terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A CASA DE MALAQUIAS




 
A CASA DE MALAQUIAS I (13/11/11)

Malaquias fez sua casa em pradaria,
em que se erguiam três árvores gigantes.
Seus alicerces foram troncos elegantes,
das tempestades sua copa o protegia.

Malaquias, pois na Rússia ele vivia,
fez uma datcha enroscada nos possantes
pinheiros, com agulhas sussurrantes,
com quantas peças o espaço permitia.

Fez uma escada com sua balaustrada
e deu-se ao luxo de ter um patamar.
De um dos lados construiu terraço

e seu telhado, qual em conto de fada,
era triangular e pontudo, a projetar
sua chaminé, com quebra-fogo de aço...

A CASA DE MALAQUIAS II

Cresceram troncos através de seu telhado
e um deles em dois galhos dividiu-se.
O aspecto interior, de certo, viu-se,
extremamente peculiar e requintado...

Não sei se quadros tem neles pregado,
ou se frases da Torá nos troncos diz-se,
ou mapas, sem que o mundo se atingisse,
ou simples cones que possa ter achado...

Tem um problema, contudo, Malaquias.
O que acontece, quando se engrossarem
esses galhos que cruzam o seu teto?

Nessa força vegetal que abre suas vias
e quebra as pedras que se lhe antolharem,
suas telhas racharão, sem grande afeto...

NA CASA DE MALAQUIAS III

Malaquias leu Tarzan, quando criança,
mas colocou janelas ogivais,
aos pares nas paredes madeirais
da estranha casa em que seu sonho dança.

Não sei se mora aqui ou se descansa,
somente nas suas férias ou em finais
de ano ou de semana, ou se jamais
tem ocasião de gozar da vida mansa...

Só contemplei essa imagem meio exótica
e pensei em Malaquias, de imediato,
por sobre a estepe, a carregar madeira,

para a casinha, de duendes em minha ótica,
enquanto o céu recorta um fino estrato,
talvez de um jato deixando branca esteira.

NA CASA DE MALAQUIAS IV

De Malaquias o irmão construiu torre,
de teto cônico e parede arredondada.
Com sua ponta em lança, em que, espetada,
pega uma nuvem que do céu escorre.

Ao contraforte que projeta, talvez forre
com placa de latão ou só acobreada.
Também ergueu assim vasta sacada
e passarela que ele igual percorre,

até chegar à plataforma bem ao lado,
construída de outra árvore ao regaço.
Caibros reforçam dos troncos a forquilha.

Mas só à casa o acesso é preparado,
com escadas de madeira e todo o traço
recorda a terracota e o bronze brilha.

A CASA DE MALAQUIAS V

Aqui é outono e a paisagem diferente.
Há montanhas ao longe, de calcário.
Cor de cobre também mostra o carvalho,
em sua tatuagem vermelha do poente.

Também aqui nas janelas se pressente
a imitação das ogivas desse vário
passado, cujo peso multifário
sobre o povo da Europa ainda é jacente.

O que fazem os Malaquias nesse andaime?
Dormem a sesta em tardes estivais?
Ou ali fazem agradáveis piqueniques?

Quiçá se entreguem a quanto o amor reclame?
Ou se protegem dos ventos hibernais,
no farfalhar dos ramos, qual um dique...?

A CASA DE MALAQUIAS VI

De certo modo, é como se o passado,
por uma fresta do tempo ou num portal
se tivesse projetado, em magistral
coloração do antanho retomado...

Uma na Rússia, no triângulo sagrado
dos três pinheiros de porte triunfal,
enquanto a outra da Alemanha é natural,
nesse impossível nutrir de meu agrado.

Ah, Malaquias, ou qualquer seja teu nome!
Também pensei em ter minha casa arbória
que, no entretanto, nunca construí...

Fui cooptado por diversa fome,
bem mais real e vazia de vitória
E essa vida que eu queria, não vivi!...


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ISMARLADIK! GUILEGUIL!

         Arte de Arturas Slapsys  (pintor Lituano)

ISMARLADIK! GUILEGUIL! I (29/10/11)
(Até logo!  Boa viagem!)

Como tudo na vida, há um momento
de se abanar o lenço, em despedida...
A gente espera, como pagamento,
que nos abanem o lenço na partida...

Mas nada aconteceu.  Após a lida
dessa bagagem, em seu embarcamento,
não tive adeus, nem foi cantiga ouvida,
sobre o cimento frio do pavimento.

Os companheiros de viagem ficariam
por mais dois dias e somente nós,
durante a noite e quase às escondidas,

sobre as rodas dos vagões que se moviam,
partimos juntos, da Bulgária empós.
Ficou a Turquia para trás em nossas vidas.

ISMARLADIK! GUILEGUIL! II

Ficamos sós nesse compartimento,
Bem à direita desse vagão-leito,
a que aplicaram excessivo aquecimento
e o cabineiro abusou de seu direito.

Mas como à sua mercê me vi sujeito,
paguei-lhe uma gorjeta em tal momento.
Pequeno roubo, mas por mim aceito,
para livrar-me de seu mau procedimento.

Eu já pagara pelos seis lugares
e o trem só se ocupara pelo meio,
mas colocar alguém mais ameaçou.

E eu queria manter meus descansares,
sem que mais me incomodasse de permeio
e minhas dez liras assim ele levou...

ISMARLADIK! GUILEGUIL! III

Antigamente, era costume se aplicar
o "bastinado" ao corrupto funcionário:
davam pancadas nos pés do salafrário,
para o Império melhor administrar...

Mas surgiu logo o costume de pagar
a algum mendigo um certo numerário,
mais um suborno para o real erário
e o infeliz apanhava em seu lugar!...

Mas o que eram, afinal, essas dez liras?
Correspondiam a somente dez reais,
duzentos dólares a viagem me custara...

E na esperança de melhores giras
(é meia lauda de tradução, não mais),
paguei a peita que me solicitara...

ISMARLADIK!  GUILEGUIL IV

Adeus, Bizâncio!  Adeus, Constantinopla!
Para trás deixei a sombra de Istambul,
esse Mar Negro cor de mar azul,
esse Mercado louvado em tanta copla!
        Allaha, Sultanahmet Camii!
        Adeus, Mesquita Azul!...
A cada dia, um novo restaurante,
um de manhã e outro pela noite,
cada local em diferente acoite,
nenhum cardápio foi muito interessante.
        Allaha, fontes douradas!
        Adeus, Seis Minaretes!...
Em um conjunto de cartões postais,
trouxe duas folhas sopradas pelo vento.
Já me apresentam castanho integumento,
leves vestígios dos verdes naturais...
        Allaha, Misir Dikilitashi!
        Adeus, Obelisco que furtaram!
Os hieróglifos permanecem claros,
sob sua base se vê a vegetação.
Quatro pilares lhe dão sustentação,
de Tutmés relembra atos preclaros...
        Allaha, mil mosaicos!
        Adeus, velhas arcadas!
Aos minaretes conduzem patamares.
Será talvez a idade do muezim
que mais embaixo o faz ficar assim,
ou cantam coros em todos os andares?
        Allaha, automóveis silenciosos!
        Adeus, quatro pontes para a Ásia!
Mesquita Azul, com ladrilhos multicores,
que não são feitos somente de arabescos,
das frases do Alcorão, em rituais riscos:
aqui se mostram mil folhas e flores...
        Allaha, porta do Oriente!
        Adeus, ruínas ao nascente...
Em alguns trechos da muralha havia moradas,
numas poucas, até roupas nos varais,
outras vazias, janelas fantasmais,
renques de hera escorrendo quais escadas...
        Allaha, vendilhões das praças!
        Adeus, comerciantes de mil raças!
O interior da mesquita é deslumbrante.
Não dei porém ali sequer um passo.
Não sei por que me negaram seu regaço,
talvez outra excursão passasse adiante.
        Allaha, cem mosteiros!
        Adeus, Cristo Pantocrátor!
É um castiçal a Coluna Serpentina,
mas lhe cortaram há muito seu morrião...
Veio uma fonte desde o Império Alemão
e em suas colunas negras se reclina...
        Allaha, Hágia Sófia!
        Adeus a Hágia Irene!...
Não dou adeus à rampa bizantina,
porque trarei bem dentro ao coração
essas pedras desgastadas que aqui estão,
único elo com meu sonhar divino...
        Allaha, Rysten Paxá!
        Adeus, Topkapi!
O vento frio embalsamava a excursão
sobre as águas do estreito e ofereciam
café e chá... Mas logo me pediam
bem alto preço pela dessedentação...
        Allaha, Dolmabáhtche!
        Adeus, Forte Ruméli!
Adeus, guardas de uniformes imperiais,
suportando essas fotos dos turistas,
adeus aos mármores que no jardim avistas...
Não se proíbe representar os animais?
        Allaha, Yeditepe!
        Adeus, Patriarcado!
O Palácio de Tekfur não tem telhado,
de suas paredes quase nada resta...
Qual é a estrela que de noite encesta
os seus raios de luz desde o outro lado?
        Allaha, Panágua de Blaquernas!
        Adeus, Museu de Kariye!
Da verdadeira cidade eu vi apenas
os calabouços que bem poucos visitam.
Lá das ameias mil guerreiros fitam
e montam guarda os mortos em Anemas!
        Allaha, velhos bordos...
        Adeus aos pinheirais...
Não nos levaram ao velho cemitério
com fragmentos de ossos dos judeus,
com lápides de vetustos nazireus,
seu musgo a entoar kaddish etéreo...
        Allaha, Neve Shalom!
        Adeus, sinagoga de Ahrida!
Foi para aqui que vieram os Sefardim,
expulsos de uma Espanha intolerante,
igual que foram os mouros doravante:
quinhentos anos já alcançaram o seu fim.
        Allaha, Otomanos!
        Adeus, novos Turcomanos!
Algumas casas têm Estrelas de David,
outras indicam imigrantes turcomanos.
Ainda chamam os gregos de romanos,
como se nunca tivessem-nos aqui...
        Allaha, Torre de Galata!
        Adeus, Torre de Leandro!
Na Ilha do Príncipe, desde antigamente,
carroças cruzam as ruas de pinheiros.
No passado, até seus dias derradeiros,
Vinha o Sultão nos verões, alegremente...
        Allaha, Tughra do Sultão!
        Adeus, crescente e estrela!
Foi bem na época da festa nacional,
bandeiras rubras de espírito patriótico,
em todo o seu flutuar, já semiótico,
desse passado defunto e triunfal!...
        Allaha, mamelucos!
        Ismarladik, eunucos!
        Allaha às eras priscas...
        Ismarladik às odaliscas,
        Allaha, grãos-vizires,
        Ismarladik a todos os emires!
Que te direi, enfim, Constantinopla?
Que te amei, sem saber o que tu eras?
Que não te amei, após tantas esperas?
Que fiquei indiferente ante tua copla?

ISMARLADIK!  GUILEGUIL! V

Porque sei bem que a culpa é toda minha.
Eu que aceitei te programassem como escala
de uma viagem de mais comprida gala
e meu olhar depressa se amesquinha...

Assim, fui infiel, na comezinha
espera de escutar diversa fala...
O pouco turco que aprendi não cala:
um novo nicho abriu, nele se aninha...

Trago comigo a poeira... Não lavei
meus pés para ingressar em tuas mesquitas.
Trago comigo a zoeira que escutei,

essa babel de vozes de turistas
e a verdadeira Istambul jamais achei,
para ceder o coração às suas conquistas...

ISMARLADIK!  GUILEGUIL!  VI

E o que trago de lá?  Frases quaisquer,
num arremedo de turco mal cozido,
palavras soltas, vocabulário desnutrido,
que mal e mal serviu a seu mister...
    Euro ne kadar? Quanto é, em Euro?
    Tchok pakali!  É muito caro!...
E nem ao menos me soltei a pechinchar,
as minhas parentes barganharam em inglês!
Pacheminas e jóias, por sua vez,
paguei minhas contas, sem nunca protestar...
    Guináydin por "bom dia",
    Merhaba para "alô"!
As crianças me saudavam em inglês
e eu respondia com minhas frases soltas
e nesse repetir, em tantas voltas,
descobri várias palavras em francês!
    Mersi podia ser "obrigado",
    por Gar se referia a estação
    e com Pardon me podia desculpar!...
Embora melhor fosse o "Ederim"
ou "Tetchelnur", para pedir perdão.
"Affedersiniz", com igual conotação,
mas esse achei mais complicado, enfim...
    Iyi aksham lar! para Boa Noite!
    Iye guesselar! Boa Noite também é...
Uma vez na entrada e outra na saída,
"Iyi' significa "bom" ou "bem";
com "Iyi yim" a gente diz: "Vou bem"
e um "Arkadash" é amigo para a vida...
    Com "Birchei" se diz "não há de quê"...
    Com "Lítfen" se pede "por favor"...
Mas é melhor "Tereshkírer" se falar,
quando se quer a alguém agradecer...
"Baylan ode nerede?" quer dizer,
"Onde é o banheiro?", caso precisar...
    "Uzak uldúgu?" Será que fica longe?
    "Bit yakim!" Fica bem perto...
Não precisei ir a qualquer delegacia,
tivemos sorte, ninguém nos assaltou...
"Nerede polis istasyonu" se escutou:
Se precisasse, até que eu já sabia!...
    Para "sim" se diz "Evet",
    Para "não" se diz "Hayir"...
Não encontrei odalisca a me iludir,
Não aprendi como de amor falar,
no máximo aprendi a perguntar,
se por acaso precisasse perquirir,
    Como é seu nome?  Adiniz ne?
    O meu é William, ou William Adim.
Ou Adim William, parecia sobrenome.
Que tivesse um avô turco iam achar
e quem sabe? até mesmo perguntar...
Quem diz "Allaha" para o além se some...
    Com Nasil sini? indagaria "Como vai"?
    Caso fosse entabular conversação...
Mas nunca houve, para tal, momento:
estava sempre pelo guia acompanhado,
se encontrasse turistas a meu lado,
melhor usar o inglês no tratamento...
    Istemiy Orsaniz!  Não quero isso!
    Te acalma, vendedor, não sou freguês...
Sempre aprendi a dizer isto ou aquilo,
pois "isto" é "bu" e "aquilo" se diz "su"
e para "o outro" basta dizer "nu",
mas não tive ocasião para segui-lo...
    "Ruim" é "fená",
    "Feio" é "tchirquim"!
É bom saber, para comprar quaisquer
artigos nos bazares apinhados,
sempre é bom referi-los depreciados,
baixam o preço até o ponto que se quer!
    Estou com fome! Bem susuz atchim!
    Nerede lakanta? Onde é o restaurante?
Que quer dizer? se indaga Ne Demeque?
Não precisei de mais barato hotel,
mas seria "Nerede ocuz bique otel"?
Tampouco fiz qualquer salamaleque...
    Chuveiro é "duche"
    e banho é "banyo"...
Muito fácil de aprender, não é verdade?
Não há desculpas, com sinceridade,
para manter no corpo a sujidade,
nem por preguiça, nem por falta de vontade...
    "Como? era "Cátche?"
    e "quanto", "Cátche tane?"
Não precisei de dizer "Istiyorum",
porque, de fato, não queria nada...
mas se quisesse adquirir uma almofada
ou não quisesse comprar artigo algum,
    para "belo", Guizel se diz aqui,
    "quente" é Sicak, "grande" é Biyique,
    "frio" é Soiuk, "pequeno" já é Qui chique!
    "novo" é Yêni e "velho" é um Esqui...
Mas vou encerrar esse tema que escolhi,
ainda recordo umas palavras mais,
que não usei, nem vou usar jamais,
porque Yok, "não haverá ocasião"
e quando (Nezaman?) posso dizer aqui
Buyurunve! (Sirvam-se!), meus amigos?
Como (Nasil?) salvo nos dias antigos,
A quem (ou Quim?) farei recepção?
O que (ou Ne?) poderei oferecer?
Pois procurei quebrar o meu tabu
e entregar-me ao verso livre a olho nu
e terminei cem rimas pobres a escrever...

ISMARLADIK! GUILEGUIL!  VII

 E nesta noite, após sono perder,
acabei concluindo por soneto
as impressões de pendor pouco secreto
que consegui nesta viagem recolher...

Por brincadeira, ou quiçá escarnecer,
fui um pouco irreverente e sem afeto.
Mas bem queria que me fosse mais dileto
esse passado que não vi acontecer...

Queria ver os mamelucos em combate
e os janízaros de tão temida fama,
mais para trás, Belisário ou então Teodora,

mas só encontrei o que o turístico proclama
e me ofegou em vão a alma de vate,
ao embarcar na gare e ir-me embora!
   
Sem que ninguém me desejasse Guileguil!

Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.
Edição e postagem: Andréia Macedo