segunda-feira, 28 de julho de 2014






PALIMPSEXTOS I (20/5/2010)
(Pergaminhos com o texto apagado para serem reutilizados).

Durante a vida e após a adolescência
apagamos a nós mesmos e reescrevemos
aqueles dias maus por que vivemos
e que ainda ferem, com tanta incandescência.

Uma esponja passamos na vivência
da insegurança, timidez, venenos
que nos amarguraram, quando temos
uma certeza maior dessa ciência

aprendida aos pedaços, que é o viver:
deixamos para trás a mesquinhez
e as centenas de picuinhas da amargura...

Sem negarmos a nós mesmos, porque ser
é ser camadas pelas quais se fez
esta complexa e humana criatura...

PALIMPSEXTOS II

Algumas vezes, porém, tais esponjaços,
sobre os males do passado desferidos,
não são perfeitamente resolvidos
e nos perdemos, na fúria dos abraços;

porém por trás dos imponentes traços
do homem másculo, a conquistar partidos,
da mulher bela, a seduzir vencidos,
se percebem da criança os olhos baços;

porque essa ânsia de ser e demonstrar
é um condão lançado um tanto a esmo,
máscara apenas para outrem enganar,

pois lá no fundo, sob a fantasia,
ou até perto da superfície, mesmo,
fervilha a mágoa que antes nos feria.

PALIMPSEXTOS III

Ou quem sabe?  é o oposto que transcorre:
o adolescente é a tal ponto reprimido,
que o velho pergaminho, revestido
de novas letras, com que se discorre,

se ergarça ao ponto de que quase morre:
o antigo ser fica ali submergido
e os sentimentos que a custo tem vencido
são as vaidades com que o egoísmo o forre;

estas talvez os tornem vencedores,
porém para os demais são bem cruéis,
conquistam corpos, mas não têm amores;

ganham sucesso, encontram resplendores,
mas são vitórias de amargurados féis,
ainda lembrados em pesadelos e temores.

PALIMPSEXTOS IV

Assim a verdadeira melodia
só é alcançada após um longo estudo;
o velho ego nunca fica mudo,
mas tampouco recebe sua alforria;

os velhos medos de que a alma antes sofria
são manejados com saber agudo;
nada se perde, que se guarda tudo,
mas os erros são polidos à harmonia,

que nosso espírito existe em grande sociedade
e, na verdade, nunca estamos sós:
há mais de nós que nunca suspeitamos;

mas dominamos o amargor que nos invade
e sem maldade, nossos velhos dós
são nós das almas com quem colaboramos.

PALIMPSEXTOS V

A tecnologia moderna nos consegue
recuperar os versos apagados,
sob cânticos à Virgem soterrados,
que a piedade monástica nos legue;

bem lá no fundo, por mais que a tinta pegue,
são os textos dos antigos conservados,
os raios lêiser demonstram-se acurados
nessa recuperação; e o velho se persegue,

algumas vezes com desapontamento,
que alguém guardara receita culinária
ou anedotas desinteressantes;

mas se encontra também, em ideal momento,
novo escaninho a se abrir à história vária
e os especialistas sorriem, triunfantes...

PALIMPSEXTOS VI

Com a vantagem de que essa releitura
não apaga os pergaminhos de piedade,
ou manuscritos em papiros, na verdade,
que à origem voltam de uma escrita pura;

e desse modo em duplo a obra perdura,
caligrafia de total fidelidade,
com que analfabetos monges, sem maldade,
queimaram os olhos na tarefa dura...

Mas se enriquecem novas bibliotecas,
surgem autores apenas mencionados
ou citados por escribas posteriores...

Servem de teses para novas becas
esses vetustos registros compassados,
sem que se apaguem as marcas ulteriores...

PALIMPSEXTOS VII

São novas formas de nossa arqueologia
que nos permitem retomar antiga herança,
por programa digital que nunca cansa
e os ditames ancestrais assim copia;

de fato, encontraremos a elegia
bem mais clara que nos tempos de criança:
vai muito além do que a mentira alcança
-- e as descobertas se sucedem à porfia!

Mas muitos textos foram destruídos,
principalmente na egípcia Alexandria:
os tesouros de séculos queimados...

Pior ainda, quantos livros lidos
pelos Inquisidores e chamados de heresia
em suas fogueiras foram empilhados!

PALIMPSEXTOS VIII

E tais atos não foram impensados;
não foram só os soldados ignorantes
que aos pés pisaram os rasgões restantes
das obras de poetas consagrados.

Foram antes sacerdotes e letrados,
que se aplicaram, suas doutrinas triunfantes,
na destruição, em seus poderes dominantes
dos escritos contra eles compilados.

Bendita seja dos monges a pobreza,
pois apenas apagaram pergaminhos,
demais valiosos para se queimar!...

A analfabetos confiados, com certeza,
que assim não lessem tais textos daninhos,
que os poderiam, quiçá, contaminar!

PALIMPSEXTOS IX

Também nós, como os monges, pela vida
os pergaminhos apagamos do passado;
reescrevemos tal como é de nosso agrado
e a dias aziagos esquecemos em seguida.

Mas quais em palimpsextos, têm guarida,
no inconsciente mais escaninhado,
porque no fundo, nada nos é apagado,
nem mesmo a dor profunda da ferida!

Apenas olvidamos, pois convém
lembrar do alegre tempo de uma infância
que muita vez foi tão só amargurada.

Ou queimamos os efeitos do desdém
que sofremos durante a adolescência,
com os sorrisos da mulher amada!...

PALIMPSEXTOS X

Pode ser frágil a superestrutura,
mas é ela que nos dá a maturidade:
só imaginar se toda a mágoa coletada
pudesse ser lembrada num momento!

E o mesmo ocorre com a física amargura,
pois defendemos a nossa integridade:
toda a agudez das dores é abafada,
sob o tapete protetor do pensamento.

E se pudéssemos lembrar todo o cansaço
que sentimos na vida ou as doenças,
em seus sintomas firmes e pungentes?

Muito melhor desbotarmos cada laço
que nos recorda dessas memórias tensas
e nos prendermos ao futuro crentes!

PALIMPSEXTOS XI

Destarte, é um perigo a tirania
que nos faça ao passado regredir;
tudo pode o consciente reassumir
e quem nos diz que os instantes de alegria

seriam os tais que a memória nos traria
com mais força, para assim nos infundir,
de entusiasmo renovado revestir
e não aqueles que esquecer se preferia?

Pois certamente as dores do passado
nos causaram um choque mais profundo
que esses instantes de êxtase ou prazer,

porque o momento feliz é ultrapassado
bem mais depressa que o sofrimento imundo,
por bem mais tempo a nos entretecer!

PALIMPSEXTOS XII

E o que nos resta, mesmo que a alegria
seja lembrada de modo mais premente?
Como iremos a buscá-la mais frequente,
Soterrados em momentos de elegia?

Porque quanto mais intenso for o dia
em que vivemos um prazer pungente,
tanto mais lástima então a gente sente,
só por saber que nunca mais retornaria...

Deste modo, talvez até seja melhor
deixar os sonhos antigos no passado,
no palimpsexto de tal felicidade...

Pois se os lembrarmos, pode ser pior,
ao nos deixar o presente atribulado,
nessa overdose complacente de saudade...






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