quinta-feira, 31 de julho de 2014






ESCULTURAS DE ÁGUA
William Lagos

ESCULTURAS DE ÁGUA I  (2/6/2010)

Entre meus dedos, a água se acumula,
límpida e clara, numa onda pura:
                    na palma de minha mão a espuma dura
                            e se congrega numa espera nula...
Só eu sei os segredos dessa bula,
que a fluidez da água, sagaz, cura:
                    crio um cristal, que o líquido não fura,
                            para alvo cintilante de minha gula...
Não me contento em assim reter o mar,
         como um globo de luz, inelutável...
                    Bem ao contrário, sei bem como moldar
essas moléculas de feitio maleável
e as manipulo, qual massa a modelar,       
                    igual que ao sonho mais imponderável...

ESCULTURAS DE ÁGUA II

Nesses moldes de água refletidos
se encontram toda fênix e quimera;
penas de fogo eu toco e quem me dera!
fossem de fato esses monstros esquecidos...
Meus dedos nessa massa entretecidos
         esculpem cada imagem, cada fera
                   tecendo a água qual se molda a cera
                            ou brande a argila dos barros percutidos.
Porque essa água que prendo entre meus dedos
e que a ponta da unha interpenetra,
também me envolve, com igual desvelo.
E se ergo a quente estátua dos segredos,
torno a tensão superficial em pedra,
         mas também ela me transforma no seu gelo!

ESCULTURAS DE ÁGUA III

A minha amante tem olhos castanhos,
azuis, cinza e esmeralda e seus cabelos
são negros, louros ou ruivos em desvelos,
a reluzirem em seu fulgor, estranhos...
A minha amante tem sonhos tamanhos
como são frios os pesadelos belos;
a castelã já a encontrei de mil castelos,
também pastora de cento e um rebanhos.
A minha amante é pequena, média e alta,
é moça e velha e está na meia-idade,
é magra e gorda e tem corpo normal.
A minha amante é branca e negra e esmalta
         os patamares de minha mediocridade,
                   quando em meus braços torna-se imortal.

ESCULTURAS DE ÁGUA IV

A minha amante é uma escultura d’água,
que amanho entre meus dedos, em carícia;
         querer seja só minha é estultícia:
                   depois de pronta a lanço para a mágoa.
Eu a construo nas dimensões da frágua,
         permanece entre minhas palmas em resquícia,
                   sua voz me gorgoleja em sua sevícia:
                            é incolor, afinal, qual toda a água.
Está na fonte do meu pensamento,
         em que a moldo no pendor do bem dileto;
                   guardo minha amada na palma de minha mão,
até o momento de seu passamento,
         quando se esgota todo o meu afeto
                   e deixo ao mar que a leve de roldão.

ESCULTURAS DE ÁGUA V

A minha amada é escultura nua:
percorro cada fímbria de sua pele,
         colar de espuma com que assim me impele,
                   nesse ritual celebrado à luz da Lua.
A minha amada traz o som que estua,
nessa maré quebrada que então vele
         sobre meu sono; porém basta que sele
                   as pálpebras, que já foge para a rua.
Como filetes, escorre pela porta
         e se concentra em poça na calçada,
                   na vã esperança de não ser pisada...
Porque já o foi, coitada!   Fica torta
         e ao respingar, se vê despedaçada
                   nesses borrifos que todo salto corta.


ESCULTURAS DE ÁGUA VI

Os restos da escultura liquefeita
         que sobraram dos calçados dos passantes,
                   se reuniram numa poça, como dantes
                            e então se ergueram para a fenda estreita,
para os degraus subir, numa desfeita
         às ânsias libertárias delirantes
                   e a estátua volta à casa, em humilhante
                            translúcida noção de ser aceita.
E assim a recebi.  As mãos já secas
         a ergueram das lajotas, com carinho,
                   e a aconchegaram bem junto do peito,
para depois a colocarem sobre as tecas
         do tampo de minha mesa, antigo ninho,
                   para esculpi-la de novo, sem defeito.

ESCULTURAS DE ÁGUA VII

Mas minha amante de aquática escultura
era promíscua pela liberdade;
quis ser do mundo ser, em sua vaidade
         que mais louvassem sua beleza pura.
E como o vício do orgulho mais perdura,
até o banheiro foi, em falsidade,
pedindo um pouco de privacidade,
para avaliar a perfeição da cura...
Debruçou-se, solerte, sobre a pia,
e se lançou, em silêncio, pelo ralo,
         com cuidado para não gorgolejar...
E a vi despida, na ambição vazia,
descendo pelos canos, em regalo,
         na ânsia vã de o mundo dominar...

ESCULTURAS DE ÁGUA VIII

E novamente, só encontrou declínio
a minha pobre amada envaidecida:
         como água pura desceu, foi corrompida
                   pelas águas do esgoto no domínio...
Foi conspurcada em puro lenocínio,
foi levada pelo fluxo em corrida,
         de cambulhada com toda a água servida,
                   até encontrar um remanso como escrínio.
Reuniu-se então, subiu pelas paredes
e retornou pelo teto, em sacrifício,
         até chegar ao ponto de partida...
Esgueirou-se por condutos que nem medes,
até alcançar do ralo o orifício...
         eu já a aguardava de novo, em acolhida...

ESCULTURAS DE ÁGUA IX

Foi mais difícil desta vez...  Eu tive
de puxá-la, aos fiapos, pelo cano
         e recolher-lhe os restos, num insano
                   trabalho, o mais difícil em que estive.
Ainda que à imundície sempre esquive,
precisei purificá-la e muito dano
         sofri em consequência desse engano
                   que levou minha amada a tal declive.
Lavei, filtrei e estendi, com prendedores,
quanto restava dessa estátua bela...
         depois sequei, com chumaços de algodão;
levei-a à mesa e, no esforço dos amores,
         eu restaurei de novo minha donzela,
                   pespontada com fios do coração...

ESCULTURAS DE ÁGUA X

“Ora, direis...” amar uma escultura
         nem é estranho assim.  Lá no passado,
                   Galateia inspirou igual loucura
                            a outro pobre coração atribulado...
E também Hoffmann, amante desvairado,
apaixonou-se por boneca pura,
         só por ver seu coração despedaçado:
                   para os românticos a vida é muito dura...
Porém é compreensível.   Uma imagem
         de mármore, escultura permanente,
                   perdura muito mais que uma mulher...
Contudo, amor de água, em sua miragem,
         é a mais perfeita loucura intransigente,
                   que só confessa quem mais loucura quer...

ESCULTURAS DE ÁGUA XI

E nem sequer se espera a lealdade
que mostraria uma estátua, em nossa casa,
         forçada assim a total fidelidade,
                   por viver aprisionada firmemente...
Mas essa estátua de água complacente,
que por ralo ou por fenda qualquer vasa
         que me forçou a esforço tão ingente,
                   para um contínuo restaurar de identidade,
fiel nunca me foi, nem poderia,
porque, afinal, uma escultura de água
         sempre é fiel a todos e a ninguém,
sempre vivendo da seiva que escorria,
         deslizando pelos olhos, feito mágoa,
                   por ser de todos, minha foi também...

ESCULTURAS DE ÁGUA XII

Contudo, a amo, pois nela a Natureza
intimamente e plena está contida;
         eu não espero me seja concedida
                   a total bênção de toda a sua beleza.
Porém o amor da água, com certeza,
é o mesmo amor que temos pela vida;
         não se trata de egoísmo ou da esquecida
                  ambição de lhe possuir toda a nobreza.
Mas é a água que se compõe em escultura,
modela a nuvem e no mar se espraia,
         o caule murcho infla e torna forte...
E toda árvore e flor, como água pura,
fez amor com meus olhos, luz de Gaia,
         que me dissolve no instante de minha morte.




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