher
tornando-se os dois o marido e sua mulher...

Wei e Orquídea foram bem felizes,
ambos a Zhen bastante agradecidos;
já o General a desconfiar de alguns deslizes
vendo os sintomas da doença esvanecidos...
Mas apreciava de fato o jovem Wei
e o protegeu consoante manda a lei...

Enquanto isso, Zhen se preocupava
com seu marido, que sabia ser fiel
e nos seus negócios o aconselhava,
ganhando aos poucos tael por tael,
até amealhar um total de cinco,
em resultado do trabalho com afinco...

Então lhe disse: “Quero lhe dar um presente.”
Mas ela disse: “Pegue o seu dinheiro
e vá ao mercado, até que se apresente
um cavalo com mancha negra no traseiro,
mas fora disso branco inteiramente;
por cinco taéis o comprará facilmente...”

“Mas por que gastar tudo em um só cavalo?
Eu nem preciso de um, tenho o burrinho...
Mas se é o presente que deseja, vou comprá-lo,
embora possa outro encontrar mais baratinho...”
“Esse não é para mim, querido esposo:
quero que faça negócio bom e vantajoso...”

“Em seguida irá chegar o Palafreneiro
da Casa Imperial, oferecendo dez mil li,
ou dez taéis, o dobro do dinheiro...”
“Uma soma semelhante nunca eu vi!...”
“Porém o valor do cavalo está na pinta;
Não o venda, a não ser que pague trinta!...”

O funcionário roubava ao Imperador
e este tinha um cavalo branco favorito,
pelo qual demonstrava muito amor,
mas que morrera!...   E o serviçal, aflito,
não se animara à morte relatar,
temendo algum suplício de penar!...

Até a véspera, estivera muito bem,
porém na aveia havia sido misturado
um grão venenoso e o palafrém
morrera, qual se fosse enfeitiçado!
No mínimo, teria de pagar pelo animal
e perderia o seu lugar de serviçal!...

A FADA RAPOSA XIV

Na verdade, fora Zhen que, por magia,
a pobre besta havia executado;
já estava velho e assim ela podia
seu Cheng Feng ajudar, tão esforçado...
Quando o Palafreneiro viu o animal,
dez mil li ofereceu-lhe no local...

“Não vendo este animal por nenhum preço;
custou-me cinco e vou dá-lo de presente
à minha esposa, que tenho em grande apreço...”
Quinze taéis ofereceu-lhe incontinenti.
“Lamento muito, mas nem por vinte o venderei.”
“Vinte e cinco taéis, então, eu lhe darei...”

“Já lhe disse ser presente para a esposa...”
Pensou o Palafreneiro ser só a finta
habitual do regateio.  A mais formosa
das mulheres não valia esse cavalo... “Dou-lhe trinta!
Trinta mil li, trinta taéis de ouro,
que pago agora! Compre outro, sem desdouro!...”

Se o Imperador soubesse ter morrido
o seu cavalo favorito por veneno,
mandaria torturá-lo ou então exigido
sessenta mil pelo animal, ao menos!
Então Cheng aceitou o novo preço,
pensando a Zhen comprar belo adereço...

Mas ao chegar em casa, ela falou:
“Volte ao mercado, compre a terrina azul
com tampa larga e alta que ofertou
um mercador oriundo de Kabul...
Ir-lhe-á pedir trinta taéis de ouro;
compre sem regatear, pois é um tesouro!”

“Muito em breve, há de chegar o Despenseiro
que serve diariamente ao Imperador
e oferecer-lhe-á o dobro do dinheiro,
porém exija trezentos, sem temor!...
É claro que barganhar a princípio tentará,
mas no final o seu preço aceitará!...”

O Imperador tinha uma terrina favorita,
na qual servia sua sopa o Despenseiro;
porém a fada a mau descuido o incita
e ele a soltara sem poder pegar primeiro!
O que faria com ele o Imperador?
Decerto o mataria, em seu rancor!...

Há muito tempo roubava o Despenseiro
o dinheiro das despesas do castelo
e assim reunira vasta soma de dinheiro,
mas se soubesse o Imperador que o prato belo
fora quebrado, o condenaria à morte
ou a pagar, caso tivesse grande sorte!...

A FADA RAPOSA XV

Valia a terrina uns seiscentos taéis
e todo o roubo de dez anos perderia!
Ou sofreria o castigo de infiéis:
tortura horrível em que nem pensar queria!
Assim fora procurar o mercador
com quem vira terrina azul de igual valor!

Mas para seu horror, fora vendida
e viu montado num burrico o comprador;
saiu depressa atrás, numa corrida,
pedindo-lhe: “Espere, bom senhor!
Quero comprar-lhe essa terrina azul
que adquiriu daquele homem de Kabul!...”

“Não está à venda,” – Cheng se recusou.
“Paguei por ela muito alto preço,
como presente para quem muito me amou,
a minha esposa, por quem tenho grande apreço!”
“Dou-lhe por ela sessenta mil li!...
sessenta taéis!... Que lhe pagarei aqui!...”

“Não lha vendo por sessenta e nem por cem,”
sorriu Cheng Feng. “Já falei ser um presente
para minha boa e fiel esposa Zhen...
Só o seu sorriso me deixará contente!...”
“Dou-lhe duzentos ou o preço que pedir!”
“Só duzentos?  Bem mais vale o seu sorrir...”

“Dou-lhe trezentos taéis e os pago agora!
A minha bolsa está cheia de ouro!
Pode comprar-lhe outra terrina nesta hora,
pense bem!   Trezentos é um tesouro!...”
E sendo o preço que Zhen lhe havia indicado,
Cheng aceitou o negócio de bom grado!...

Chegou em casa com a bolsa a tiracolo:
trezentos taéis, um dote de princesa!
“Irei comprar um colar para o seu colo...”
“Não gaste muito, que aceito com certeza!”
Os dois contentes no seu grande amor
que até em dinheiro demonstrava ter valor!

Depois Cheng continuou a negociar,
sempre encontrando boa mercadoria,
mas por dois meses, sem Zhen nada indicar,
bem mais modestos os negócios que fazia;
porém comprou-lhe dois brincos e um colar
e Zhen os passou, com orgulho, a ostentar!

Porém o que mais feliz ainda a deixava
é que mostrar-se ela podia qual raposa
quando nos braços dele se deitava:
vermelho o pelo da textura mais sedosa,
como quadrúpede, encolhida do seu lado
e ele a abraçava, dormindo ou acordado...

A FADA RAPOSA XVI

Um dia, roubaram do Imperador a espada,
que ofereceu recompensa de valor:
punho de ouro e a bainha cravejada
com as joias mais preciosas do senhor;
por todo o reino arautos anunciaram
o grande prêmio, que muitos cobiçaram...

Então Zhen falou: “Desça até o rio Chenchang
e numa casa encontrará a rica espada,
fica junto ao escoadouro de Huang,
mas é defendida por muita gente armada.
Peça os guardas de seu primo Wei
e com feitiço ao ladrões encantarei...”

Prontamente, Cheng Feng a escutou
e a seu primo foi pedir-lhe os guardas;
mas Wei, sem discutir, o acompanhou,
mais vinte homens com chuços e alabardas;
atravessaram então o Mercado Leste
e desceram até a Esquina do Sudeste...

Precisaram cruzar o rio, raso mas largo;
era de noite, mas a tal casa logo acharam;
mesmo o vigia descurara de seu cargo;
todos dormiam até que a porta arrombaram;
houve uma breve luta, mas venceram:
doze bandidos mataram ou prenderam...

E lá estava a bela espada cravejada,
o justo orgulho do velho Imperador,
por entre panos sujos enrolada,
como se fosse um espeto sem valor...
Cortaram dos cinco mortos as cabeças,
lançando os corpos nas águas espessas...

E sendo noite, estando ainda escuro,
foram à casa de Cheng até a alvorada,
que era o lugar de espera mais seguro
e descansaram até a madrugada...
Então Wei foi ver seu sogro, o General,
para audiência obter no átrio imperial...

Porém deixou a maioria dos soldados
para guardar os sete prisioneiros,
que se encontravam firmemente atados
e mais a espada, com seus companheiros.
Disse Zhen: “O Imperador mandou oferecer
mil taéis a quem sua espada devolver...”

“Vou dividir irmãmente com o bom Wei,”
disse Cheng Feng, muito satisfeito.
“Também dez li nos pagará o rei
por cada cabeça ou prisioneiro feito.
Esses daremos a nossos bons soldados,
que bem merecem ser recompensados...”

A FADA RAPOSA XVII

“Quanto a isso, farás de fato muito bem,
mas a recompensa deves recusar;
teu primo Wei te aconselhará também
que ao Imperador deverás impressionar
dizendo que recompensa de verdade
foi servi-lo com grande lealdade...”

Cheng ficou meio desapontado,
mas Zhen lhe disse: “Não confia em mim?”
“De fato, sempre fui recompensado
por seus conselhos atender; e assim
se Wei concordar, na imperial presença
dir-lhe-ei que abro mão da recompensa.”

“Que o melhor prêmio que posso receber
foi o prazer de ao Imperador servir...”
“É justamente o que deves dizer;
porém cento e vinte li irás pedir,
a fim de distribuir entre os soldados;
os militares ficarão bem impressionados...”

De Wei o sogro logo a audiência conseguiu
e a Cheng ele acolheu com alegria;
era afastado, mas parente, concluiu
e seu apoio igualmente merecia...
Amam chineses os familiares laços,
por mais distantes que sejam os seus traços...

Tiao, Wei e Cheng então se apresentaram
no salão das audiências imperiais;
os vinte soldados os acompanharam
com os sete prisioneiros e ademais
as cabeças dos cinco que mataram,
porém suas armas no saguão deixaram.

O Imperador, com um dedo, fez sinal
e Cheng se ajoelhou, mostrando a espada;
logo um ministro da Câmara Imperial
a recolheu e entregou, ainda embainhada
ao Imperador, que mostrou grande alegria,
amava a espada, que também muito valia...

Então mandou buscar a recompensa,
porém Cheng, ainda ajoelhado, protestou:
“Majestade, basta-me estar em sua presença;
o seu favor já me recompensou...”
Mas disse Wei: “Só peço os cento e vinte li,
a meus soldados para distribuir aqui...”

Ficou o Imperador impressionado
e lhes deu a posição de Cavalheiros
da Câmara Imperial, com o soldo designado
e ricas vestes para os seus roupeiros;
Não cento e vinte, determinou duzentos li,
dez a cada soldado perfilado ali...

A FADA RAPOSA XVIII

O General também foi recompensado,
consoante era de praxe e de costume
e o Imperador o manteve do seu lado,
encarregado de lhe passar o lume,
para acender ao cachimbo imperial,
o que era vasta honra, no final...

Logo depois, assinou a nomeação
de Wei para ser governador
e de Cheng para ser o capitão
de uma província, como prova de favor.
Os sete ladrões ele mandou executar
e suas cabeças com as outras cinco pendurar...

Naturalmente, Wei a Lanzhan levaria
e quis Cheng Feng que Zhen o acompanhasse;
mas ela lhe disse que viajar não queria,
pois mau pressentimento nisso a perturbasse...
Porém os outros três tanto insistiram
que no final os dois casais partiram.

A essa altura, Cheng já tinha o seu cavalo
e para Zhen outro melhor comprara;
as duas aias no burrinho a acompanhá-lo;
Cheng então da retaguarda se ocupara,
enquanto Wei seguia bem à frente,
em seu cortejo de numerosa gente...

Entretanto, ao atravessarem uma aldeia,
havia cães para a caça a ser treinados
e como era a estação da lua cheia,
todos estavam com os faros aguçados
e sentiram aquele almíscar de raposa
mal disfarçado pelo perfume de sua esposa...

E se jogaram contra o seu cavalo,
que empinou, com mordidas assustado
e a Zhen derrubou dentro de um valo
que foi logo pelos cachorros ocupado;
Zhen transformou-se então numa raposa
e disparou, numa corrida portentosa!

Mas eram galgos os seus perseguidores
e na entrada da mata a alcançaram;
Cheng e Wei os perseguiram, em clamores,
porém os cães a morderam e a mataram...
Cheng e Wei se abraçaram a chorar
e com cuidado, Wei a enterrou nesse lugar...

Penduradas no lombo do cavalo
estavam suas roupas e suas sapatilhas
presas nos estribos; e nesse abalo,
os dois nem perceberam quais as trilhas
que as duas aias tinham percorrido
ou se, de fato, haviam desaparecido!

A FADA RAPOSA XIX

Fora Wei que sepultara essa raposa
enquanto Cheng estava sendo consolado
por Lanzhan, Graciosa Orquídea, a sua esposa;
Wei ordenou cada galgo executado,
Porém Cheng não queria prosseguir
e decidiram ali acampar para dormir...

Durante a noite, Cheng se levantou
e caminhou até a sepultura;
o cadáver de Zhen desenterrou,
mas só achou a pele vermelha e pura,
sem ter sido maculada pela terra:
não havia ossos nem o que a pele encerra...

Passou a noite com a pele abraçado,
o seu calor sentindo e o seu perfume,
mas de manhã só viu o pelo avermelhado...
Disse-lhe Wei: “Leve-a para algum curtume,
senão o couro poderá apodrecer...”
Porém Cheng recusou-se a tal fazer.

“Foi culpa minha que tivesse acontecido:
relutou ela tanto em viajar!...”
Wei consolou o infeliz marido:
“Também insisti que nos viesse acompanhar.”
E o mesmo repetiu Orquídea Graciosa,
amenizando-lhe a culpa portentosa!...

Cheng Feng era, afinal, homem valente
e se dispôs a cumprir sua obrigação;
a caravana assim seguiu em frente,
até chegar ao longínquo Turquestão;
em seus deveres ocupou sua energia,
mas abraçado à pele ainda dormia...

Certa noite, também de lua cheia,
teve a impressão de sentir maior volume
e acendeu, com cuidado, a sua candeia,
entorpecido por sentir certo perfume...
E lá estava Zhen, deitada ao lado,
olhos abertos, com o sorriso do passado!

Só numa coisa ficara diferente:
os seus cabelos estavam encarnados!
Não eram negros, como antigamente,
com sua pele muito clara combinados...
Mais bela ainda, caso o fosse possível,
nesse milagre do caráter mais incrível!

Wei e Lanzhan com alegria a aceitaram,
porém disseram que chegara nessa noite
e nem soldados, nem criados desconfiaram:
soprava o vento num verdadeiro açoite!...
Cheng afirmou ter ido a porta abrir,
toda a gente da casa ainda a dormir!...

EPÍLOGO

Mas Zhen deixara de ser mulher-raposa
e se tornara inteiramente gente;
podia agora ser completamente esposa
e lhe dar filhos com seu amor potente!
Assim viveram juntos muitos anos,
conforme dura a vida dos humanos...

Dizem que ainda existem, lá no norte,
essas pessoas de vermelhas cabeleiras
e que apesar de todo o humano porte
são descendentes das raposas faroleiras
e se transformam, sob a luz da Lua,
a perseguirem aos cachorros pela rua!...