quinta-feira, 31 de julho de 2014







SONHOS ERÓTICOS
William Lagos, 5 mai 10)

SONHOS ERÓTICOS I 

Sonhei primeiro com a arqueologia,
não com os reis, vestindo roupas finas,
mas com os fragmentos, velhas tinas,
hoje buscadas com mais harmonia.

Sonhei a escavação, que ao mundo guia
desse passado das antigas sinas,
pouco me importa o ouro dessas minas,
mas sim saber como o povo então vivia.

Todos esses meus longínquos ancestrais,
de quem nem poeira dos ossos hoje resta,
mas dos quais ainda sou germe e semente,

passados séculos dos séculos finais,
como talvez me lembre alguma festa,
caso meu nome se grave em bronze ardente.

SONHOS ERÓTICOS II

Depois sonhei foi com a astronomia,
queria ver de perto essas estrelas,
não por amor, tampouco por temê-las,
mas para ver o quanto as constituía.

Sem telescópios e em minha miopia,
ficava bem difícil compreendê-las.
Naquele tempo, para as estrelas belas,
observatórios quase não havia,

pelo menos em minha parte do país,
em que ainda, de fato, escassos são.
E desse modo, nunca satisfiz

esse desejo de meu coração,
por mais que muito em meu íntimo quis
contemplar essa celeste multidão.

SONHOS ERÓTICOS III

Paixão eu tive pela filatelia:
desde menino, foram meus desvelos
pelo amontoar da coleção de selos
a que minha solidão me conduzia,

que o mundo inteiro assim visitaria
nesse prazer que tinha de entendê-los...
Que simples fossem, os achava belos,
pois cada um minha coleção aumentaria.

Este sonho não perdi, pois até hoje,
tenho catálogos e selos classifico,
com extremo cuidado e aplicação;

tão numerosos são, que até me foge
esse total que sempre multiplico,
no fiel desejo de meu coração...

SONHOS ERÓTICOS IV

Tive paixão pelo militarismo:
não que, de fato, quisesse ser soldado;
antes queria é dirigir o fado
de minhas tropas, com autoritarismo;

Fui general de batalhões e cismo,
quando me vejo em devaneios enrolado,
que ainda me acho no tempo consagrado
aos soldados de chumbo, em erotismo.

Travei com eles milhares de batalhas;
e havia outros de plástico ou de pano,
porém eram de papel, na maioria,

que eu mesmo recortava, já sem falhas,
a experiência reunida, ano após ano,
cem regimentos convocando em fantasia.

SONHOS ERÓTICOS V

Minha outra paixão foi a leitura,
que em nada interferia com o estudo;
do que encontrava, eu lia quase tudo,
sem restringir-me à qualidade pura.

Era o cheiro dos livros, a textura,
o peso dos volumes, seu veludo;
as células perdidas, quando grudo
uma parte de mim, que neles dura.

Todavia, por estranho sortilégio,
dez mil livros perdi, numa ocasião,
consumidos pelas chamas de um incêndio.

Nunca houve para mim um sacrilégio
maior que este, pois meu estipêndio
jamais pôde refazer tal coleção...

SONHOS ERÓTICOS VI

Outra paixão eu tive pela história,
a qual conservo até os dias de hoje;
o número de livros já me foge,
que consultei, em leitura merencória

das vidas de outrem, restaurada em glória;
dos impérios soterrados, que despoje
o tempo...  E que permita, então, se aloje
um rebanho de ovelhas sobre a escória.

Mas para mim, tornavam-se bem vivos;
não tanto os reis do orgulho e suas batalhas,
porém a forma qual vivia o povo...

Suas pobres roupas e utensílios redivivos
de mais valor assim que essas mortalhas
em que a nobreza aguardou por mundo novo.

SONHOS ERÓTICOS VII

Foi a história que me levou à leitura
desses romances no antanho aclimatados,
por mais que fossem, afinal, glorificados
os detentores da nobreza pura;

porque buscar no lazer literatura
nos transcende dos presentes desgastados;
por que quereríamos relembrados
os que passaram por igual agrura?

E depois, era criança e adolescente
e ainda via nos combates glórias;
modernas lutas assistia no cinema;

mas aos poucos perspectiva diferente
adquiri para as vidas aleatórias
dessa gente que não teve um diadema.

SONHOS ERÓTICOS VIII

Uma coisa leva a outra, nesse esquema:
juntaram-se história e arqueologia
a exploradores de ambiciosa fantasia
revelados pelos livros e o cinema...

Alguns empós qualquer estranha gema,
outros em funda, cristalina espeleologia;
ou alpinistas, talvez, que o mundo via,
bem lá no alto, proclamando um novo lema.

Ou aqueles que levaram a cultura
aos povos mais perdidos desta Terra
e com ela, as ambições e suas doenças...

Mas nesse tempo, faceta havia mais pura,
que havia honra mesclada em cada guerra,
no tabuleiro de xadrez das crenças...

SONHOS ERÓTICOS IX

Depois me apaixonei pela ficção
especulativa, que outros chamam
de “científica” e a fantasia reclamam,
qual pertencente à mesma redação.

Há meio século a desprezava a multidão:
era “tolice” apenas, é o que falavam
das “óperas espaciais”, que me acenavam,
difíceis de encontrar nesta nação.

Pois só depois que aprendi o inglês
é que pude usufruir deste tesouro,
que a gente usa e goza e não se gasta;

depois vi suas profecias, mês a mês,
realizadas em silêncio ou em estouro,
enquanto o alvo dia a dia se afasta.

SONHOS ERÓTICOS X

Aos poucos me evadi, tive aventuras;
se foram menos ou mais do que eu queria
meu coração nem sequer hoje avalia,
se foram bênção ou tão só ternuras...

Mas sempre as encontrei, muito mais puras
nesses livros que sem cessar eu lia,
ou no teatro que então me seduzia:
livros não quebram as mais sagradas juras...

Tornei-me ator e violinista e dirigi
corais e atores a mim submetidos,
toquei em orquestras vários instrumentos

e assim o mundo inteiro percorri,
mais na mente do que em passos definidos,
na multidão sem fim de meus momentos...

SONHOS ERÓTICOS XI

Sempre a música minha doce companheira;
tão logo em ser capaz eu percebi,
centenas de canções eu redigi,
caligrafadas com precisão certeira,

pois sempre achei bem pouco verdadeira
essa assertiva que tanta vez ouvi,
quando chamavam “compositor” aqui
a qualquer um de execução ligeira.

Nas melodias que fiz no pentagrama
as minhas músicas parecem ser impressas;
são fruto de um trabalho laborioso;

mas hoje existe um digital programa
e simplesmente escuta e imprime as peças:
desfez-se a pompa de meu ideal glorioso...

SONHOS ERÓTICOS XII

Deste modo, fui mudando de paixão
(desculpe, amigo, a armadilha do erotismo,
mas fui sincero, não foi oportunismo
que me levou a escolher titulação),

pois ao buscar partilhar toda a emoção,
poderia até falar em comunismo...
Iguais sonhos que partilho em tal modismo,
mais que os sexuais, de erótica ascensão.

Ainda leio, sempre que tenho tempo;
desgasto em traduções a minha cultura:
alguns textos decifrar é arqueologia...

Enquanto as velhas paixões se vão perdendo
e me consolo em gestos de ternura,
ao ver que minha paixão hoje é a poesia...









ESCULTURAS DE ÁGUA
William Lagos

ESCULTURAS DE ÁGUA I  (2/6/2010)

Entre meus dedos, a água se acumula,
límpida e clara, numa onda pura:
                    na palma de minha mão a espuma dura
                            e se congrega numa espera nula...
Só eu sei os segredos dessa bula,
que a fluidez da água, sagaz, cura:
                    crio um cristal, que o líquido não fura,
                            para alvo cintilante de minha gula...
Não me contento em assim reter o mar,
         como um globo de luz, inelutável...
                    Bem ao contrário, sei bem como moldar
essas moléculas de feitio maleável
e as manipulo, qual massa a modelar,       
                    igual que ao sonho mais imponderável...

ESCULTURAS DE ÁGUA II

Nesses moldes de água refletidos
se encontram toda fênix e quimera;
penas de fogo eu toco e quem me dera!
fossem de fato esses monstros esquecidos...
Meus dedos nessa massa entretecidos
         esculpem cada imagem, cada fera
                   tecendo a água qual se molda a cera
                            ou brande a argila dos barros percutidos.
Porque essa água que prendo entre meus dedos
e que a ponta da unha interpenetra,
também me envolve, com igual desvelo.
E se ergo a quente estátua dos segredos,
torno a tensão superficial em pedra,
         mas também ela me transforma no seu gelo!

ESCULTURAS DE ÁGUA III

A minha amante tem olhos castanhos,
azuis, cinza e esmeralda e seus cabelos
são negros, louros ou ruivos em desvelos,
a reluzirem em seu fulgor, estranhos...
A minha amante tem sonhos tamanhos
como são frios os pesadelos belos;
a castelã já a encontrei de mil castelos,
também pastora de cento e um rebanhos.
A minha amante é pequena, média e alta,
é moça e velha e está na meia-idade,
é magra e gorda e tem corpo normal.
A minha amante é branca e negra e esmalta
         os patamares de minha mediocridade,
                   quando em meus braços torna-se imortal.

ESCULTURAS DE ÁGUA IV

A minha amante é uma escultura d’água,
que amanho entre meus dedos, em carícia;
         querer seja só minha é estultícia:
                   depois de pronta a lanço para a mágoa.
Eu a construo nas dimensões da frágua,
         permanece entre minhas palmas em resquícia,
                   sua voz me gorgoleja em sua sevícia:
                            é incolor, afinal, qual toda a água.
Está na fonte do meu pensamento,
         em que a moldo no pendor do bem dileto;
                   guardo minha amada na palma de minha mão,
até o momento de seu passamento,
         quando se esgota todo o meu afeto
                   e deixo ao mar que a leve de roldão.

ESCULTURAS DE ÁGUA V

A minha amada é escultura nua:
percorro cada fímbria de sua pele,
         colar de espuma com que assim me impele,
                   nesse ritual celebrado à luz da Lua.
A minha amada traz o som que estua,
nessa maré quebrada que então vele
         sobre meu sono; porém basta que sele
                   as pálpebras, que já foge para a rua.
Como filetes, escorre pela porta
         e se concentra em poça na calçada,
                   na vã esperança de não ser pisada...
Porque já o foi, coitada!   Fica torta
         e ao respingar, se vê despedaçada
                   nesses borrifos que todo salto corta.


ESCULTURAS DE ÁGUA VI

Os restos da escultura liquefeita
         que sobraram dos calçados dos passantes,
                   se reuniram numa poça, como dantes
                            e então se ergueram para a fenda estreita,
para os degraus subir, numa desfeita
         às ânsias libertárias delirantes
                   e a estátua volta à casa, em humilhante
                            translúcida noção de ser aceita.
E assim a recebi.  As mãos já secas
         a ergueram das lajotas, com carinho,
                   e a aconchegaram bem junto do peito,
para depois a colocarem sobre as tecas
         do tampo de minha mesa, antigo ninho,
                   para esculpi-la de novo, sem defeito.

ESCULTURAS DE ÁGUA VII

Mas minha amante de aquática escultura
era promíscua pela liberdade;
quis ser do mundo ser, em sua vaidade
         que mais louvassem sua beleza pura.
E como o vício do orgulho mais perdura,
até o banheiro foi, em falsidade,
pedindo um pouco de privacidade,
para avaliar a perfeição da cura...
Debruçou-se, solerte, sobre a pia,
e se lançou, em silêncio, pelo ralo,
         com cuidado para não gorgolejar...
E a vi despida, na ambição vazia,
descendo pelos canos, em regalo,
         na ânsia vã de o mundo dominar...

ESCULTURAS DE ÁGUA VIII

E novamente, só encontrou declínio
a minha pobre amada envaidecida:
         como água pura desceu, foi corrompida
                   pelas águas do esgoto no domínio...
Foi conspurcada em puro lenocínio,
foi levada pelo fluxo em corrida,
         de cambulhada com toda a água servida,
                   até encontrar um remanso como escrínio.
Reuniu-se então, subiu pelas paredes
e retornou pelo teto, em sacrifício,
         até chegar ao ponto de partida...
Esgueirou-se por condutos que nem medes,
até alcançar do ralo o orifício...
         eu já a aguardava de novo, em acolhida...

ESCULTURAS DE ÁGUA IX

Foi mais difícil desta vez...  Eu tive
de puxá-la, aos fiapos, pelo cano
         e recolher-lhe os restos, num insano
                   trabalho, o mais difícil em que estive.
Ainda que à imundície sempre esquive,
precisei purificá-la e muito dano
         sofri em consequência desse engano
                   que levou minha amada a tal declive.
Lavei, filtrei e estendi, com prendedores,
quanto restava dessa estátua bela...
         depois sequei, com chumaços de algodão;
levei-a à mesa e, no esforço dos amores,
         eu restaurei de novo minha donzela,
                   pespontada com fios do coração...

ESCULTURAS DE ÁGUA X

“Ora, direis...” amar uma escultura
         nem é estranho assim.  Lá no passado,
                   Galateia inspirou igual loucura
                            a outro pobre coração atribulado...
E também Hoffmann, amante desvairado,
apaixonou-se por boneca pura,
         só por ver seu coração despedaçado:
                   para os românticos a vida é muito dura...
Porém é compreensível.   Uma imagem
         de mármore, escultura permanente,
                   perdura muito mais que uma mulher...
Contudo, amor de água, em sua miragem,
         é a mais perfeita loucura intransigente,
                   que só confessa quem mais loucura quer...

ESCULTURAS DE ÁGUA XI

E nem sequer se espera a lealdade
que mostraria uma estátua, em nossa casa,
         forçada assim a total fidelidade,
                   por viver aprisionada firmemente...
Mas essa estátua de água complacente,
que por ralo ou por fenda qualquer vasa
         que me forçou a esforço tão ingente,
                   para um contínuo restaurar de identidade,
fiel nunca me foi, nem poderia,
porque, afinal, uma escultura de água
         sempre é fiel a todos e a ninguém,
sempre vivendo da seiva que escorria,
         deslizando pelos olhos, feito mágoa,
                   por ser de todos, minha foi também...

ESCULTURAS DE ÁGUA XII

Contudo, a amo, pois nela a Natureza
intimamente e plena está contida;
         eu não espero me seja concedida
                   a total bênção de toda a sua beleza.
Porém o amor da água, com certeza,
é o mesmo amor que temos pela vida;
         não se trata de egoísmo ou da esquecida
                  ambição de lhe possuir toda a nobreza.
Mas é a água que se compõe em escultura,
modela a nuvem e no mar se espraia,
         o caule murcho infla e torna forte...
E toda árvore e flor, como água pura,
fez amor com meus olhos, luz de Gaia,
         que me dissolve no instante de minha morte.




segunda-feira, 28 de julho de 2014






PALIMPSEXTOS I (20/5/2010)
(Pergaminhos com o texto apagado para serem reutilizados).

Durante a vida e após a adolescência
apagamos a nós mesmos e reescrevemos
aqueles dias maus por que vivemos
e que ainda ferem, com tanta incandescência.

Uma esponja passamos na vivência
da insegurança, timidez, venenos
que nos amarguraram, quando temos
uma certeza maior dessa ciência

aprendida aos pedaços, que é o viver:
deixamos para trás a mesquinhez
e as centenas de picuinhas da amargura...

Sem negarmos a nós mesmos, porque ser
é ser camadas pelas quais se fez
esta complexa e humana criatura...

PALIMPSEXTOS II

Algumas vezes, porém, tais esponjaços,
sobre os males do passado desferidos,
não são perfeitamente resolvidos
e nos perdemos, na fúria dos abraços;

porém por trás dos imponentes traços
do homem másculo, a conquistar partidos,
da mulher bela, a seduzir vencidos,
se percebem da criança os olhos baços;

porque essa ânsia de ser e demonstrar
é um condão lançado um tanto a esmo,
máscara apenas para outrem enganar,

pois lá no fundo, sob a fantasia,
ou até perto da superfície, mesmo,
fervilha a mágoa que antes nos feria.

PALIMPSEXTOS III

Ou quem sabe?  é o oposto que transcorre:
o adolescente é a tal ponto reprimido,
que o velho pergaminho, revestido
de novas letras, com que se discorre,

se ergarça ao ponto de que quase morre:
o antigo ser fica ali submergido
e os sentimentos que a custo tem vencido
são as vaidades com que o egoísmo o forre;

estas talvez os tornem vencedores,
porém para os demais são bem cruéis,
conquistam corpos, mas não têm amores;

ganham sucesso, encontram resplendores,
mas são vitórias de amargurados féis,
ainda lembrados em pesadelos e temores.

PALIMPSEXTOS IV

Assim a verdadeira melodia
só é alcançada após um longo estudo;
o velho ego nunca fica mudo,
mas tampouco recebe sua alforria;

os velhos medos de que a alma antes sofria
são manejados com saber agudo;
nada se perde, que se guarda tudo,
mas os erros são polidos à harmonia,

que nosso espírito existe em grande sociedade
e, na verdade, nunca estamos sós:
há mais de nós que nunca suspeitamos;

mas dominamos o amargor que nos invade
e sem maldade, nossos velhos dós
são nós das almas com quem colaboramos.

PALIMPSEXTOS V

A tecnologia moderna nos consegue
recuperar os versos apagados,
sob cânticos à Virgem soterrados,
que a piedade monástica nos legue;

bem lá no fundo, por mais que a tinta pegue,
são os textos dos antigos conservados,
os raios lêiser demonstram-se acurados
nessa recuperação; e o velho se persegue,

algumas vezes com desapontamento,
que alguém guardara receita culinária
ou anedotas desinteressantes;

mas se encontra também, em ideal momento,
novo escaninho a se abrir à história vária
e os especialistas sorriem, triunfantes...

PALIMPSEXTOS VI

Com a vantagem de que essa releitura
não apaga os pergaminhos de piedade,
ou manuscritos em papiros, na verdade,
que à origem voltam de uma escrita pura;

e desse modo em duplo a obra perdura,
caligrafia de total fidelidade,
com que analfabetos monges, sem maldade,
queimaram os olhos na tarefa dura...

Mas se enriquecem novas bibliotecas,
surgem autores apenas mencionados
ou citados por escribas posteriores...

Servem de teses para novas becas
esses vetustos registros compassados,
sem que se apaguem as marcas ulteriores...

PALIMPSEXTOS VII

São novas formas de nossa arqueologia
que nos permitem retomar antiga herança,
por programa digital que nunca cansa
e os ditames ancestrais assim copia;

de fato, encontraremos a elegia
bem mais clara que nos tempos de criança:
vai muito além do que a mentira alcança
-- e as descobertas se sucedem à porfia!

Mas muitos textos foram destruídos,
principalmente na egípcia Alexandria:
os tesouros de séculos queimados...

Pior ainda, quantos livros lidos
pelos Inquisidores e chamados de heresia
em suas fogueiras foram empilhados!

PALIMPSEXTOS VIII

E tais atos não foram impensados;
não foram só os soldados ignorantes
que aos pés pisaram os rasgões restantes
das obras de poetas consagrados.

Foram antes sacerdotes e letrados,
que se aplicaram, suas doutrinas triunfantes,
na destruição, em seus poderes dominantes
dos escritos contra eles compilados.

Bendita seja dos monges a pobreza,
pois apenas apagaram pergaminhos,
demais valiosos para se queimar!...

A analfabetos confiados, com certeza,
que assim não lessem tais textos daninhos,
que os poderiam, quiçá, contaminar!

PALIMPSEXTOS IX

Também nós, como os monges, pela vida
os pergaminhos apagamos do passado;
reescrevemos tal como é de nosso agrado
e a dias aziagos esquecemos em seguida.

Mas quais em palimpsextos, têm guarida,
no inconsciente mais escaninhado,
porque no fundo, nada nos é apagado,
nem mesmo a dor profunda da ferida!

Apenas olvidamos, pois convém
lembrar do alegre tempo de uma infância
que muita vez foi tão só amargurada.

Ou queimamos os efeitos do desdém
que sofremos durante a adolescência,
com os sorrisos da mulher amada!...

PALIMPSEXTOS X

Pode ser frágil a superestrutura,
mas é ela que nos dá a maturidade:
só imaginar se toda a mágoa coletada
pudesse ser lembrada num momento!

E o mesmo ocorre com a física amargura,
pois defendemos a nossa integridade:
toda a agudez das dores é abafada,
sob o tapete protetor do pensamento.

E se pudéssemos lembrar todo o cansaço
que sentimos na vida ou as doenças,
em seus sintomas firmes e pungentes?

Muito melhor desbotarmos cada laço
que nos recorda dessas memórias tensas
e nos prendermos ao futuro crentes!

PALIMPSEXTOS XI

Destarte, é um perigo a tirania
que nos faça ao passado regredir;
tudo pode o consciente reassumir
e quem nos diz que os instantes de alegria

seriam os tais que a memória nos traria
com mais força, para assim nos infundir,
de entusiasmo renovado revestir
e não aqueles que esquecer se preferia?

Pois certamente as dores do passado
nos causaram um choque mais profundo
que esses instantes de êxtase ou prazer,

porque o momento feliz é ultrapassado
bem mais depressa que o sofrimento imundo,
por bem mais tempo a nos entretecer!

PALIMPSEXTOS XII

E o que nos resta, mesmo que a alegria
seja lembrada de modo mais premente?
Como iremos a buscá-la mais frequente,
Soterrados em momentos de elegia?

Porque quanto mais intenso for o dia
em que vivemos um prazer pungente,
tanto mais lástima então a gente sente,
só por saber que nunca mais retornaria...

Deste modo, talvez até seja melhor
deixar os sonhos antigos no passado,
no palimpsexto de tal felicidade...

Pois se os lembrarmos, pode ser pior,
ao nos deixar o presente atribulado,
nessa overdose complacente de saudade...